Posicionamento FEBRASGO em relação à Lei 14.598, sobre inclusão de exames no protocolo de assistência de rotina às gestantes brasileiras

Segunda, 19 Junho 2023 11:17

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, entidade científica fundada em 1959, filiada a Associação Médica Brasileira, e que tem por missão institucional promover, apoiar e zelar pelo aperfeiçoamento técnico, científico e pelos aspectos éticos do exercício profissional de ginecologistas e obstetras, pautados pelo total respeito à saúde e bem-estar da mulher vem posicionar-se em relação a Lei número 14.598, de 14 de julho de 2023, que incluiu no protocolo de assistência de rotina às gestantes brasileiras a realização de, pelo menos, 2 (dois) exames de ultrassonografia transvaginal durante o primeiro quadrimestre de gestação, assim como ecocardiograma fetal na rotina pré-natal.

Considerando a falta de discussão da matéria e pautada pelo compromisso com a ciência e as melhores evidências clínicas, a FEBRASGO vem a público salientar que a referida lei não está alinhada com as recomendações científicas vigentes e que deveria ser imediatamente revisada e reeditada com adequado alinhamento científico.

Para tal, oferecemos premissas técnicas amparadas pelo rigor científico a fim de subsidiar as instâncias legislativas e o executivo, para que possam oferecer à saúde pública brasileira normativas legais amparadas pelas evidências científicas.

Nesse sentido, salientamos que não são necessárias a realização rotineira de duas ultrassonografias transvaginal no primeiro quadrimestre da gestação. Ao revés, que possam essas ultrassonografias ser realizadas não no primeiro quadrimestre, mas via transvaginal entre 11 e 13 semanas e 6 dias e via abdominal (complementada via transvaginal) entre 20-23 semanas e 6 dias de gestação.

Essa primeira ultrassonografia é importante para a mais precisa datação da gestação, sua localização, a determinação do número de fetos (e sua corionicidade/amnionicidade). Ela também permite visualizar marcadores morfológicos do desenvolvimento, dentre os quais a medida da transluscência nucal e a visualização do osso nasal, bem como avaliação de normalidade de diversas estruturas fetais - já sendo possível diagnosticar uma anencefalia, onfalocele, gastrosquise, entre outras alterações, e assim permitindo uma abordagem precoce ou adequado planejamento pré-natal.

Já a segunda ultrassonografia é importante para determinar, via avaliação abdominal, o crescimento fetal, a localização da placenta e a morfologia fetal, sendo complementado pela avaliação transvaginal a fim de determinar o comprimento do colo uterino para predizer o risco de parto prematuro.  Salienta-se que esse exame é fundamental para rastreio universal da morfologia cardíaca e, se realizado de forma adequada, avaliando-se o corte de quatro câmaras, a visualização dos grandes vasos da base (eixo longo e eixo curto) e o corte dos três vasos-traqueia, é capaz de suspeitar da maior parte dos defeitos cardíacos maiores, selecionando assim os casos que efetivamente precisam ser submetidos a uma ecocardiografia fetal. Os eventuais casos que não são rastreados pela avaliação morfológica do coração fetal não demandarão necessidade de intervenção cirúrgica precoce ao nascimento e, por isso, não necessitam de diagnóstico intrauterino. Sabe-se que a maioria das malformações cardíacas fetais só vai necessitar acompanhamento pelo pediatra e cardiologista infantil durante a infância.

A oferta de ecocardiografia fetal sistemática no pré-natal, como determina a lei em questão, não encontra efetivo amparo nas melhores diretrizes científicas da atualidade. Dessa forma, é difícil afirmar que a oferta da ecocardiografia fetal como exame de rotina do pré-natal possa reduzir a mortalidade neonatal.  

As malformações cardíacas congênitas graves são as malformações mais comuns entre recém-nascidos, sendo responsável pela metade dos óbitos secundários às malformações graves.  Sua incidência é de aproximadamente 8 por 1.000 nascidos-vivos. Segundo dados do DATASUS no ano de 2021, foram registrados 2.758 nascimentos vivos com malformação do sistema circulatório no Brasil.

Dessa forma, o consenso observado na literatura médica é da realização da ecocardiografia fetal, para o grupo de gestantes que possem fatores de risco, podendo ser realizada a partir de 18 semanas, conquanto a melhor visualização das estruturas cardíacas ocorra entre 24 e 28 semanas de gestação.

