DOI: 10.1590/SO100-720320140005053 - volume 36 - Setembro 2014
Marcos Masaru Okido, Silvana Maria Quintana, Aderson Tadeu Berezowski, Geraldo Duarte, Ricardo de Carvalho Cavalli, Alessandra Cristina Marcolin
A rotura uterina é uma causa importante de hemorragia obstétrica, aumento das taxas de histerectomia e mortalidade materna. As consequências ao feto são, em geral, muito graves, uma vez que esse e a placenta são expelidos para a cavidade abdominal seguido de hipóxia e risco elevado de óbito perinatal1 - 3. É definida como uma solução de continuidade da espessura total da parede do útero e peritônio sobrejacente. Os casos de rompimento de uma cicatriz pré-existente que não interrompe o peritônio visceral são denominados deiscência de cicatriz uterina. Em contraste com a rotura que se manifesta com um quadro clínico evidente e requer intervenção imediata, a deiscência de cicatriz pode evoluir de forma assintomática e não ser reconhecida se o parto for ultimado por via vaginal4. Vale salientar que essas diferenças não são consideradas em alguns estudos, sendo empregado o termo rotura para as duas condições2 , 5.
O risco de rotura uterina é maior em alguns grupos de gestantes, sendo esses amplamente liderados pelo das mulheres com cicatriz de cesárea prévia1 , 2 , 6 , 7. Entre essas últimas, são mais suscetíveis aquelas em trabalho de parto e que apresentam fetos em apresentação anômala, desproporção cefalopélvica, trabalho de parto distócico e as submetidas à indução do trabalho de parto1 , 6 , 8 - 11.
O fato da rotura uterina ocorrer com muito mais frequência em mulheres com cicatriz de cesárea faz dela uma complicação cada vez mais temível. No Brasil, as taxas de cesarianas são as mais elevadas do mundo, ultrapassando os 50%12.
Verifica-se a necessidade de tratar desse tópico em publicações científicas, pois urge a aplicação de estratégias de prevenção e manejo.
O objetivo deste estudo foi descrever os casos de rotura uterina e deiscência de cicatriz uterina em uma maternidade de baixo risco risco e apontar possibilidades de aprimoramento na abordagem dessas complicações. Foram investigados nos dois grupos: a incidência, o perfil das gestantes acometidas, o desempenho do diagnóstico clínico, a relação com o uso de misoprostol e ocitocina e os desfechos observados.
Trata-se de um estudo descritivo, retrospectivo, com dados obtidos por meio de revisão de prontuários. Esse estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo pelo processo número nº 5933/2009 em reunião de número 291 do dia 20 de julho de 2009.
O local de pesquisa foi a maternidade do Centro de Referência da Saúde da Mulher - Mater do município de Ribeirão Preto, São Paulo. Essa instituição presta assistência às usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) de Ribeirão Preto e de algumas cidades da região servindo, também, como cenário de estágio de alunos de graduação e residentes em Ginecologia e Obstetrícia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Essa maternidade possui 5 salas de parto e 30 leitos, sendo 24 de enfermaria e 6 de pré-parto. A equipe consta de quatro médicos na equipe obstétrica, sendo dois assistentes e dois residentes, uma enfermeira obstétrica, um pediatra e o anestesista, além de alunos e equipe de enfermagem. A população atendida nesse serviço consiste em mulheres com idade gestacional igual ou superior a 36 semanas e consideradas de baixo risco.
A coleta dos dados foi realizada entre os meses de fevereiro e abril de 2012 em duas fases. Na primeira, foi realizada busca dos casos em livros de registros de sala de parto dessa instituição desde a sua fundação, em 1998, até abril de 2012. Esses livros contêm anotações feitas pela equipe médica acerca do parto, tais como a identificação da gestante, a via de resolução, os dados do recém-nascido e as eventuais intercorrências ocorridas durante a resolução. Esses registros são realizados imediatamente após o parto. Foram incluídos os casos descritos como "rotura uterina" e "deiscência de cicatriz uterina" (ou "rotura parcial"). Também foram investigados, nessa primeira fase, os casos notificados como "iminência de rotura uterina" e "histerectomia puerperal", pois se presumiu que esses grupos poderiam abranger casos de rotura ou deiscência de cicatriz. Em uma segunda fase, os casos selecionados tiveram seus prontuários analisados individualmente pelo mesmo pesquisador, sendo então ordenados em seus grupos a depender dos achados intraoperatórios descritos. Foram excluídos os casos que não contemplaram os diagnósticos de rotura ou deiscência, aqueles cujos prontuários não foram obtidos e aqueles que se confirmaram apenas como histerectomia puerperal sem rotura (por atonia uterina, por exemplo). Aqueles casos inicialmente citados como rotura uterina e que, na análise do prontuário, revelaram apenas deiscência de cicatriz uterina foram transferidos para esse último grupo. Os dados foram inseridos em formulário previamente elaborado para este estudo.
