Saúde Futura da Mulher com Diagnóstico de Pré-Eclâmpsia
O conhecimento científico disponível atual possibilita a compreensão de que as repercussões da pré-eclâmpsia (PE) sobre o organismo materno não se resumem apenas ao ciclo gravídico-puerperal, mas alcança também a saúde futura da mulher além de seus descendentes (1).
Restam lacunas quanto a compreensão exata para a instalação de sequelas a longo prazo, as teorias apontam que a PE compartilha fatores de risco comuns com doenças que se instalam posteriormente ou cria danos em órgãos a longo prazo (2), sugerindo-se que o motivo pelo qual a PE se associa a doenças no futuro esteja relacionada a dano persistente não identificado anteriormente, ao compartilhamento de fatores de risco e a alterações metabólicas ou a associação de ambos (3).
Sabe-se que a gravidez saudável exerce um teste de stress sobre o organismo materno, considerando que promove um estado metabólico pró-aterogênico, um aumento do rendimento cardíaco, hipercoagulabilidade, aumento da atividade inflamatória, resistência à insulina e hiperlipidemia. E todos esses fenômenos biológicos estão exacerbados nas mulheres que desenvolveram Pré-eclâmpsia e podem persistir após o parto (2).
Entre as teorias quanto à associação de doenças no futuro, aponta-se que a PE pode representar a manifestação precoce ou identificar vulnerabilidade de doença vascular no sistema vascular, expressando uma predisposição a disfunção endotelial (4).
Quanto a este tópico, identificou-se a persistência de marcadores de ativação endotelial, como molécula de adesão intracelular-1 e de adesão vascular-1 por cerca de 15 anos em mulheres que desenvolveram PE (5), como também de inibidores de VEGT (vascular endotelial growth factor) e sTFL-1 (soluble FMS-like tyrosine kinase 1) após um ano (6).
A literatura tem apontado que o antecedente de pré-eclâmpsia é um fator de risco isolado para o desenvolvimento de doença cardíaca isquêmica - RR 2,16 (95% / 1,86 - 2,52) - e hipertensão arterial crônica (HAC) - RR 3,70 (95% / 2,70 - 5,05). A magnitude da doença cardiovascular é dependente da expressão clínica da PE relacionada à época do aparecimento, pois mulheres com pré-eclâmpsia instalada antes de 34 semanas apresentam quatro a oito vezes maior risco de vulnerabilidade que grávidas normais, sendo pelo menos o dobro na sua forma grave do que naquelas mulheres com PE sem sinais de gravidade, além da característica de recorrência, que neste caso amplia as chances de doenças cardiovasculares no futuro (2).
A morte por causa cardiovascular também se relaciona à ocasião do surgimento da PE. Um estudo demonstrou a taxa cumulativa de sobrevivência cardiovascular em 30 anos: PE precoce - 85,9%, PE tardia - 98,3% e sem PE - 99,3% (7), inclusive prematuramente.
O compartilhamento de fatores entre a PE e o acidente vascular encefálico (AVE), como a disfunção endotelial e o desenvolvimento de HAC, pode ser a causa do aumento do risco de acometimento da mulher por esta complicação (8). Atribui-se também que a mulher com antecedente de PE possui pelo menos o dobro do risco em desenvolver tromboembolismo venoso (9). Existem informações disponíveis que também reconhecem o risco de morte prematura relacionada ao antecedente de PE (2).
A associação entre PE e doença renal é clara. A PE oportuniza a manifestação clínica de doença renovascular subjacente e parece provocar danos, relacionados a níveis de sFLT-1 (2). A proteinúria persistente sugere nefropatia subclínica e o risco de insuficiência renal crônica de pelo menos quatro vezes quando ocorreu o desenvolvimento de PE na primeira gestação e de até quinze vezes quando a mulher foi acometida por PE em duas ou três gestações (10).
O desenvolvimento de diabetes tipo II no futuro também está associado ao antecedente de PE, mesmo que não tenha ocorrido diabetes gestacional e após corrigir-se os fatores comuns: obesidade, resistência à insulina, hiperlipidemia e aumento da circunferência abdominal (11). Também estão descritas associações do antecedente de PE com diagnóstico de tireoidopatia no futuro, sendo mais comum nos casos de recorrência (12). Quanto ao desenvolvimento de câncer, os resultados são conflitantes, pesquisas informam redução, aumento (mama e ovário) e ainda que não foi encontrada associação (2).
Vários estudos também têm demonstrado associação entre alterações cognitivas, persistência de lesões da substância branca após a história de eclâmpsia e distúrbios psicológicos, como a diminuição da atenção, concentração, memória e qualidade de vida, depressão pós-parto e síndrome do stress pós-traumático, sendo que esses danos foram mais comuns quando o acometimento da PE foi precoce ou quando ocorreram resultados neonatais adversos (13). Baseados nos dados existentes, é possível estimar os riscos de complicações a longo prazo para as mulheres que desenvolveram pré-eclâmpsia.
