DOI: 10.1590/S0100-72032014000300002 - volume 36 - Março 2014
Daniela Fraguas Schenkel, Jessica Dallé, Vicente Sperb Antonello
A infecção do trato urinário (ITU) é um problema freqüente na gestação, acometendo de 10 a 12% das gestantes1 - 3. A ITU é definida como a invasão microbiana do trato urinário, desde a uretra até os rins. É classificada como cistite, pielonefrite e bacteriúria assintomática (BA)4 , 5.
As mudanças anatômicas, fisiológicas e hormonais da gestação favorecem a ocorrência de infecções do trato urinário, ou a transformação da bacteriúria assintomática em ITU sintomática6 , 7. Estas alterações vão desde a dilatação do sistema coletor, aumento do tamanho renal, modificação da posição da bexiga, aumento do débito urinário, redução do tônus vesical com conseqüente aumento da capacidade vesical, além de alterações no pH urinário (urina mais alcalina) e diminuição da capacidade renal de concentrar a urina, excretando menores quantidades de potássio e maiores de glicose e aminoácidos. Todos esses fatores contribuem para a estase urinária e proliferação bacteriana no trato urinário, resultando muitas vezes em infecções urinárias na gestação7 - 10.
A Escherichia coli é a bactéria mais comumente encontrada nas infecções do trato urinário, tanto sintomáticas quanto assintomáticas, representando 70-80% dos casos. Outras bactérias gram-negativas (Klebsiella pneumoniae, Proteus mirabilis e bactérias do gênero Enterobacter), grampositivas (Staphylococcus saprophyticus, Streptococcus agalactiae e Enterococcus sp) e variavelmente fungos (Candida sp) são responsáveis pela restante dos casos3 , 7 , 11 - 14.
O diagnóstico precoce e o tratamento adequado devem ser prontamente implantados para evitar complicações maternas e fetais7. O conhecimento do microrganismo causador da infecção, suas características epidemiológicas e sua sensibilidade aos antimicrobianos é de fundamental importância, a fim de proporcionar maior eficácia do tratamento e impedir complicações às gestantes15.
Este estudo tem por objetivo analisar a prevalência de germes e o perfil de sensibilidade antimicrobiana em isolados de uroculturas de pacientes gestantes atendidas em hospital terciário materno-infantil no Município de Porto Alegre. Esta avaliação tem extrema relevância, visto o crescente surgimento de resistência bacteriana e o limitado arsenal antimicrobiano para uso seguro na gestação.
Foi realizado estudo transversal, retrospectivo e descritivo no Hospital Fêmina, instituição referência para o atendimento a mulheres durante o pré-natal, parto e puerpério na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. A partir de 1.558 uroculturas positivas, foram avaliados 482 resultados microbiológicos comunitários com perfil de sensibilidade antimicrobiana de uroculturas de gestantes em todas as idades gestacionais, atendidas no Hospital Fêmina no período de janeiro de 2007 a julho de 2013. As uroculturas foram identificadas a partir da comunicação regular do Laboratório de Microbiologia da instituição sobre os resultados microbiológicos ao Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Fêmina. Adicionalmente, foram avaliadas informações demográficas das pacientes, idade gestacional e o quadro clínico (bacteriúria assintomática, cistite ou pielonefrite), informações estas contidas nas fichas de notificação do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Fêmina. O critério de inclusão para o estudo é a urocultura da comunidade de gestante atendida no Hospital Fêmina. A definição de urocultura da comunidade utilizada foi urocultura coletada até 72 horas do início da internação, conforme recomendação do CDC16. Foram incluídas apenas pacientes sem internação recente no Hospital Fêmina.
O crescimento bacteriano significativo (urocultura positiva) foi considerado a partir de 105 unidades formadoras de colônias de bactérias obtidas a partir de um mililitro de urina não centrifugada17. Foram realizados testes de sensibilidade dos isolados bacterianos aos antibióticos comumente utilizados (amicacina, gentamicina, ampicilina, cefalotina, cefoxitina, cefepima, ceftazidima, piperacilina/tazobactam, ertapenem, nitrofurantoína, norfloxacino, ciprofloxacino e sulfametoxazol-trimetoprim).
Para a análise estatística, foram utilizados avaliação descritiva com média e desvio padrão para variáveis contínuas e freqüência e percentagem para variáveis categóricas. Na comparação para as médias entre grupos, divididos a cada ano para prevalência de germes e perfil de sensibilidade aos antimicrobianos, utilizamos o teste t de Student e, para análise das frequências, o teste do χ2. Para avaliar o risco comparativo de desenvolvimento de ISC entre os grupos de parto cesáreo e vaginal, utilizamos risco relativo (RR) e intervalo de confiança (IC) de 95%. Foi utilizado como banco de dados o programa Microsoft Excel e, para análise, o programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences) para Windows.