Abaixo estão elencadas as indicações para a ecocardiografia fetal.

 

Indicações para Ecocardiografia fetal:

  • Suspeita de anomalia estrutural cardíaca
  • Suspeita de anormalidade na função cardíaca
  • Hidropsia fetal
  • Taquicardia fetal persistente (FCF > 180bpm)
  • Bradicardia fetal persistente (FCF < 120bpm) ou suspeita de bloqueio cardíaco
  • Episódios frequentes de ritmo cardíaco irregular persistente
  • Malformação fetal grave extra cardíaca
  • Translucência nucal > 3,5mm ou maior que o percentil 99 para idade gestacional
  • Cromossomopatia em procedimento invasivo ou NIPT
  • Gestação gemelar monocoriônica

 

Fatores que a Ecocardiografia fetal pode ser considerada:

  • Anomalia venosa sistêmica (persistência da veia umbilical direita, veia cava superior esquerda e ausência de ducto venoso)

 

Fatores maternos ou familiares que a ecocardiografia fetal está indicada:

  • Diabetes pré gestacional independente do nível da hemoglobina glicada
  • Diabetes gestacional diagnosticada no primeiro trimestre ou início do segundo trimestre
  • Fertilização in vitro, incluindo injeção intracitoplasmática de espermatozoide
  • Doença auto com anticorpo anti- síndrome de Sjögren relacionado antígeno A, e com filho anterior afetado
  • Parente de 1º grau do feto com doença cardíaca congênita (Pais, irmãos ou gestação anterior)
  • Parente de 1º ou 2º grau com doença de herança Mendeliana e história de manifestação cardíaca na infância
  • Exposição ao ácido retinóico
  • Infecção por rubéola no 1º trimestre

 

Fatores maternos ou familiares que a ecocardiografia fetal pode ser considerada:

  • Exposição a agentes teratogênicos específicos (paroxetina, cabamazepina, litium)
  • Medicação anti-hipertensiva da classe dos inibidores da enzima de conversão
  • Doença auto com anticorpo anti-síndrome de Sjögren relacionado antígeno A, sem filho anterior afetado
  • Parente do 2º grau do feto com doença cardíaca congênita

 

Considerando que tanto a ultrassonografia transvaginal, quando a ultrassonografia abdominal, assim como a ecocardiografia fetal são atos médicos que envolvem treinamento apurado e representam custos para o sistema de saúde, é fundamental que sejam realizados em momento oportunos e indicações precisas a fim de garantir o melhor cuidado para as pessoas grávidas e a custo-efetividade para a gestão dos recursos públicos em saúde.

Por fim, e considerando os enormes desafios em saúde pública que a atenção materno-infantil demandam no Brasil, é fundamental que as ações políticas estejam alinhadas com as melhores evidências científicas a fim de garantir que os recursos necessários sejam aportados onde farão a diferença no cuidado à vida das gestantes e de seus bebês. Por isso, a FEBRASGO espera que a Lei número 14.598, de 14 de julho de 2023, seja imediatamente revisada e reeditada com as premissas aqui apontadas e que estão em consonância com a ciência e boa prática médica.

 

 

Bibliografia consultada:

  1. Pedra SRFF, Zielinsky P, Binotto CN, Martins CN, Fonseca ESVB, Guimarães ICB et al. Diretriz Brasileira de Cardiologia Fetal - 2019. Arq Bras Cardiol. 2019; 112(5):600-648.
  2. Anita J. Moon-Grady, Mary T. Donofrio, Sarah Gelehrter, Lisa Hornberger, Joe Kreeger, Wesley Lee, Erik Michelfelder, Shaine A. Morris, Shabnam Peyvandi, Nelangi M. Pinto, Jay Pruetz, Neeta Sethi, John Simpson, Shubhika Srivastava, Zhiyun Tian. Guidelines and Recommendations for Performance of the Fetal Echocardiogram: An Update from the American Society of Echocardiography, Journal of the American Society of Echocardiography, 2023.
  3. https://datasus.saude.gov.br/informacoes-de-saude-tabnet/
  4. Carvalho JS, Axt-Fliedner R, Chaoui R, Copel JA, Cuneo BF, Goff D, et al. ISUOG Practice Guidelines (updated): fetal cardiac screening. Ultrasound Obstet Gynecol 2023; 61:788–803.

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