DOI: S0100-72032015000200094 - volume 37 - Fevereiro 2015
Karina Serravalle, José Eduardo Levi, Cristina Oliveira, Conceição Queiroz, Ádila Dantas, Eduardo Studart
O câncer cervical ou do colo do útero é responsável por cerca de 500 mil novos casos de câncer no mundo anualmente e aproximadamente 231 mil mulheres morrem anualmente por este tipo de neoplasia1. Para o ano de 2014, no Brasil, são esperados 15.590 casos novos de câncer do colo do útero, com uma incidência estimada de 15,3 casos para 100 mil mulheres e para o estado da Bahia são esperados 1.120 casos novos2. No Brasil, registra-se uma prevalência da infecção por papilomavírus humanos (HPVs) oncogênicos semelhante à de outros países, variando entre 9 e 27% na população de rastreio3 , 4.
A relação entre câncer cervical e HPV do grupo oncogênico está bem estabelecida. Com o uso de técnicas de biologia molecular se consegue detectar o DNA do HPV em 99,7% dos espécimes de câncer cervical invasivo5 , 6. A detecção do DNA do HPV pela técnica de reação em cadeia da polimerase (PCR) é fundamental para determinar o genótipo de HPV presente em amostras clínicas provenientes das mucosas genitais a fim de verificar se os HPVs são de alto ou baixo risco para o desenvolvimento das neoplasias cervicais. Além disso, a determinação do genótipo do HPV auxilia também na escolha da conduta mais apropriada para pacientes infectadas por esse vírus e é importante em estudos epidemiológicos e de história natural7. Existem diversas técnicas para detecção dos genótipos de HPV, cada uma com sua sensibilidade e especificidade características. O Linear Array é um ensaio manual com interpretação subjetiva, o PapilloCheck é parcialmente manual com a vantagem de automação na última fase do processo, quando o chip é varrido por um scanner a laser, evitando interpretação subjetiva.
O desenvolvimento do câncer cervical está ligado a infecções persistentes por HPVs oncogênicos e geralmente é precedido por um período de latência. Entretanto, apenas uma minoria de mulheres infectadas por HPVs oncogênicos irá desenvolver o câncer8. A lesão intra-epitelial de alto grau (LIAG) é precursora do câncer cervical e ocorre quando o HPV, replicando em células imaturas, impede a maturação do epitélio e sua diferenciação, induzindo uma replicação contínua de células imaturas e acúmulo de anormalidades genéticas que poderão levar à formação de um clone de células cancerosas9.
A taxa de associação entre mulheres com diagnóstico de LIAG e infecção por HPV é bastante alta, especialmente em relação ao HPV1610. No estado da Bahia, só há um trabalho descrevendo especificamente os genótipos em mulheres com esse tipo de lesão11. No presente estudo foram selecionadas as técnicas de genotipagem Linear Array e PapilloCheck, pois são testes altamente sensíveis e bem aceitos na literatura para a identificação dos principais genótipos oncogênicos que podem acarretar o desenvolvimento de LIAG. O presente trabalho tem como objetivo comparar o desempenho de duas técnicas de genotipagem para HPV em mulheres com LIAG em Salvador, Bahia.
Trata-se de um estudo transversal feito com mulheres provenientes do Instituto de Diagnóstico e Exames Médicos (IDEM) e do Centro Estadual de Oncologia (CICAN), centros de referência em patologia cervical na cidade de Salvador, Bahia, recrutadas no período de julho de 2006 a janeiro de 2009. Foram selecionadas 88 mulheres com diagnóstico citopatológico de LIAG.
Cerca de 15 dias após o diagnóstico citopatológico de LIAG, as pacientes retornaram ao ambulatório, aonde preencheram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para participar do estudo. Em seguida, foram realizadas a coleta de células do colo uterino para genotipagem do HPV e a biópsia sob visão colposcópica da área da zona de transformação atípica (ZTA) para análise histopatológica do fragmento retirado.
Das 88 mulheres selecionadas com diagnóstico citopatológico de LIAG, 41 (46,6%) tiveram o diagnóstico confirmado de NIC2+ com o exame histopatológico e foram encaminhadas para realização da genotipagem com o uso das técnicas Linear Array (Roche Molecular Diagnostics, Alameda, CA) e PapilloCheck (Greinerbio-one(r), Monroe, NC).
As amostras foram coletadas com escova e transferidas para um tubo contendo 1 ml do meio Universal Collection Medium (UCM) (Qiagen, Biotecnologia do Brasil LTDA.). O material coletado foi mantido sob refrigeração de 2 a 8ºC e transportado para o laboratório de Ginecologia do Complexo Hospitalar Universitário Professor Edgar Santos (Com-HUPES) em até 14 dias após a coleta. A extração do DNA-HPV foi realizada através da técnica fenol-clorofórmio.