Quadro 1. Risco de desenvolvimento de doenças após pré-eclâmpsia (2).
Risco Relativo
Hipertensão arterial crônica 2.5 - 3.7
Doença cardiovascular, se a pré-eclâmpsia associada a RCF 3.9
Doença cardíaca isquêmica (geral) 2.16
Doença cardíaca isquêmica preeclampsia sem sinais de gravidade 2.0
Cardiopatia isquêmica preeclampsia grave 5.36
Mortalidade por doença cardíaca isquêmica 1,38
Morte por doença circulatória 1.30
Morte por doença cardiovascular; PE > 34 semanas TR 2.08
Morte por doença cardiovascular; PE < 34 semanas TR 9,54
Morte prematura (dentro de 25 anos) 2.71
AVE não fatal 1.76
AVE fatal 2.98
AVE preeclampsia > 37 semanas 0,98
AVE preeclampsia < 37 semanas 5,98
Tromboembolismo venoso 1.19
Doença renal em fase terminal 4.7
Diabete melito tipo 2 1,40 - 3,8
Hipotiroidismo 1.7
Câncer TR 0.92 - 0.86
TR: Taxa de Risco RCF: Restrição do Crescimento Fetal AVE: Acidente Vascular Encefálico
Portanto, em ampla perspectiva, baseados no conhecimento atual, reconhece-se que a PE é um marcador tanto de repercussões biológicas quanto de danos psicológicos no porvir de mulher e que, portanto, a possibilidade de desfechos ominosos não se esgota com a dequitação, estimulando o provedor de saúde a possuir um olhar “pós-eclâmpsia”.
Esse assunto se reveste de maior relevância quando consideramos que as principais causas de morte entre a população do sexo feminino no Brasil podem ser influenciadas pela PE, a saber: doenças cerebrovasculares (46.9%), doenças isquêmicas do coração (41.2%), diabete melito (30%), doenças hipertensivas (22.7%), insuficiência cardíaca (15%) (14). Baseados nesta variedade de dados, associações como a American Hearth Association têm incentivado o reconhecimento da história de PE como marcador de risco cardiovascular (15).
Considerando o papel do ginecologista-obstetra como “clínico da mulher”, deve-se valorizar durante a anamnese o antecedente de PE e considerá-lo como risco diferenciado para o desenvolvimento das complicações anteriormente citadas e não desperdiçar a oportunidade de possivelmente reduzir riscos, mantendo o acompanhamento clínico e atuando sobre fatores associados ao estilo de vida. Orientações para o seguimento destas mulheres podem ser obtidas em guidelines e que podem ser resumidas (15) em:
Mudança do estilo de vida: Parar de fumar; atividade física; dieta saudável: rica em frutas, vegetais, alimentos integrais com alto teor de fibras, peixe (2x/s). Limitar a ingestão de gorduras saturadas, colesterol, álcool, sódio e açúcar; e evitar os ácidos graxos trans; manutenção ou redução de peso corporal.
Seguimento clinico: Controle da pressão arterial; avaliação da proteinúria; Avaliação do perfil lipídico e dos níveis glicêmicos.
Essas ações devem ser individualizadas quanto a sua regularidade e valorizar a oferta de informação qualificada à mulher, agente indispensável para esta redução de danos (Quadro 3). Diante de anormalidades identificadas, situações de risco diferenciadas e necessidade de uso de medicamentos específicos, a concomitância de avaliação multidisciplinar será bastante oportuna, a qual deve ser recomendada assim possível (16). Um tópico de destaque é a possibilidade de progressão para insuficiência renal crônica, o questionário de fácil aplicação, apresentado a seguir, pode auxiliar na triagem para doença renal oculta.
Quadro 2. Triagem para Doença Renal Oculta (17).
Você tem doença renal?
Faça este teste e descubra sua pontuação.
Descubra agora se você pode ter doença renal crônica silenciosa.
Verifique cada afirmativa que é verdadeira para você.
Se uma afirmativa não é verdadeira ou você não tem certeza, coloque zero.
A seguir, some todos os pontos para o total.
1. Eu tenho entre 50 e 59 anos de idade (_) Sim (2 pontos)
2. Eu tenho entre 60 e 69 anos de idade (_) Sim (3 pontos)
3. Eu tenho 70 anos de idade ou mais (_) Sim (4 pontos)
4. Eu sou mulher (_) Sim (1 ponto)
5. Eu tive/tenho anemia (_) Sim (1 ponto)
6. Eu tenho pressão alta (_) Sim (1 ponto)
7. Eu sou diabético (_) Sim (1 ponto)
8. Eu tive um ataque cardíaco (infarto) ou derrame/AVC/AVE (_) Sim (1 ponto)
9. Eu tenho insuficiência cardíaca congestiva ou insuficiência cardíaca (_) Sim (1 ponto)
10. Eu tenho problema de circulação/doença circulatória em minhas pernas (_) Sim (1 ponto)
11. Meu exame mostrou que eu tenho perda de proteína na minha urina (_) Sim (1 ponto)
Total _________
Se você marcou 4 ou mais pontos:
Você tem 1 chance em 5 de ter doença renal crônica.
