Traquelectomia Radical Vaginal
Nota da autora: Texto em homenagem ao Professor Gustavo Py Gomes da Silveira, entusiasta da cirurgia oncológica e da cirurgia minimamente invasiva, e que realizou o tempo vaginal da primeira Traquelectomia Radical Vaginal em nosso meio. Texto modificado de um capítulo finalizado poucos dias antes do falecimento do Professor Gustavo Py Gomes da Silveira.
Suzana Arenhart Pessini*
Gustavo Py Gomes da Silveira**
*Professora adjunta FAMED/UFRGS
**Professor titular UFCSPA
Introdução
O câncer de colo uterino é o quarto mais comum nas mulheres, com taxas de incidência de 5,5/100.00 na Austrália e Nova Zelandia, a 42,7 no leste da África. Em torno de 84% dos casos novos e 87% das mortes por câncer de colo ocorrem em regiões menos desenvolvidas (Iarc). No Brasil, o risco estimado é de 15,85/100.000 mulheres, e a incidência varia de 9,5 a 37,14/100.000, respectivamente, nos estados de São Paulo e do Amazonas.
É um câncer que atinge mulheres jovens – 47% dos diagnósticos ocorrem antes dos 35 anos de idade e, entre 2000 e 2009, a incidência aumentou anualmente 10,3% entre os 20 e 29 anos (Patel 2012, Gattoc 2015). Ao tratar estas pacientes, é importante que se tenha clara a possibilidade da conservação ovariana e da fertilidade.
A cirurgia conservadora da fertilidade foi idealizada, iniciada e nominada de Traquelectomia Vaginal Radical (TRV) pelo Professor Daniel Dargent, de Lyon, em 1986: remoção radical do colo uterino com paramétrios e parte superior da vagina via vaginal, combinada com a linfadenectomia pélvica. Em 1994 apresentou seus primeiros casos no 25th Annual Meeting of the Society of Gynecologic Oncologists (SGO) (Dargent 1994) e, em 2000, publicou uma série de 56 pacientes submetidas a TRV com seguimento médio de 52 meses, resultando em recorrência de 4,3% e 20 gestações em 13 pacientes com 10 recém-nascidos normais (Dargent 2000). No Brasil, a primeira TRV foi realizada pelo nosso grupo na Santa Casa de Porto Alegre.
Indicações
Os critérios para a TRV são os seguintes: desejo de gestar, tipos histológicos epidermóide, adenocarcinoma ou adenoescamoso, tumor até 2 cm de diâmetro, invasão estromal até 10mm, linfonodos negativos e margem negativa de 5 mm.
Em pacientes com tumores iniciais e desejo de gestar, a traquelectomia radical (vaginal, abdominal ou laparoscópica) com linfadenectomia é considerada o tratamento padrão.
A cirurgia inicia com o inventário da cavidade e biópsias de congelação de qualquer lesão suspeita, a seguir a linfadenectomia pélvica com a pesquisa prévia de linfonodo sentinela e, se negativos à congelação, a traquelectomia é realizada.
Resultados oncológicos
O grupo do Instituto Gustave Roussy, Villejuif, publicou uma recente revisão sistemática com seis diferentes cirurgias preservadoras da fertilidade. Nos 1.523 casos de TRV, de 21 séries, a recorrência foi de 3,8% (58/1.523) e a morte pela doença em 1,6% (24/1.523) (Bentivegna 2016).
Outras publicações reportam taxas de recorrência e de mortalidade de 2-6% e 1,6-6% (Dursun 2007, Lanowska 2011, Plante 2011, Schneider 2012, Speiser 2013), comparáveis à histerectomia radical.
Fertilidade e resultados obstétricos
Speiser e cols. sugerem possíveis mudanças causadas pela cirurgia que podem influenciar a fertilidade: redução ou alteração do muco cervical, estenose cervical, aderências, redução do fluxo sanguíneo (Speiser 2013).
A taxa de gravidez é em torno de 63% (Bentivegna, 2016). É importante reforçar que muitas pacientes desistem da gravidez após a cirurgia, conforme a série de 212 pacientes em que apenas 76 (36%) permaneceram com o desejo de gestar após 5 anos de seguimento e destas, 50 engravidaram (65,8%) (Speiser 2011).
Perda da gestação no segundo trimestre e prematuridade estão relacionadas com a traquelectomia, devidas principalmente a ruptura prematura de membranas (Shepherd 2009, Speiser 2013, Gizzo 2013).
Experiência pessoal
A primeira traquelectomia radical realizada pelo nosso grupo foi em setembro de 2000, e parece ter sido a primeira no Brasil. Até final de 2016, 26 pacientes foram selecionadas, 4 excluídas por linfonodo sentinela positivo, 3 por comprometimento alto do canal cervical e 1 por histologia neuroendócrina. Nas 18 pacientes (25-38 anos) com até 194 meses de seguimento, a sobrevida foi de 94,4%, a taxa de gravidez espontânea de 83%, com 50% de bebê em casa nascidos no terceiro trimestre.
Cuidados na gravidez
Três meses parece ser o intervalo mínimo entre a cirurgia e a exposição à gravidez (Halaska 2015).
A gravidez deve ser considerada de risco, e a cesariana realizada em centro de referência.
O grupo da Charles University, em Praga, recomenda cefalosporina nas semanas 16, 20 e 24, e clindamicina vaginal nas semanas 16 e 20 para a prevenção de infecção ovular (Halaska 2015). Outros autores sugerem metronidazol oral nas semanas 15-21 e abstinência sexual nos segundo e terceiro trimestres (Perrson 2012), evitar tratamentos dentários pelo risco de bacteremia e toques vaginais (Speiser 2013).
A cerclagem abdominal (laparoscópica ou laparotômica), pode ser oferecida (Speiser 2013).
Fatores prognósticos
Histologia neuroendócrina, tumor maior que 2 cm IELV são os mais importantes fatores associados a recorrência e óbito (Dargent 2000, Plante 2011).
No estudo de Bentivegna, com 1.523 pacientes analisadas submetidas a TRV, a recorrência ocorreu em 4% nas pacientes que tinham tumores até 2 cm, e em 17% nas com tumores maiores de 2 cm (p=0.001) (Bentivegna, 2016).
A variável IELV é mais difícil de avaliar, pois algumas séries não mencionam este fator. Das 473 pacientes com até 2 cm e com a informação de IELV ausente ou presente, a recorrência foi respectivamente 5 e 7% (p=0.15) (Bentivegna 2016).
Seguimento
Revisão clínica/colposcópica/citológica trimestral nos primeiros 2 anos e semestral entre terceiro e quinto ano (Speiser 2013).
Conclusão
A cirurgia preservadora da fertilidade em câncer de colo uterino deve ser oferecida às pacientes, desde que os critérios sejam respeitados.
O câncer de colo uterino ocorre em mulheres jovens, em vida reprodutiva e por vezes sem filhos. Sonoda e cols. identificaram que 48% das pacientes submetidas a histerectomia radical no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, entre 1985 e 2001 eram elegíveis para cirurgia conservadora (Sonoda 2004).
Embora não exista estudo randomizado, as séries publicadas mostram taxas similares de recorrência e sobrevida da TRV comparada à histerectomia radical.
Referências
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