DOI: S0100-72032015005005217 - volume 37 - Agosto 2015
Mariella Vieira Pereira Leão, Célia Regina Gonçalves e Silva, Silvana Soléo Ferreira dos Santos, Poliana Gasparin Correa Leite
A candidíase ou candidose vulvovaginal atinge, pelo menos uma vez, aproximadamente 75% das mulheres sexualmente ativas, sendo que, destas, metade desenvolverá um segundo episódio e 5% terão vulvovaginite recorrente (mais de 4 episódios por ano)1 - 4. Observa-se uma associação entre a presença de lactobacilos na vagina e a redução do desenvolvimento de candidíase vulvovaginal. Uma avaliação de como os probióticos lactobacilos afetavam a resposta epitelial defensiva sugere que os lactobacilos suprimem a expressão de genes inflamatórios induzidos por Candida albicans, modulando a resposta imunológica do hospedeiro5.
Foram identificados probióticos com propriedades adesivas e resistentes ao metronidazol e sua utilização tem sido considerada em produtos voltados ao tratamento e à prevenção da vaginose bacteriana6, já que eles exercem um efeito biostático sobre o crescimento das leveduras7. Os probióticos L. rhamnosus e L. reuteri foram capazes de suprimir o crescimento de C. albicans e até mesmo demonstraram um efeito fungicida. Foram eficazes em níveis baixos de pH, semelhantes aos encontrados em um ambiente vaginal saudável8.
Certas cepas de lactobacilos, além de inibirem o crescimento de Candida, parecem dificultar sua aderência às células epiteliais9. A aderência da Candida albicans aos tecidos e às superfícies é favorecida pela formação de tubos germinativos10, pequenos prolongamentos filamentosos que provêm (em forma de levedura) da célula, que podem ser observados ao se inocular C. albicans em soro de seres humanos ou outros animais11. Além disso, a aderência da Candida pode ser favorecida pela capacidade de formar biofilme, definido como uma comunidade microbiana estruturada, "embebida" em uma matriz, que se forma sobre superfícies sólidas e que proporciona maior resistência aos micro-organismos12.
Uma vez que os probióticos parecem interferir no desenvolvimento de doenças causadas por Candida e a compreensão dos mecanismos envolvidos nesse processo possibilitaria uma melhor utilização terapêutica desses produtos, o presente estudo avaliou, in vitro, se L. rhamnosus é capaz de alterar a virulência de C. albicans, por meio da investigação da capacidade de formação de tubo germinativo e biofilme.
A partir da semeadura de cepa padrão de Candida albicans (ATCC18804) em placa de ágar Sabouraud dextrose, a 37°C por 24 horas e em aerobiose, foram adicionadas alíquotas do crescimento em 5 mL de solução salina tamponada (PBS), esterilizada, até que se obtivesse uma suspensão contendo 106células/mL, padronizada em espectrofotômetro a 530 nm.
A partir da semeadura de cepa padrão de Lactobacillus rhamnosus (ATCC1465) em ágar Man-Rogosa-Shape e cultivo a 37°C por 48 horas, foram adicionadas alíquotas do crescimento em 5 mL de solução salina tamponada (PBS), esterilizada, até que se obtivesse uma suspensão contendo 107células/mL, padronizada em espectrofotômetro a 530 nm.
A suspensão de Lactobacillus foi semeada na superfície de placas de Petri contendo 15 mL de ágar MRS. As placas foram incubadas a 37°C em estufa de CO2durante 24 horas. No dia seguinte, foram adicionados 15 mL de ágar Sabouraud dextrose sobre meio MRS com crescimento de Lactobacillus. Após o endurecimento do meio, 0,1 mL da suspensão de Candida foi semeado e as placas foram novamente incubadas a 37°C durante 24, 48 e 72 horas em aerobiose e em microaerofilia. Após cada um desses períodos, alíquotas das colônias de Candida foram isoladas para investigação dos fatores de virulência. Também foi realizado crescimento controle de Candida (na ausência de lactobacilos), com utilização de soro fisiológico no lugar da suspensão de Lactobacillus. Foram realizados três ensaios independentes para cada condição.