O teste de genotipagem Linear Array HPV (Genotyping Test, Roche Molecular Diagnostics, Alameda, CA) é um teste qualitativo in vitro capaz de detectar simultaneamente 37 tipos de HPV: 6, 11, 16, 18, 26, 31, 33, 35, 39, 40, 42, 45, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 58, 59, 61, 62, 64, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73(MM9), 81, 82(MM4), 83(MM7), 84(MM8), IS39 e CP6108.
As amostras foram amplificadas utilizando o conjunto de primers genéricos para HPV denominados PGMY09/11 biotinilados12, que amplificam um fragmento de 450 pares de bases (pb), correspondente à região L1 do HPV, e os primers GH20 e PC04, também biotinilados, que amplificam um fragmento de 268 pb do gene da β-globina humana, utilizado como controle de qualidade da amostra e dos processos de extração, amplificação e hibridização, seguindo as especificações do fabricante.
A identificação dos diferentes genótipos do HPV foi feita mediante leitura visual das linhas azuis que apareceram nas tiras, as quais foram comparadas com o padrão das linhas de referência fornecidas pelo fabricante.
O ensaio PapilloCheck (Greinerbio-one(r), Monroe, NC) permite a detecção e genotipagem simultânea de 24 tipos de HPV. Entre eles, 18 genótipos são classificados como de alto risco (HPVs 16, 18, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 53, 66, 56, 58, 59, 68, 70, 73 e 82), enquanto 6 são de baixo risco (HPVs 6, 11, 40, 42, 43, 44/55). Esse teste utiliza um PCR multiplex com primers fluorescentes que amplificam um fragmento de 350 pb do gene E1 do HPV, compreendendo 28 sondas, cada uma em 5 replicatas fixadas em um chip de DNA. A co-amplificação do gene humano ADAT1 é utilizada como controle interno da reação. A hibridização é realizada em um chip de microarray, que é automaticamente escaneado e analizado utilizando o CheckScanner(tm) (GreinerBio-One) e o software CheckReport(tm) (GreinerBio-One), respectivamente. Os resultados gerados foram considerados como positivos ou negativos para cada genótipo contemplado no teste.
Os dados obtidos foram armazenados em um banco de dados do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 20.0, que também foi utilizado como ferramenta para a comparação dos resultados da genotipagem entre as duas técnicas. Os dados foram apresentados por meio de gráficos.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Com-HUPES (001/2007). Foram respeitadas a Declaração de Helsinque da Associação Médica Mundial e a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde Brasileiro.
Das 41 amostras analisadas, o HPV foi detectado em 38 amostras (92,7%), apenas 1 amostra (2,4%) foi considerada inválida devido à ausência da amplificação do gene da β-globina humana e em 2 (4,9%) o HPV não foi detectado. Das 38 amostras positivas para HPV, 76,3% (29/38) apresentaram infecção múltipla e somente 23,7% (9/38) apresentaram infecção por um único tipo de HPV. O HPV 16 foi o mais prevalente, sendo encontrado em 86,8% das amostras; nas infecções múltiplas, o HPV 16 esteve presente em 93,1% (27/29) das amostras e nas infecções únicas em 66,7% (6/9). Os outros 4 genótipos mais prevalentes foram o HPV 56 (26,5%), HPV 35 (26,5%), HPV 45 (18,4%) e o HPV 70 (18,4%). O HPV 18 esteve presente apenas em três amostras (7,9%). Dentre as mulheres com infecção única, 6 apresentaram infecção pelo HPV 16 (66,7%), 2 pelo HPV 18 (22,2%) e 1 pelo HPV 35 (11,1%). A composição dos cinco genótipos mais frequentes de HPV detectados pela técnica Linear Array está exposta na Figura 1.
Figura 1.
Frequência dos cinco genótipos mais frequentes do papilomavírus humano detectados pela técnica Linear Array em mulheres com lesão intra-epitelial de alto grau
Das 41 amostras analisadas, o HPV foi detectado em 35 (85,4%). Cinco amostras (12,2%) foram consideradas inválidas devido à ausência da amplificação do gene ADAT1 e 1 (2,4%) foi negativa para HPV. Destas 35 mulheres positivas para HPV por esse método, 77,1% (27/35) apresentaram infecção múltipla e somente 22,9% (8/35) apresentaram um único tipo de HPV. O HPV 16 foi o mais frequente, sendo encontrado em 80,0% (28/35) das amostras; nas infecções múltiplas o HPV 16 esteve presente em 81,5% (22/27) das amostras e nas infecções únicas, em 75,0% (6/8).
