DOI: 10.1590/SO100-720320150005440 - volume 37 - Outubro 2015
Pedro Filipe Viana Ferreira Pinto, Tiago José Santos Matos Ferraz, Carla Maria Almeida Ramalho, Nuno Aires Mota de Mendonça Montenegro
A prematuridade é o determinante isolado mais importante de desfecho adverso infantil, quer em termos de morbilidade, quer em termos de mortalidade1. Todos os anos, cerca de 1,1 milhão de recém-nascidos morrem como consequência de prematuridade, de acordo com estimativas realizadas em 20102. Desde o primeiro ensaio randomizado realizado por Liggins e Howie, em 1972 3, que a corticoterapia tem sido aplicada na população em risco de parto pré-termo. Aplicada corretamente, segundo uma meta-análise, a corticoterapia antenatal reveste-se de particular importância para diminuir a morbimortalidade associada à prematuridade, reduzindo a mortalidade neonatal (RR 0,69; IC95% 0,58-0,81), bem como as incidências de síndrome de dificuldade respiratória (RR 0,66; IC95% 0,59-0,73) e hemorragia cerebroventricular (RR 0,54; IC95% 0,43-0,69), entre outros4. Atualmente, um ciclo único de corticosteroides (betametasona ou dexametasona) está recomendado a grávidas em risco de parto pré-termo entre a 24ª e a 34ª semana5 6.
A corticoterapia antenatal apresenta uma eficácia máxima nos primeiros sete dias após a sua ministração, sendo que após esse período os benefícios serão residuais ou até mesmo nulos4 7 8. Tendo em conta que a predição do risco de parto pré-termo imediato não é uma tarefa simples, um número significativo de mulheres será exposto sem necessidade a esse tipo de tratamento, enquanto outras poderão não receber o tratamento adequado (ou por ministração tardia ou por ausência de ministração do fármaco). Apesar de estudos de seguimento em longo prazo não terem documentado efeitos laterais major com a corticoterapia antenatal4 9, a real segurança desse tratamento tem sido questionada recentemente, especialmente em recém-nascidos que acabaram por nascer a termo. Estudos realizados em animais e estudos epidemiológicos questionam a segurança em longo prazo da exposição antenatal a corticosteroides, essencialmente por meio do conceito de programação fetal, que defende que a exposição a determinados fatores ambientais precocemente pode influenciar o desenvolvimento pré-natal e pode causar alterações estruturais e funcionais que persistem durante toda a vida10 15. Por outro lado, a realização de múltiplos ciclos de corticoterapia ou de ciclos de resgate mantém-se em debate, parecendo melhorar levemente os desfechos neonatais imediatos (morbimortalidade), mas sem alteração de desfechos em longo prazo e com possíveis efeitos laterais significativos, como restrição de crescimento fetal e alterações do desenvolvimento neurocognitivo, pelo que tais ciclos devem ser utilizados ainda com maior cautela16 22.
É, portanto, essencial a prescrição adequada de corticosteroides a mulheres grávidas, devendo ser feito um esforço para aplicar tal terapia apenas a mulheres que venham efetivamente a se beneficiar dela. O objetivo deste trabalho foi o de avaliar a ocorrência de parto nos sete dias após corticoterapia nas principais situações obstétricas com risco de parto pré-termo na nossa instituição.
Foi realizado um estudo de coorte retrospetivo durante o período compreendido entre janeiro de 2012 e março de 2014 em uma instituição universitária com cuidados terciários. A população consistiu em grávidas expostas à corticoterapia para maturação pulmonar fetal. Todas as grávidas que receberam pelo menos uma dose de corticosteroides, quer 12 mg de betametasona, quer 6 mg de dexametasona, entre a 24ª e a 34ª semanas de gestação e com parto na nossa instituição, foram incluídas. As grávidas expostas foram identificadas após acesso a uma base de dados electrónica e ao sistema informático da nossa instituição (OBSCARE(r), SCLINICO(r)). Foram consultados os processos clínicos electrónicos individuais de forma a identificar as características gerais da nossa população, bem como o motivo de ministração dos corticoides e o tempo decorrido entre essa ministração e o parto. Foram excluídas gravidezes múltiplas, malformações fetais, casos de morte intrauterina e placentação anómala. Foram registadas as seguintes características: idade materna, paridade, índice de massa corporal (IMC) prévio à gravidez, idade gestacional aquando da ministração de corticosteroides, motivo para iniciar corticosteroide (ameaça parto pré-termo, rotura prematura de membranas, doença hipertensiva da gravidez, restrição crescimento fetal), idade gestacional do parto e tipo de parto. Foi definido parto pré-termo como parto antes da 37ª semana.