Foi adicionada uma alíquota de cada suspensão da levedura obtida a partir das culturas controle, e de 24, 48 e 72 horas de incubação na presença de lactobacilos, em tubo de ensaio contendo 0,5 mL de soro de cavalo. Os tubos permaneceram em banho-maria a 37ºC por 2,5 horas. A formação do tubo germinativo foi observada em microscopia de luz e quantificada por meio da contagem de tubos germinativos formados para cada 200 células de Candida.
Para a formação do biofilme, foram utilizadas placas de microtitulação de 96 poços. As diferentes suspensões de Candida (obtidas a partir das culturas controle e de 24, 48 e 72 horas de incubação na presença de lactobacilos) foram pipetadas, no volume de 100 µL, nos poços das placas, e 100 µL de meio enriquecido (BHI), concentrado duas vezes, foram adicionados. Para cada suspensão, foram utilizados dez poços diferentes. As placas foram incubadas em agitação a 37ºC por 90 minutos para a fase inicial de adesão. Decorrido esse período, os volumes dos poços foram removidos e 200 µL de PBS foram acrescentados para a remoção das células não aderidas. O volume foi novamente removido, 200 µL de meio foram acrescidos e as placas foram incubadas a 37ºC por 24 horas em agitação.
Após esse período, os volumes dos poços foram removidos e 200 µL de PBS foram acrescentados para a remoção das células não aderidas. O volume foi novamente removido e 200 µL de PBS foram acrescidos. As densidades ópticas dos poços foram verificadas em leitor de microplacas a 530 nm. Posteriormente, com o auxílio de palitos esterilizados, o fundo de cada orifício foi raspado, com movimentos em várias direções, por 30 segundos. Depois disso, os volumes dos poços foram transferidos para tubos de ensaio, foi acrescentado 1,8 mL de PBS estéril em cada tubo e as suspensões foram homogeneizadas por 5 minutos para desprendimento dos biofilmes. Essas soluções foram consideradas como fator de diluição 10- 1, a partir das quais foram feitas diluições seriadas. Alíquotas de 0,1 mL de cada diluição foram semeadas em placas de ágar Sabouraud dextrose e incubadas a 37ºC por 48 horas. Dado o período de incubação, foram determinadas as unidades formadoras de colônia por mL (UFC/mL) de cada orifício.
Os resultados obtidos foram analisados utilizando o teste t de Student, usando o programa Graph Pad Prisma versão 3.0 (Graph Pad Software Inc.).
Após 24, 48 ou 72 horas de incubação, observou-se uma redução significativa do crescimento de C. albicans na presença de lactobacilos, quando comparado ao crescimento na ausência desses micro-organismos, tanto em aerobiose quanto em microaerofilia. Esses resultados dificultaram inúmeras vezes a recuperação de Candida para os ensaios posteriores de investigação dos fatores de virulência.
Após 24 horas de crescimento na presença de L. rhamnosus, observou-se um aumento de 9,1% na formação de tubos germinativos por C. albicans, comparando-se às leveduras cultivadas na ausência de lactobacilos. Já após 48 horas de crescimento na presença de L. rhmanosus observou-se que as células de Candida apresentavam-se morfologicamente menores e não formavam tubos germinativos (redução de 100%). Após 72 horas, as células de Candida ainda apresentavam uma morfologia menor; entretanto, em alguns ensaios, foi possível a observação de tubos germinativos em algumas células, embora em número estatisticamente menor (redução de 75,4%) (Tabela 1).
Tabela 1.
Média do número de tubos germinativos observados em 200 células de Candida albicans e média do número de unidades formadoras de colônia de Candida albicans após incubação de 24, 48 e 72 horas, em aerobiose e microaerofilia, na presença ou na ausência de Lactobacillus rhamnosus
Tubos germinativos | UFC/mL | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
24 h | 48 h | 72 h | 24 h | 48 h | 72 h | |
Com Lactobacillus | 97,5 | 0 | 9,7 | 122,5x105 | 74,5x105 | 57,0x105 |
Controle | 89,3 | 69,0 | 39,5 | 121x105 | 92,3x105 | 54,6x105 |
UFC: unidades formadoras de colônia. Controle: Candida na ausência de L. rhamnosus, com Lactobacillus: Candida na presença de L. rhamnosus
Após 24, 48 ou 72 horas de incubação, foi analisada a formação de biofilme por C. albicans. Após a leitura das densidades ópticas ou as contagens de UFC/mL dos biofilmes formados, observou-se que não houve diferença significante entre as cepas de Candida isoladas a partir do cultivo na presença ou na ausência de L. rhamnosus, em qualquer um dos períodos de incubação estudados. Os resultados das contagens das UFC/mL dos biofilmes formados variaram da seguinte forma: observou-se aumento de 1,3% nas contagens de Candida isoladas dos biofilmes provenientes das culturas de 24 horas na presença de L. rhamnosus; diminuição de 19,3% nos biofilmes das culturas de 48 horas; aumento de 4,4% nas de 72 horas, comparando-se às contagens de leveduras do grupo controle (na ausência de lactobacilos) (Tabela 1).