Os outros 4 genótipos mais prevalentes foram o HPV 56 (22,8%), HPV 11 (22,8%), HPV 35 (20,0%) e o HPV 42 (20,0%). O HPV 18 esteve presente em apenas em 3 amostras (8,6%). Nas mulheres com infecção única, 6 foram causadas pelo HPV 16 (75,0%), 1 pelo HPV 18 (12,5%) e 1 pelo HPV 35 (12,5%). A composição dos cinco genótipos mais frequentes do HPV detectados pelo PapilloCheck está exposta na Figura 2.
Figura 2.
Frequência dos cinco genótipos mais frequentes do papilomavírus humano detectados pela técnica PapilloCheck em mulheres com lesão intra-epitelial de alto grau
Dentre as 36 amostras válidas, 35 (97,2%) foram consideradas positivas em ambos os testes e apenas 1 amostra (2,8%) foi considerada discordante: positiva no Linear Array e negativa no PapilloCheck. Os testes apresentaram uma concordância de 97,2% (35/36) para a detecção do HPV. Houve cinco amostras inválidas: dessas, uma foi inválida para as duas técnicas, duas amostras foram positivas no Linear Array e inválidas no PapilloCheck e duas amostras foram negativas no Linear Array e inválidas no PapilloCheck.
Os dois testes apresentaram uma taxa de detecção de 83,4% (35/41) para HPVs oncogênicos, tanto em infecções múltiplas quanto em infecções por um único tipo de HPV. A relação entre número de genótipos de HPVs oncogênicos em infecções únicas e múltiplas está demonstrada na Figura 3.
Figura 3.
Relação entre número de genótipos de papilomavírus humano oncogênicos e técnicas utilizadas no diagnóstico molecular do vírus em mulheres com lesão intra-epitelial de alto grau
O teste de genotipagem Linear Array apresentou 22,5% (9/40) de infecção por um único genótipo de HPV; 72,5% (29/40) com 2 ou mais genótipos e em apenas 5,0% das amostras (2/40) o HPV não foi detectado. No teste PapilloCheck, os achados foram condizentes com o Linear Array, apresentando um índice para infecção única de 22,2% (8/36) de infecção por 2 ou mais genótipos de 75,0% (27/36) e apenas em 1 amostra (2,8%) não foi possível a identificação do genótipo do HPV por esse teste (Figura 3). Em suma, foi observado um índice semelhante de infecção por múltiplos tipos do HPV nos dois testes analisados: Linear Array com 72,5% (29/40) e PapilloCheck com 75,0% (27/36). Uma tabela com os resultados da anatomia patológica e das técnicas Linear Array e PapilloCheck estão disponíveis mediante solicitação aos autores.
Este é o primeiro estudo a comparar o desempenho de duas técnicas de genotipagem em mulheres com LIAG em nossa região. Os dois testes apresentaram taxa de detecção equivalente para os genótipos oncogênicos do HPV tanto em infecções múltiplas quanto únicas. Resultados semelhantes aos do presente estudo foram encontrados por outros autores13 - 15.
Os genótipos mais prevalentes detectados com uso da técnica do Linear Array neste estudo foram: HPV 16, HPV 56, HPV 35, HPV 45 e HPV 70, e os genótipos mais prevalentes detectados pela técnica PapilloCheck foram: HPV 16, HPV 56, HPV 11, HPV 35 e HPV 42. Diversos autores demonstram que os tipos mais comuns de HPVs oncogênicos que infectam o colo uterino são: HPV 16, HPV 18, HPV 45, HPV 31, 33 e HPV 3516 - 20. No presente estudo, quatro desses genótipos foram detectados em mulheres com LIAG. De acordo com estudos realizados em todo o mundo, inclusive no Brasil, o HPV 16 é o genótipo mais frequentemente encontrado, embora haja uma variação importante em relação à frequência de infecção por outros tipos21.
Neste estudo, dentre as 41 amostras de mulheres com LIAG, o HPV 16 foi detectado em 86,8% pelo teste de genotipagem Linear Array e em 80,0% pelo PapilloCheck. Em um estudo realizado por Halfon et al.22, comparando as duas técnicas foi encontrada uma frequência do HPV 16 de 45% pelo PapilloCheck e de 47% pelo Linear Array, taxas um pouco abaixo das encontradas no presente estudo. Neste estudo, a distribuição do HPV 16 em infecções múltiplas e únicas estão de acordo com vários relatos na literatura que mostram uma alta prevalência do HPV 16 em pacientes com LIAG23 , 24. No Brasil, esses dados foram demonstrados por vários autores em recente estudo de revisão que relatou a prevalência do HPV 16 em 67,0% das mulheres com LIAG21. Em um estudo recente feito no estado da Bahia foi demonstrado que o HPV 16 foi o tipo mais frequente nas mulheres com LIAG, estando presente em 42,4%11.
