ABUSO SEXUAL: Manifesto da CNE de Sexologia e da CNE de Ginecologia Infanto-Puberal da FEBRASGO.
Segunda, 24 Agosto 2020 13:57
Vimos, por essa nota, demonstrar o nosso profundo pesar pela lamentável tragédia vivida pela menina de 10 anos, uma vítima da violência sexual e da violência social. Nós, os profissionais de saúde, por exigência da nossa profissão, convivemos todos os dias com essa tragédia e estamos abalados, porque conhecemos muito bem, a triste trajetória das vítimas do abuso sexual.
Na infância as meninas violentadas são condicionadas ou subjugadas pelo abusador dia-após-dia, a resistirem solitárias, mudas e subservientes, ao uso do seu corpo indefeso. Elas vivenciam o medo e a solidão, uma vez que o perpetrador é, com frequência, alguém próximo ou familiar, que deveria ser responsável pela sua proteção e, ao contrário, trai esta confiança deixando-as jogadas à própria sorte (1).
A familiaridade do abusador com a criança passa para ela, de início, a mensagem de que o ato abusivo é um acontecimento “normal” porque carícias, brincadeiras e presentes são os artifícios que o perpetrador usa para assediar a criança. Mas, a repetição do abuso sexual irá gerar na criança uma reação negativa. Nesse momento, o abusador passa para a estratégia de ameaças e, com medo, a criança continua se submetendo. A partir daí, ela passa a desenvolver insegurança, ansiedade, choro fácil, distúrbio de comportamento, insônia e depressão quase sempre despercebidas ou negligenciadas pelos adultos.
Na adolescência, as vítimas do abuso sexual vivenciam o rebaixamento da autoestima, o sentimento de menos valia, a insegurança, dificuldades no convívio social, tendência ao isolamento, aos desvios de comportamento, predisposição para álcool e drogas (2) que vão se traduzir, na vida adulta, em depressão, ansiedade, ideação e tentativa de suicídio e transtorno do estresse pós traumático (3) (1).
Em nosso país configura-se crime de estupro de vulnerável ter relações sexuais com pessoas menores de 14 anos, cabendo nestes casos, a aplicação da punição ao agressor (4). Em um país onde a minoria dos abusos envolvendo crianças e adolescentes são notificados, provavelmente é grande o número de crianças e adolescentes que são obrigadas a continuarem convivendo com o abusador e sendo abusadas.
Infelizmente, um terço das mulheres sofrem abuso sexual na infância (5). Essas mulheres são invisíveis à sociedade por medo de se expressarem e pela culpa que sentem de terem se submetido ao abuso. Mas a invisibilidade delas resulta, também, da opção da família de manter o silêncio sobre a violência (6), para minimizar o sofrimento ou para proteger o abusador de consequências jurídicas (7).
A violência sexual, deixa marcas profundas nas vítimas de qualquer idade, sendo a gravidez uma das suas inúmeras consequências. Ressalta-se que nestas situações, a vítima tem o direito garantido conforme a legislação brasileira vigente, no Decreto-Lei nº 3.688 3 de outubro de 1941, Artigo 128, à interrupção da gestação.
A situação desta criança de 10 anos, além de ter sua infância soterrada, depois de ser abusada, enfrentar uma gestação que é de altíssimo risco (8) (9), e dar à luz outra criança, retrata um cenário desolador, que vai contra todas as leis de proteção e reconhecimento dos direitos da Criança e do Adolescente criadas neste país (10).
A objeção de consciência é um direito individual, mas não pode ser um obstáculo a um direito reprodutivo e da proteção da mulher. O direito individual não pode cercear o aborto pós-estupro, direito inalienável, protegido por lei. Cada região deste país necessita ter seu serviço de referência organizado e à disposição da criança, da adolescente ou da mulher adulta vítima do estupro, e necessitando de assistência à saúde, inclusive de aborto legal.
A tragédia vivida pela criança de 10 anos durante quatro anos é um alerta sobre o sofrimento silencioso, solitário e muitas vezes fatal, das vítimas do abuso sexual. Sendo assim, são fundamentais medidas de prevenção da violência sexual contra a mulher desde a infância. Já está demonstrado que são efetivas as estratégias que envolvem a educação sexual, preferencialmente em cenários escolares e comunitários (1). Ações associadas à uma educação integral em sexualidade irão munir as crianças e adolescentes de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que irão capacitá-las a cuidar de sua saúde, bem-estar, dignidade, e ajudarão as crianças a identificarem e denunciarem comportamentos inadequados, como o abuso infantil (11).
REFERÊNCIAS
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Priebe G, Svedin CG. Child sexual abuse is largely hidden from the adult society. An epidemiological study of adolescents’ disclosures. Child Abuse Negl. dezembro de 2008;32(12):1095–108.
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Sauzier M. Disclosure of child sexual abuse. For better or for worse. The Psychiatric clinics of North America. junho de 1989;12(2):455–69.
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Leftwich HK, Alves MVO. Adolescent Pregnancy. Pediatr Clin North Am. 2017;64(2):381–8.
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Decreto 99710/90 | Decreto no 99.710, de 21 de novembro de 1990, Presidência da Republica [Internet]. [citado 21 de agosto de 2020]. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/114072/decreto-99710-90
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Situação da População Mundial 2019 [Internet]. UNFPA Brazil. 2019 [citado 21 de agosto de 2020]. Disponível em: https://brazil.unfpa.org/pt-br/publications/situacao-da-populacao-mundial-2019
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