Foi avaliada a proporção de grávidas com parto nos sete dias após ministração de corticosteroides, bem como o intervalo de tempo entre a ministração destes e o parto. Foram ainda comparados dois grupos de acordo com o motivo para iniciar corticosteroide: ameaça de parto pré-termo (Grupo APPT) e outras indicações com risco de parto pré-termo (Grupo RPPT). Não foi avaliada a proporção de grávidas com parto pré-termo sem exposição a corticosteroides, por não ser o objetivo do estudo, mas acreditamos que essa proporção será residual.
Os dados apresentados encontram-se sob a forma de números totais (n), proporções (%) e médias/medianas com desvios padrão. Foi realizada uma análise de sobrevivência e utilizado o log rank test para comparação de curvas de sobrevivência, de acordo com o motivo para realizar corticoterapia. Foram construídas curvas de Kaplan-Meier para evidenciar o tempo desde a ministração de corticoide até o parto, de acordo com a indicação. O valor p<0,05 foi considerado estatisticamente significativo. A análise estatística foi efetuada com o auxílio dosoftware STATA.
Durante o período do estudo foram identificadas 236 grávidas submetidas à corticoterapia para maturação pulmonar fetal, sendo excluídas do estudo 17 mulheres (pelo seu parto ter ocorrido noutra instituição), sendo, portanto, analisadas 209 mulheres. As principais características da população em estudo encontram-se sumariadas na Tabela 1 . O tempo médio até o parto desde a ministração de corticoides em toda a população foi de 8,9 dias (0-79). Não se detectou diferença significativa na probabilidade de parto em 7 dias entre nulíparas e multíparas (p=0,9).
Das 209 grávidas submetidas à corticoterapia, 147 (70,3%) tiveram um parto pré-termo e 97 (46,4%) tiveram parto nos 7 dias seguintes à ministração desses fármacos. Quando comparados os dois grupos, as grávidas incluídas no Grupo RPPT (outras indicações com risco de parto pré-termo) apresentaram mais frequentemente um parto antes dos 7 dias que as grávidas incluídas no Grupo APPT (ameaça de parto pré-termo) - 57,3 versus 42,4%, p=0,001. Existe ainda uma diferença significativa entre a curva de sobrevivência dos Grupos APPT e RPPT (Figura 1), com um hazard ratio para parto até 7 dias 1,71 vezes superior no grupo de grávidas do Grupo RPPT (IC95% 1,2-2,4; p<0,001).
Figure 1
Intervalo de tempo desde a ministração de corticoides até o parto
Neste estudo de coorte retrospetivo que avaliou a prescrição de corticosteroides na nossa instituição demonstramos que a percentagem de mulheres com idade gestacional compreendida entre a 24ª e a 34ª semana de gestação com parto nos primeiros 7 dias após ministração destes foi de 46,4%; consequentemente, mais da metade das grávidas foi exposta a esse tratamento, sem contudo tirar benefício, podendo até mesmo ter sido prejudicadas.
Quando comparamos os dados por indicação para ministração de corticosteroides, verificamos que a probabilidade de parto em sete dias é menor no grupo de grávidas internadas por ameaça de parto pré-termo. Recentemente, foram publicados dois estudos que revelam resultados semelhantes23 ,24. Em uma análise por indicação para corticosteroide, a rotura prematura de membranas e as indicações maternas (essencialmente a doença hipertensiva da gravidez em todos os seus espectros) foram as indicações em que uma maior proporção de mulheres tiveram parto nos sete dias após ministração desses fármacos24.
O diagnóstico de ameaça de parto pré-termo reveste-se de uma enorme importância, embora seja igualmente difícil. De acordo com uma meta-análise recente, apenas cerca de 7% das mulheres com o diagnóstico de ameaça de parto pré-termo tiveram parto em 48 horas e 11% tiveram parto e uma semana25. Ferramentas como o teste de fibronectina fetal (com um excelente valor preditivo negativo, mas sensibilidade e valor preditivo positivo baixos) e a medição do colo uterino (um colo >15 mm praticamente permite excluir um parto na próxima semana) permitem com maior segurança excluir esse diagnóstico. Dessa forma, a confiança nessas ferramentas torna possível diminuir o número de casos com ministração desnecessária desses fármacos25 26. Novos testes recentemente descritos aparentam ser promissores, com resultados superiores ao uso isolado do teste da fibronectina27.
