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Será que chegou o momento de abandonarmos os conceitos de Friedman sobre trabalho de parto?

Quarta, 12 Julho 2017 10:02
A incorporação de avanços científicos ao longo dos anos mudou o panorama obstétrico e reduziu a morbimortalidade (MM) materna e perinatal. A cesárea (CS) deixou de ser o parto utilizado apenas “na última hora” para se tornar, em situações de risco, a melhor opção para o binômio1. A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou, em 1985, que nenhuma região deve ter taxas de CS maiores que 15%2. No entanto, percentuais superiores a esse existem em diversas regiões do mundo sem estarem associados a reduções concomitantes da MM de mães e recém-nascidos (RN), o que levanta a preocupação de que ela seja realizada em demasia3-5. Ao contrário, várias publicações têm apontado complicações maternas e perinatais relacionadas ao excesso de CS “desnecessárias”6-10.

O aumento aparentemente incontrolável das CS e a contribuição da distocia para esse aumento estimularam a comunidade científica a reavaliar os conceitos referentes ao trabalho de parto (TP), estabelecidos por Emanuel Friedman, nas décadas de 1950 e 6011,12. Ao descrever o TP de 500 nulíparas, Friedman demonstrou que a relação entre a progressão da dilatação cervical (DC) e o tempo é representada por uma curva sigmoide13. Além disso, esse período de dilatação foi historicamente dividido em fase latente e fase ativa, a depender da velocidade com que a dilatação ocorra, sendo a fase latente mais longa e com duração de até 20 horas. Na fase ativa, que se inicia com 4 cm, a velocidade da DC aumenta significativamente, sendo possível estabelecer os diagnósticos de distocias, também definidos por Friedman14. Segundo esse autor, fase ativa prolongada é diagnosticada quando a DC é progressiva, porém se dá em velocidade inferior a 1 cm/hora. Parada secundária da dilatação é definida como ausência de progressão da dilatação em dois exames cervicais com intervalo de pelo menos duas horas, na presença de contrações uterinas adequadas. Estas definições foram amplamente adotadas e aplicadas na prática obstétrica durante os últimos 60 anos.

O trabalho de Friedman (1955) foi brilhante pela repercussão que teve na assistência obstétrica, entretanto essa assistência mudou muito desde então, assim como as características das parturientes. Vários autores tentaram estabelecer novas curvas com suas populações, mas foram os trabalhos de Zhang e cols. que mudaram esse cenário15,16. Em sua publicação de 2002, Zhang e cols. avaliaram a curva de evolução da DC ao longo do TP de primigestas, demonstrando que a transição da fase latente para a ativa é mais gradual do que a observada na curva de Friedman. Além disso, os autores mostraram que, dos 4 aos 6 cm, a velocidade da DC é mais lenta que a historicamente descrita, podendo essa transição durar até 10 horas, e que somente após os 6 cm a dilatação ocorre na velocidade relatada anteriormente por Friedman13,15. Por isso, as distocias só poderiam ser diagnosticadas a partir dos 6 cm, quando então se iniciaria a fase ativa do TP.

Em 2010, Zhang e cols. publicaram dados mais robustos do estudo retrospectivo multicêntrico Consortium on Safe Labor, no qual sugeriram novos conceitos para progressão “normal” do TP e correção de distocias16. Este estudo extraiu dados de partos de 62.415 mulheres, de paridade variada, em 19 hospitais nos EUA, nos anos de 2002 a 2008. A análise dos dados coletados confirmou a progressão mais lenta da DC dos 4 aos 6 cm, independente da paridade da paciente e demonstrou que, a partir de 6 cm, a velocidade de DC realmente aumenta, sendo significativamente maior em multíparas quando comparadas as primigestas. Além disso, esse estudo estabeleceu novos limites superiores da normalidade para duração do período expulsivo para primigestas, de 3,6 e 2,8 horas, caso haja ou não analgesia de parto, respectivamente, independente de qualquer progressão da descida fetal17. Cumpre destacar que esses limites acrescentam uma hora aos estabelecidos por Friedman13,14. Por fim, com base nesses novos achados referentes ao TP, os autores sugerem a adoção de novos partogramas para primigestas diferentes do recomendado pela OMS, cuja construção leva em consideração os conceitos de Friedman18-20. Esses partogramas não teriam linhas de alerta, mas cada parturiente, de acordo com a DC detectada em sua admissão, teria sua própria linha de ação (exponencial em degraus) para realização de intervenções.

Como resultado do estudo de Zhang e cols. (2010), novas estratégias para redução de CS em primigestas foram publicadas pelo American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG) e pela Society for Maternal-Fetal Medicine e adotadas por muitos da comunidade obstétrica21. Porém, a adesão a essas novas diretrizes deve ser avaliada com cautela, uma vez que esse estudo apresenta inúmeras limitações16,17. Provavelmente, as diferenças encontradas entre as curvas de Friedman e Zhang e cols. (2010) são consequentes aos diferentes modelos matemáticos utilizados para ajustá-las, com sérios questionamentos sobre o método utilizado por esse último13,16. Zhang e cols. (2010) incluíram apenas gestações a termo de fetos cefálicos, em TP espontâneo, que terminaram em parto vaginal e com resultado perinatal normal. As exclusões de pacientes que foram submetidas à cesárea, à indução do TP, com TP que duraram menos de três horas, fetos grandes ou RN com baixo peso certamente influenciaram os limites de normalidade estabelecidos para as medidas de tempo. Vale destacar que os dados foram coletados de pacientes inseridas na prática obstétrica atual, onde 45–47% utilizaram ocitocina e 71–84% foram submetidas à analgesia farmacológica. Além disso, deve-se apontar a possibilidade de ampla variabilidade na avaliação cervical realizada por inúmeros profissionais, em diferentes instituições e o fato de que essas avaliações não foram, em sua totalidade, horárias.  

Apesar de sedutores, os achados de Zhang e cols. (2010) carecem de validação. Vários estudos são necessários para se verificar a validade dos novos partogramas como estratégia de redução de CS e quais os efeitos das intervenções propostas para correção das distocias redefinidas pelos autores. Os mesmos encorajam TP consideravelmente mais longos do que os assistidos nos dias de hoje, tanto para a fase de dilatação como para o período expulsivo, mas não fornecem qualquer evidência sólida de segurança materna e/ou perinatal.

Com o exposto acima, obviamente o TP, no atual cenário, precisa ser reavaliado e as definições de "normal" e "anormal" devem ser reexaminadas, sem nos esquecermos que a avaliação clínica do TP é essencialmente um processo constante de análise da probabilidade de um parto vaginal seguro. Gráficos são excelentes ferramentas para esse propósito, porém nunca devem ser usadas isoladamente, uma vez que o TP é um processo dinâmico no qual muitos fatores maternos, fetais, relacionados ao local, equipe e forma de assistência contribuem para um resultado obstétrico de sucesso. Será que temos dados suficientes para substituir os conceitos de Friedman utilizados nos últimos 60 anos? 



Escrito por: Profa. Dra. Alessandra Cristina Marcolin. Professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo.



Referências

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  3. Villar J, Valladares E, Wojdyla D, Zavaleta N, Shah A, Campodónico L, et al. Caesarean delivery rates and pregnancy outcomes: the 2005 WHO global survey on maternal and perinatal health in Latin America. Lancet 2006; 367 (9525): 1819–29.
  4. Gibbons L, Belizan JM, Lauer JA, Betran AP, Merialdi M, Althabe F. Inequities in the use of cesarean section deliveries in the world. Am J Obstet Gynecol 2012; 206(4): 331.e1-19.
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