No presente estudo foi encontrada alta taxa de infecção por múltiplos genótipos do HPV em mulheres com LIAG em ambos os testes. Não há evidência de interação entre os genótipos de HPV e o risco de câncer, portanto, pode-se supor que cada infecção é independentemente associada a um risco de pré-câncer e câncer10. No entanto, há relatos controversos de estudos de coorte, alguns sugerindo que os genótipos de HPV atuam sinergicamente e outros que não demonstram essa ação sinérgica entre os genótipos de HPV10. Em um estudo transversal com cerca de 770 mulheres com LIAG não foram observados efeitos aditivos entre os tipos de HPV e o risco de LIAG em mulheres com infecção múltipla10.
O HPV 56 foi o segundo genótipo mais detectado neste estudo. Levi et al.4 e Bruno et al.11 relataram esse genótipo como o segundo mais frequente no estado de São Paulo e na Bahia, respectivamente. Barra et al.25encontraram o HPV 56 como o quinto mais prevalente em mulheres com LIAG em Brasília, Distrito Federal. Mais trabalhos com o uso de testes moleculares permitirão definir a eventual efetividade da inclusão do HPV 56 em futuras vacinas.
No presente estudo, o HPV 18 foi detectado em apenas três amostras em ambos os testes (representando 7,9% no Linear Array e 8,6% no PapilloCheck). Um estudo feito por Halfon et al.22 demostrou que a frequência do HPV 18 foi de 7% pelo Linear Array e de 6% pelo PapilloCheck em mulheres com LIAG. De acordo com estudos feitos no Brasil, o HPV 18 foi detectado em apenas 3,3 e 5,4% das amostras analisadas, respectivamente1 , 11. Esses achados, incluindo o do presente estudo, mostram que o HPV 18 não é muito frequente no Brasil, corroborando dados da literatura1 , 11 , 22.
Neste estudo, os genótipos HPV 31, HPV 33 e HPV 45 foram encontrados em 10,5; 2,6 e 18,4% pelo Linear Array e em 8,5; 5,7 e 2,9% pelo PapilloCheck, respectivamente. Halfon et al.22, comparando essas duas técnicas, encontraram uma frequência para os genótipos do HPV 31, HPV 33 e HPV 45 no teste de genotipagem pelo Linear Array de 14; 7 e 2%; e pelo PapilloCheck de 13; 4 e 3%, respectivamente. Esses achados foram similares aos encontrados no presente estudo.
Dentre as amostras consideradas válidas neste estudo, houve apenas uma amostra discordante entre o Linear Array e o PapilloCheck. Essa última técnica não conseguiu detectar o HPV em uma amostra com LIAG. O PapilloCheck é um ensaio baseado na detecção de um fragmento de 350 pares de bases do gene E1 do HPV. O Linear Array utiliza primers PGMY09/11 biotinilados para amplificar o fragmento de 450 pares de bases correspondente à região L1 do genoma do HPV. Dessa forma, esses dois testes de genotipagem utilizam primers e regiões do genoma do HPV diferentes e, portanto, pequenas discrepâncias são aceitáveis. Em relação às cinco amostras inválidas pelo PapilloCheck e uma pelo Linear Array, não houve amplificação do gene ADAT1 e nem da β-globina nos dois testes, respectivamente.
Uma limitação deste estudo foi o pequeno número de amostras analisadas em mulheres com LIAG. Entretanto, este estudo foi pioneiro na região e demonstrou que os testes de genotipagem Linear Array e PapilloCheck apresentaram um desempenho equivalente na detecção dos tipos de HPV oncogênicos em mulheres com LIAG, tendo o PapilloCheck a vantagem de automação na última fase do processo, evitando interpretações subjetivas.
As técnicas de genotipagem são importantes para o prognóstico das lesões epiteliais no colo uterino e são cruciais para avaliar os fatores associados à regressão, progressão e persistência da infecção por HPV cervical e identificar os grupos de alto risco e a susceptibilidade de infecção para o desenvolvimento da prevenção e estratégias de controle21. Além disso, a identificação dos tipos de HPV que são mais comumente associados ao câncer cervical em diferentes regiões pode sugerir uma necessidade de cobertura de um determinado tipo de HPV que não está presente nas vacinas e também nos testes de rastreio por DNA-HPV26.