Apesar de alguns dados favorecerem a segurança em longo prazo da corticoterapia antenatal9, alguns autores começam a questionar essa segurança, quer com base em estudos animais, quer em estudos em seres humanos. Embora aparentemente não tenham sido detectadas diferenças maiores de desenvolvimento neurocognitivo e hormonal e de risco cardiovascular4 9 em crianças e adultos expostos à corticoterapia antenatal, têm sido realçadas diferenças subtis em termos do funcionamento do eixo hipotálamo-hipofisário (com especial atenção para a amígdala e, consequentemente, para as emoções), alterações do desenvolvimento cerebral e da mielinização, níveis de cortisol sanguíneos, resistência à insulina e pressão arterial, entre outros9 10 14 15 28 31. De acordo com o conceito de programação fetal, considera-se que a exposição a um único ciclo de corticoterapia é insuficiente para, alterando o ambiente hormonal fetal, causar alterações definitivas a diversos sistemas, potencialmente via alteração dos padrões de metilação e acetilação de histonas envolvendo o receptor de glicocorticoides12 13. Tendo em conta que basta um ciclo de corticoterapia para poder desencadear as alterações responsáveis pela programação fetal, é de relevar que, no nosso estudo, mais da metade dos fetos foi exposta a um tratamento sem benefícios. Mais ainda, essas alterações poderão ser transmitidas à descendência32. Mais estudos serão necessários para compreender melhor a segurança em longo prazo da utilização desses fármacos.
Torna-se preocupante a generalização da utilização da corticoterapia antenatal. O estudo de Polyakov, na Austrália, demonstra um aumento gradual da exposição desnecessária de fetos a corticosteroides ao longo do período em estudo, dados confirmados recentemente no estudo de Razaz conduzido no Canadá33 34. A assunção da sua inocuidade com a dificuldade de diagnóstico das verdadeiras situações de parto pré-termo iminente levou à generalização da sua utilização, a ponto de haver mulheres que recebem múltiplos ciclos de corticoterapia (com evidência de benefícios ligeiros, mas ainda sem garantia de segurança em longo prazo e com um claro aumento de risco de restrição de crescimento fetal)16 22 fazendo corticoterapia após as 35 semanas de gestação (apesar de haver plausibilidade biológica para tal utilização, não estão provados cientificamente os benefícios ou os riscos da corticoterapia nestas situações)35 39 e ainda submetidas à corticoterapia em ambulatório. Dados resultantes do Multiple Courses of Antenatal Corticosteroids for Preterm Birth Study (MACS) apontam para um maior risco de alterações neurocognitivas aos cinco anos de idade em crianças expostas a múltiplos ciclos de corticoterapia e com parto a termo22. É importante não se esquecer de exemplos recentes, como a utilização de antibioterapia na ameaça de parto pré-termo sem ruptura de membranas com um aumento do risco de alterações neurocognitivas e paralisia cerebral nas crianças expostas40 41. Outra questão importante é a da aplicabilidade da corticoterapia em países em desenvolvimento: um estudo recente não conseguiu encontrar benefício na utilização de corticoides em fetos em risco de parto pré-termo, tendo inclusive detectado um aumento da mortalidade em fetos que nasceram a termo42.
Uma limitação do estudo é a sua natureza retrospetiva. Por um lado, não foi possível compreender qual a motivação para ministração do fármaco naquela altura em particular; por outro lado, os critérios de diagnóstico das condições estudadas poderão não ter sido aplicados de forma uniforme pelos profissionais envolvidos, apesar da existência de protocolos de serviço para atuação nas referidas situações. Também, o número de casos não permitiu efetuar uma análise discriminada por indicação para corticoterapia, permitindo apenas a comparação entre os dois grupos definidos (ameaça de parto pré-termo versus outras indicações). Durante o período de tempo em estudo foram ministrados dois tipos diferentes de corticosteroides. No entanto, dado que o objetivo do estudo não visava a avaliação da sua eficácia neonatal e tendo em conta que, apesar de reais, são ligeiras as diferenças entre a betametasona e a dexametasona em termos de eficácia e farmacocinética, tal fato não parece constituir uma limitação para a análise efetuada6 43.
A corticoterapia antenatal é uma das principais armas disponíveis para diminuir a morbimortalidade neonatal, principalmente em um grupo de tão grande risco de complicações imediatas e em longo prazo como os prematuros. Contudo, a exposição desnecessária de fetos a esse tratamento deve ser evitada, principalmente com um desconhecimento ainda grande de potenciais efeitos laterais em longo prazo. Na nossa população a probabilidade de parto em 7 dias foi maior para o grupo 2 (outras indicações) que para a ameaça de parto pré-termo. É, pois, essencial refinar o diagnóstico dessa identidade, bem como o timing da ministração de corticosteroides. Idealmente, a corticoterapia deverá ser aplicada apenas a fetos que venham a se beneficiar de tal tratamento, devendo ser minimizada a exposição desnecessária a esses fármacos.