Na sua próxima visita a um médico, um simples exame de sangue deve ser pedido. Somente um profissional de saúde pode determinar com certeza se você tem doença renal.
Se você marcou 0-3 pontos:
Você, provavelmente, não tem uma doença renal agora, mas, pelo menos uma vez por ano, você deve fazer esta pesquisa.
Em última análise, a proposta atual de atuação do tocoginecologista é a sua participação ativa quando realizar o seguimento pós-parto ou quando presta atenção em fases diferentes da vida das mulheres, devendo realizar uma anamnese crítica e participativa, a solicitação de exames complementares oportunamente e a oferta de informações à pessoa sob cuidados, a estimulando a ser um agente dinâmico nas ações preventivas. Enfim, atuando com sensibilidade e esmero técnico quanto à saúde futura da mulher com diagnóstico de pré-eclâmpsia.
Quadro 3. Fluxograma de atenção à saúde futura da mulher com diagnóstico de pré-eclâmpsia.
• A meta das ações é a prevenção e reconhecimento precoce das complicações
• A frequência deve ser individualizada
• Fisiologia de atendimento multidisciplinar
REFERÊNCIAS
1. Neiger R. Long-Term Effects of Pregnancy Complications on Maternal Health: A Review. J Clin Med. 2017; 6(8): 76.
2. Tranquilli AL, Landi B, Giannubilo SR, Sibai BM. Preeclampsia: No longer solely a pregnancy disease. Pregnancy Hypertens. 2012;2(4):350-7.
3. Sattar N. Do pregnancy complications and CVD share common antecedents? Atheroscler Suppl. 2004;5(2):3-7.
4. Pettit F, Brown MA. The management of pre-eclampsia: what we think we know. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol 2012;160:6-12.
5. Sattar N, Ramsay J, Crawford L, Cheyne H, Greer IA. Classic and novel risk factor parameters in women with a history of preeclampsia. Hypertension 2003;42:39-42.
6. Wolf M, Hubel CA, Lam C, Sampson M, Ecker JL, Ness RB, et al. Preeclampsia and future cardiovascular disease: potential role of altered angiogenesis and insulin resistance. J Clin Endocrinol Metab 2004;89:6239-43.
7. Mongraw-Chaffin ML, Cirillo PM, Cohn BA. Preeclampsia and cardiovascular disease death: prospective evidence from the child health and development studies cohort. Hypertension 2010;56:166-71.
8. Bushnell C, Chireau M. Preeclampsia and stroke: risks during and after pregnancy. Stroke Res Treat 2011;2011:858134.
9. Bellamy L, Casas JP, Hingorani AD, Williams DJ. Pre-eclampsia and risk of cardiovascular disease and cancer in later life: systematic review and meta-analysis. BMJ. 2007;335(7627):974.
10. Vikse BE, Irgens LM, Leivestad T, Skjaerven R, Iversen BM. Preeclampsia and the risk of end-stage renal disease. N Engl J Med. 2008 21;359(8):800-9.
11. Carr DB, Newton KM, Utzschneider KM, Tong J, Gerchman F, Kahn SE, et al. Preeclampsia and risk of developing subsequent diabetes. Hypertens Pregnancy 2009;28:435-47.
12. Levine RJ, Vatten LJ, Horowitz GL, Qian C, Romundstad PR, Yu KF, et al. Pre-eclampsia, soluble fms-like tyrosine kinase 1, and the risk of reduced thyroid function: nested case–control and population based study. BMJ 2009;339:b4336.
13. Rep A, Ganzevoort W, Bonsel GJ, Wolf H, de Vries JI. Psychosocial impact of early-onset hypertensive disorders and related complications in pregnancy. Am J Obstet Gynecol 2007;197:158.e1-6.
14. Ministério da Saúde/SVS/CGIAE. Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). 2012.
15. Mosca L, Benjamin EJ, Berra K, Bezanson JL, Dolor RJ, Lloyd-Jones. Effectiveness-based guidelines for the prevention of cardiovascular disease in women - 2011 update: a guideline from the American Heart Association. Am Coll Cardiol. 2011;57:1404-23.
16. Brunström M, Carlberg B. Association of Blood Pressure Lowering With Mortality and Cardiovascular Disease Across Blood Pressure LevelsA Systematic Review and Meta-analysis. JAMA Intern Med. Published online November 13, 2017. doi:10.1001/jamainternmed.2017.6015.
17. Magacho EJC, Andrade LCF, Costa TJF, de Paula EA, Araújo SS, Pinto MA et al. Tradução, adaptação cultural e validação do questionário Rastreamento da Doença Renal Oculta (Screening For Occult Renal Disease - SCORED) para o português brasileiro. J Bras Nefrol. 2012:251-258.