Estudos prévios têm demonstrado que o consumo de alimentos probióticos pode reduzir a quantidade de Candida na microbiota normal dos seres humanos, podendo auxiliar no controle da candidíase13 , 14. Mostrou-se também que o tratamento com fluconazol associado ao Lactobacillus rhamnosus e ao Lactobacillus reuteri, via oral, diminuiu, em quatro semanas, os sintomas relacionados à vulvovaginite por Candida albicans, além de diminuir o crescimento da levedura em cultura4.
O presente trabalho avaliou os efeitos de L. rhamnosus sobre a expressão de fatores de virulência de Candida albicans, especialmente importantes na adesão destas leveduras aos tecidos e às superfícies. Em relação à formação de tubo germinativo por Candida, observamos redução significativa na sua formação após a interação por 48 ou 72 horas com L. rhamnosus. Uma vez que a formação de tubo germinativo favorece a adesão e a invasão de Candida nos tecidos do hospedeiro, os resultados sugerem que a convivência com lactobacilos poderia evitar esses fenômenos, contribuindo para a diminuição da patogenicidade do micro-organismo e para o controle do desenvolvimento da candidíase. Os diferentes resultados observados após diferentes períodos de cocultura demonstram a importância do tempo de interação com os lactobacilos para que os mesmos possam exercer essa influência sobre Candida. O período de 48 horas promoveu a interferência mais efetiva. Outros trabalhos que tenham investigado esse efeito de L. rhamnosus sobre Candida não foram encontrados na literatura. Aqueles que investigaram a interferência dos micro-organismos probióticos na adesão de leveduras utilizaram espécies e métodos diferentes15 - 17.
No presente trabalho não foi observada diferença significativa quanto à capacidade de formar biofilme pelas células de Candida estudadas. Redução na formação de biofilme por C. albicans na presença de micro-organismos com propriedades probióticas foi demonstrada por outros autores, entretanto utilizando cepas e metodologias diferentes15 , 18 , 19. Nesses estudos os autores adicionavam as cepas ou os produtos microbianos diretamente nas placas para formação de biofilme, sendo que no presente trabalho a interação era prévia e, posteriormente, as leveduras eram cultivadas separadamente. Assim, a ausência do contato com Lactobacillus nas etapas posteriores à interação pode ter permitido a recuperação da capacidade de formar o biofilme pelas células de Candida. Ainda, a utilização de cepas probióticas diferentes pode ter produzido os resultados distintos, e até mesmo contrários.
Embora a influência de L. rhamnosus sobre o crescimento de Candida não tenha sido o objetivo deste trabalho, esse efeito foi significativo e evidente, e em grande parte da pesquisa o tempo de interação foi fundamental. Nossos resultados sugerem que L. rhamnosus seria capaz de produzir substâncias com atividade antifúngica ou de modificar o ambiente, prejudicando o crescimento das leveduras. O fato de não ter havido interação direta entre os micro-organismos estudados sugere que a influência tenha ocorrido pela difusão de seus metabólitos.
É importante destacar que se trata de um estudo in vitro, com somente duas espécies microbianas, em condições relativamente estáveis e específicas de crescimento. Diferente das condições in vivo, nas quais existe a participação de várias outras espécies, interagindo diretamente e/ou indiretamente, além das células eucarióticas epiteliais e dos componentes do sistema imunológico, caracterizando um quadro extremamente mais complexo. Assim, estudos clínicos devem ser também realizados para confirmação dos reais efeitos de lactobacilos sobre a virulência de C. albicans e a ocorrência de candidíase.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), pela concessão de bolsa de iniciação científica (processo IBB_14_2013)