Dois grupos de gestantes foram avaliados: grupo rotura uterina e grupo deiscência de cicatriz uterina. Foi considerada como rotura o rompimento total da espessura da parede do útero e de deiscência de cicatriz, quando se observou o peritôneo visceral íntegro a despeito da lesão miometrial. Para este estudo, essa diferenciação foi possibilitada não só pelos registros em livros de sala de parto mas também por meio da leitura das anotações e descrições feitas em prontuário pela equipe assistente acerca do que foi observado no momento da cesárea.
Foram avaliados: a frequência dessas complicações, o perfil das gestantes acometidas, as manifestações clínicas observadas, a associação com o uso de misoprostol e ocitocina e os resultados maternos e neonatais.
Na análise da relação dessas complicações com trabalho de parto, indução de trabalho de parto e o uso de misoprostol, as gestantes com duas ou mais cesáreas prévias foram excluídas. Razão disso é que a conduta para esse grupo é previamente estabelecida e distinta das demais, sendo preconizada a cesárea eletiva e contraindicado o trabalho de parto espontâneo ou induzido com misoprostol. Ainda, na análise do uso de misoprostol como método de indução de trabalho de parto, as mulheres com uma cesárea prévia a partir de novembro de 2009 não foram agrupadas, pois se instituiu que esse método não seria mais utilizado para esse grupo a partir dessa data.
No período mencionado foram registrados 39.206 partos resultando em uma média de 2.724 nascimentos anuais. A cesárea foi a conduta adotada em 10 mil partos, o que equivale a uma taxa de 25,5%.
A busca inicial resultou em 135 casos para análise de prontuário. A leitura dos prontuários possibilitou a confirmação do diagnóstico ou a substituição por outro em alguns casos. Por exemplo, dos 26 casos de histerectomia puerperal, 3 sucederam complicações de rotura uterina, logo, foram agrupados a esse último, e 7 casos (41,2%), identificados inicialmente como rotura uterina, foram classificados, após a leitura dos prontuários, apenas como deiscência de cicatriz uterina.
Foram identificados 12 casos de rotura uterina e 16 de deiscência de cicatriz uterina (incidência de 0,03 e 0,04% do número total de partos, respectivamente). A incidência de rotura uterina em mulheres sem cesáreas anteriores foi extremamente incomum, identificando-se apenas 2 casos (0,005%).
Na Tabela 1 estão relacionadas as principais características das gestantes. Observa-se que o maior contingente de mulheres que apresentou rotura ou deiscência de cicatriz uterina tinha antecedente de apenas uma cesárea anterior. Resultado previsto, uma vez que nesse serviço são essas as candidatas para a tentativa do parto vaginal. Para as mulheres com duas ou mais cesáreas prévias, a conduta é de realização de cesárea eletiva antes do início do trabalho de parto. Não obstante, mesmo entre os casos de iteratividade, a ocorrência dessas lesões não pode ser evitada. Verificou-se que uma (8,3%) apresentou diagnóstico de rotura uterina e quatro (25%) de deiscência de cicatriz.
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Tabela 1
Distribuição das características das gestantes segundo o tipo de complicação (rotura ou deiscência de cicatriz uterina)
A análise do histórico obstétrico das gestantes mostra que a média do período decorrido da última cesárea foi maior do que quatro anos em ambos os grupos, sendo que 90% do grupo de rotura e 80% do grupo de deiscências ocorreram com cesárea prévia há mais de dois anos.
