Anencefalia e Poder Judiciário
Terça, 04 Julho 2017 13:55
Quando se trata de direito à vida do ser humano, sabe-se que a vida deverá sempre ser preservada, pois se trata de direito inviolável, protegido pela Constituição Federal; mas, quando o direito à vida se tratar de um feto anencefálico, deve-se ater às exceções, pois, nesse caso, não existe “vida” a ser protegida.
Justifica-se que, em 1940, quando entrou em vigência o Código Penal Brasileiro, não havia meios de diagnóstico pré-natal eficazes para se constatar, de forma segura, as malformações fetais, assim como constatar que a gestante carregava em seu ventre um feto sem qualquer expectativa de vida, enfatiza-se, anencéfalo. Situação que hoje não perdura.
Bobbio (1992, p. 94), prevendo a evolução que a sociedade viria a sofrer, já dizia que é certo que os direitos dos homens iriam se modificar; tanto é que direitos declarados absolutos no final do século XVIII, ganharam limitações nas declarações atuais. Ainda, direitos que não haviam sido cogitados em tal época, foram declarados de suma importância. [...] o que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas.
A possibilidade jurídica de se permitir, no Brasil, a interrupção da gestação em casos de malformações congênitas fetais de caráter letal é assunto recorrente na doutrina e na jurisprudência. Isso porque o Código Penal de 1940, publicado segundo os hábitos e costumes dominantes na década de 1930, não prevê a possibilidade de aborto em situações além das previstas, consideradas especiais, que excluem a ilicitude do aborto necessário (quando não há outro meio de salvar a vida da gestante) e do aborto humanitário (quando a gravidez resulta de estupro e há consentimento da gestante ou de seu representante legal.
Em 12 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por 8 votos à 2 que aborto de feto anencéfalo não é crime. O primeiro voto foi do Ministro Carlos Ayres Brito, que defendeu que não se pode falar em aborto de anencéfalo, porque o que as mulheres carregam no ventre nesses casos, é um natimorto cerebral, sem qualquer expectativa de vida. “ Dar à Luz é dar a Vida, e não a Morte “, afirmou, acrescentando que se os homens engravidassem, a interrupção da gravidez de anencéfalos estaria autorizada desde sempre.
Portanto, o STF em 2012, proferiu decisão histórica da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, baseando-se na premissa de que somente o feto com capacidade de ser pessoa pode ser sujeito passivo de crime de aborto. Ressalta-se a existência de numerosas síndromes malformativas, também incompatíveis com a vida extrauterina, que também devem ser objeto de regulamentação, com base na isonomia.
Afirmou-se no julgamento que a malformação fetal deve ser diagnosticada e identificada por profissional médico legalmente habilitado. O Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou por unanimidade a Resolução CFM 1.989/2012, atendendo a grande demanda jurídica e social. Dentre as diretrizes definidas pela norma para o diagnóstico de malformação fetal, ressaltou-se que ele será realizado por meio de exame ultrassonográfico após a décima segunda semana de gestação e que o laudo deverá ser assinado por dois médicos capacitados e a gestante poderá pleitear junta médica para os esclarecimentos devidos, a fim de tenha garantido o seu direito de decidir livremente sobre a conduta a ser adotada, a qual deverá ser de caráter imediato.
Caso opte por manter a gestação até o seu termo, a gestante deverá ser encaminhada ao pré-natal de alto risco. Deverá também ser informada de que o risco de reincidência da malformação em futuras gestações é cinquenta vezes maior; sendo que o uso de Ácido Fólico pré-gestacional pode reduzir pela metade este risco. A partir desta decisão, cabe aos médicos do Sistema Único de Saúde (SUS) promover o suporte e tratamento adequado desta gestante, mediante orientação e apoio obstétrico e psicológico, para que ela tenha a liberdade de adotar a resolução que melhor se ajuste à sua convicção particular. Hoje a interrupção da gestação de feto anencéfalo não é mais uma decisão estritamente judicial, mas faz parte do Protocolo dos Programas de Saúde Pública.
A anencefalia é doença letal que ocorre em 1 a 5 casos por 1000 nascidos vivos, mais frequentemente em meninas. (6). Trata-se de defeito de fechamento da porção anterior do Tubo Neural, com ausência parcial do encéfalo e da calota craniana, podendo apresentar algumas partes do Tronco Cerebral funcionando, garantindo algumas funções vitais do feto, como respiração, batimentos cardíacos, deglutição.... Também ocorrem fenda palatina e anormalidades das vértebras cervicais.
Outras anomalias congênitas incompatíveis com a vida extrauterina são capazes de gerar jurisprudência nessa área. Estudo realizado por pesquisadores pernambucanos demonstrou que mais de 20% das gestações de fetos com anomalias congênitas terminam em abortamento espontâneo, e que os 80% restantes irão nascer vivos ou mortos, resultando em uma proporção de 3% a 5% de recém-nascidos portadores dessas anomalias que permanecem vivos após o nascimento. O encéfalo é frequentemente acometido durante a vida intrauterina, por causa de sua formação, a qual, além de complexa, se estende por um longo período, o que o torna suscetível a anormalidades de desenvolvimento, desde a 3ª até a 16ª semana de gestação. São diversas as malformações congênitas do sistema nervoso central que podem resultar em formas extremas incompatíveis com a vida plena extrauterina. Entre elas, as menos raras são a holoprosencefalia e as formas de craniorraquisquise, mielosquise e meningoencefalocele total. Tais defeitos de fechamento do tubo neural são anomalias espectrais que podem estar presentes isoladamente ou em associação com outras alterações em órgãos distintos, originando síndromes malformativas multissistêmicas de variadas etiologias. Note-se que a própria anencefalia pode estar associada a problemas cromossômicos, como as trissomias dos cromossomos 18 e 13, triploidias e alterações estruturais, além de diversas outras anomalias congênitas, como defeitos ósseos, malformações cardíacas, renais e da parede abdominal.
Pedidos de Tratamento Jurídico Isonômico baseados em jurisprudência, com pedidos de antecipação terapêutica do parto, tendo como motivo síndromes malformativas diversas, são cada vez mais frequentes nos Tribunais de Justiça. Diante da certeza médica de que o feto será natimorto, esses pedidos são aceitos, com base na liberdade, autonomia de vontade e dignidade da gestante, sendo a ela permitida a interrupção da gravidez, também por riscos à sua saúde e possível dano psicológico.
Partindo da premissa de que o aborto presume potencialidade de vida extrauterina, a antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos, ou com outras anomalias incompatíveis com a vida, é amparada pelo ordenamento jurídico e a gestante usará esta faculdade, se o desejar; ante a ausência de circunstâncias de crime de aborto, já que a denominação “Morte Legal” equivale a Morte Encefálica. O direito à vida torna-se irrelevante por se tratar de um feto que não sobreviverá e ainda colocará em risco a vida da gestante. Não se trata de Eugenia de Raças, mas de diminuir o sofrimento não só desta, mas também de toda a família.