Na Tabela 2 verifica-se que em ambos os grupos a maior parcela de gestantes apresentou indicação de indução ou estimulação do trabalho de parto no momento da internação sendo de 36,7 e 72,7% entre as que apresentaram rotura e deiscência de cicatriz uterina, respectivamente. Observa-se também que no momento do diagnóstico da complicação a maioria delas encontrava-se em trabalho de parto.
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Tabela 2
Distribuição das condições obstétricas segundo o tipo de complicação (rotura ou deiscência de cicatriz uterina)
Segundo as informações obtidas em prontuário, em nenhum caso de rotura uterina houve o reconhecimento das manifestações clínicas prévias a essa complicação.
No grupo de deiscências, foi verificado que em 43,8% dos casos ocorreu a suspeita de iminência de rotura uterina, que resultou em indicação de cesariana. No restante dos casos o parto cesárea foi indicado por outras razões.
Em relação às drogas utilizadas para a indução do trabalho de parto, observou-se nos casos de rotura uterina que a maioria das gestantes (77,8%) não recebeu nenhuma das medicações citadas. Foi utilizado o misoprostol em duas gestantes (22,2%), ocitocina em três (33,3%) e o emprego de ambas na mesma paciente foi verificado em 22,2%. A análise isolada de cada droga mostra que, nos casos de rotura uterina, em 11,1% delas foi administrada apenas a ocitocina e nenhuma paciente foi exposta ao misoprostol. Nos casos de deiscência de cicatriz uterina, a análise individualizada mostra que 22,2% delas receberam somente misoprostol e 44,4% ocitocina (Tabela 3).
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Tabela 3
dos tipos de complicações (rotura uterina e deiscência de cicatriz uterina) segundo as drogas utilizadas para indução ou estimulação do trabalho de parto*
As informações obtidas a respeito dos desfechos dos casos estudados revelam diferenças importantes entre as duas complicações. A média do índice de Apgar de primeiro e quinto minutos foi de 4,8 e 6,4, respectivamente, para os casos de rotura uterina e de 7,9 e 9,5 para os de deiscência de cicatriz uterina. Foram registrados 25% de óbitos fetais nos casos que evoluíram para rotura uterina e nenhum naqueles diagnosticados como deiscência. As mulheres que evoluíram para rotura uterina também tiveram maior morbidade com aumento das necessidades de transfusão sanguínea (36,4%), histerectomia (25%) e período de internação (4,2 dias) do que aquelas que apresentaram deiscência: transfusão sanguínea (6,7%), histerectomia (6,3%) e período de internação (2,4 dias).
Com os resultados obtidos neste estudo pode-se considerar que a rotura uterina foi uma complicação rara nessa instituição, mas com desfechos neonatais graves, incluindo a alta mortalidade. A presença de cicatriz de cesárea prévia foi muito frequente entre as mulheres que sofreram rotura uterina. Não foi possível demonstrar riscos associados ao uso de misoprostol ou ocitocina em mulheres com cesárea anterior. Merece atenção o fato das manifestações clínicas prévias à rotura, o chamado quadro de iminência de rotura uterina, não ter sido reconhecido em nenhum dos casos.
Obviamente, dada a natureza descritiva deste estudo, não se pode afirmar que existem relações causais dos fatores avaliados, porém, alguns pontos desta análise, mencionados a seguir, merecem destaque.
A suposição de que o termo rotura uterina é habitualmente empregado como sinônimo de deiscência de cicatriz uterina é evidenciado neste estudo. Dos registros apontados inicialmente como roturas, após a análise dos prontuários, 41,2% foram reconhecidos apenas como deiscência de cicatriz. Essa observação pressupõe que essa diferença conceitual não esteja clara entre as equipes assistentes, o que é preocupante, visto que existem diferenças clínicas e epidemiológicas significativas entre as duas condições.
A incidência de rotura uterina demonstrada neste estudo foi semelhante ao de uma revisão sistemática com 83 estudos, que encontrou taxa de 0,05% em amostra de base populacional que incluiu países desenvolvidos e em desenvolvimento13. Observa-se que as taxas obtidas no presente estudo aproximam-se às de países desenvolvidos do referido artigo.
Em relação à deiscência de cicatriz uterina, vale salientar que, provavelmente, a maioria das lesões não foram diagnosticadas por não suscitarem suspeita clínica.
Os estudos sobre a deiscência de cicatriz uterina caracterizam essa lesão como sendo assintomática4 , 14. Em um artigo de revisão, os autores relatam ainda que a maioria dessas lesões se instalam antes do início do trabalho de parto e possivelmente antecedem a própria gravidez15. Os resultados deste estudo reforçam essas opiniões, pois 56,2% das gestantes que apresentaram deiscência eram assintomáticas. As lesões foram identificadas somente no intraoperatório de cesariana, o que sugere que de outra forma não teriam sido reconhecidas. Além disso, mesmo nos casos em que ocorreu a suspeita de iminência de rotura e durante a cesárea foi constatada a deiscência de cicatriz uterina, não é possível determinar se de fato estava ocorrendo uma lesão aguda ou se apenas foi visualizado uma lesão pré-existente.
O intervalo interpartal encurtado em mulheres com cesáreas consecutivas é um fator de risco citado como relevante na literatura. Os estudos mostram um aumento do risco em três vezes para rotura sintomática quando o intervalo interpartal for menor do que 18 meses, comparados com intervalos maiores16 , 17. No presente estudo obtivemos resultados discordantes do exposto na literatura. A grande maioria das gestantes que apresentou rotura ou deiscência tinham intervalo interpartal maior do que dois anos. Evidentemente, esse resultado deve ser interpretado com ressalvas, visto que um intervalo maior do que dois anos foi comum entre as mulheres assistidas nesse serviço.
Outro fator de risco mencionado na literatura é a indução do trabalho de parto em mulheres com cesárea prévia. Um estudo multicêntrico com 33.699 mulheres submetidas à indução do trabalho de parto após cesárea mostra que essa intervenção foi associada a um risco aumentado de rotura uterina em comparação com o trabalho de parto espontâneo (incidência de 0,4% para o trabalho de parto espontâneo, 1,1% para ocitocina isolada e 1,4% para a indução com prostaglandinas, com ou sem a ocitocina)18. Quanto à escolha do melhor método de indução do trabalho de parto em mulheres com uma cesárea prévia, uma revisão sistemática recente concluiu que as informações obtidas dos ensaios clínicos randomizados incluídos foram insuficientes para fundamentar de maneira irrefutável essa decisão clínica19.
Os resultados obtidos no presente estudo não permitiram obter conclusões acerca dos riscos das medicações avaliadas. Merece comentar que, entre as pacientes que sofreram rotura uterina, a grande maioria não foi exposta a nenhuma droga e as que foram, receberam a ocitocina. Entretanto, deve-se considerar que, provavelmente, a proporção de mulheres que foram expostas a ocitocina foi maior do que aquelas que usaram misoprostol, aumentando a probabilidade daquele grupo conter mais casos de rotura.
A mortalidade perinatal associada a essa complicação foi muito elevada neste estudo (25%), porém, com número absoluto baixo (3 casos no total ou 7,7 em 100.000 nascimentos). Um estudo de revisão encontrou 4,5% de óbitos associados às roturas20. Em um estudo realizado em Israel8, obteve-se 45,2% de óbitos e 16,1 em 100.000 nascimentos; em um estudo sueco9 foi demonstrado 5,1% de óbitos e 4,7 em 100.000 nascimentos.
Vale comentar que o sucesso no diagnóstico de iminência de rotura uterina foi nulo, uma vez que a complicação não foi reconhecida em nenhum dos casos até o aparecimento dos sinais de rompimento total do útero.
Alguns estudos indicam que nenhum fator de risco isolado ou associado incluindo os fatores sociais, demográficos, clínicos e obstétricos apresentam sensibilidade e especificidade adequados para predizer a rotura uterina21 , 22. No intra-parto, os achados mais frequentes de rotura uterina são diferentes daqueles outrora descritos, como os sinais de distensão segmentar, sangramento vaginal ou perda da atividade uterina. Segundo as evidências atuais, devem ser valorizadas a associação entre desacelerações graves da frequência cardíaca fetal e dor abdominal persistente23 , 24.
Compreende-se, com o presente estudo, que existem razões para o aprimoramento na abordagem da rotura uterina. Os dados que inferem uma baixa suspeição clínica demonstrada pelas equipes associada à alta mortalidade perinatal são prova disso.
Conclui-se que as graves consequências da rotura uterina podem ser minimizadas se esforços forem direcionados para melhorar o desempenho diagnóstico das equipes assistentes.