O estudo foi aprovado pelo Comitê em Ética em Pesquisa do Grupo Hospitalar Conceição, em 10 de novembro de 2013, com o número de registro 22647313.0.0000.5530.
No período de janeiro de 2007 até julho de 2013, 481 resultados de uroculturas de 454 pacientes gestantes com idades entre 12 e 44 anos (média de 24,2 anos e desvio padrão de ±6,6), atendidas no Hospital Fêmina, foram incluídas no presente estudo. Em 427 pacientes (94,0%), a infecção era monomicrobiana e, em 27 pacientes, a urocultura demonstrava crescimento de dois ou mais germes (5.9%).
Entre os organismos isolados, E. coli foi o germe predominante (363/481; 75,4%), seguido por Enterococcus sp (34/481; 7.0%), Streptococcus agalactiae (19/481; 3,9%), P. mirabilis (18/481; 3,7%) e K. pneumoniae (16/481; 3,3%). Outras enterobactérias corresponderam a 2,0% dos casos (10/481). Todas as outras espécies representaram menos de 5% dos isolados (21/481; 4,3%).
Em relação ao padrão de suscetibilidade para E. coli, emergem como as drogas seguras na gestação testadas mais ativas as cefalosporinas de quarta, terceira e segunda geração, Piperacilina/Tazobactam e Nitrofurantoína, conforme a Tabela 1. Quando avaliados os outros germes prevalentes, Enterococcus sp e Streptococcus agalactiae demonstraram boa sensibilidade para os antibióticos testados [Ampicilina (93%) e Vancomicina (100%)], assim como Proteus mirabilis e Klebsiella pneumoniae, que apresentaram perfil de sensibilidade semelhante ao encontrado para E. coli (Tabela 2).
Tabela 1.
Padrão de suscetibilidade das amostras de Escherichia coli a partir dos isolados de urocultura de gestante
Agente antimicrobiano | Suscetibilidade (% dos casos) | |||
---|---|---|---|---|
Klebsiella pneumoniae (16 casos) |
Proteus mirabilis (18 casos) |
|||
S | R | S | R | |
Ampicilina | 28,6 | 71,4 | 94 | 6 |
Cefalosporina de 1 o geração | 81,3 | 28,7 | 94 | 6 |
Cefalosporina de 2 o geração | 100 | 0 | 100 | 0 |
Cefalosporina de 3 o geração | 100 | 0 | 100 | 0 |
Cefalosporina de 4 o geração | 100 | 0 | 100 | 0 |
Ertapenem | 100 | 0 | 100 | 0 |
Colistina | 100 | 0 | 0 | 100 |
Ciprofloxacino | 100 | 0 | 100 | 0 |
Gentamicina | 100 | 0 | 100 | 0 |
Nitrofurantoína | 69 | 31 | 0 | 100 |
Piperacilina/Tazobactam | 83 | 17 | 100 | 0 |
Sulfametoxazol/Trimetoprim | 100 | 0 | 91 | |
Tigeciclina | 100 | 0 |
S
: Suscetível
I
: Intermediário
R
: Resistente
Tabela 2.
Padrão de suscetibilidade de Proteus mirabilis e Klebsiella pneumoniae em isolados de urocultura de gestante
Agente antimicrobiano | Suscetibilidade [%,(número de isolados)] | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
S | I | R | ||||
Ampicilina | 54,6 | 166 | 0,05 | 2 | 44,9 | 137 |
Cefalosporina de 1 o geração | 71,8 | 247 | 18,7 | 64 | 9,5 | 33 |
Cefalosporina de 2 o geração | 97,5 | 272 | 1,4 | 4 | 1,1 | 3 |
Cefalosporina de 3 o geração | 98,3 | 290 | 0 | 1,7 | 5 | |
Cefalosporina de 4 o geração | 98,4 | 325 | 0 | 1,6 | 5 | |
Ciprofloxacino | 96,1 | 272 | 0 | 3,9 | 11 | |
Colistina | 100 | 249 | 0 | 0 | ||
Ertapenem | 100 | 302 | 0 | 0 | ||
Gentamicina | 96,9 | 286 | 0 | 3,1 | 9 | |
Nitrofurantoína | 92,1 | 257 | 5 | 14 | 2,9 | 8 |
Piperacilina/Tazobactam | 98,1 | 206 | 0,4 | 1 | 1,5 | 3 |
Sulfametoxazol/Trimetoprim | 63,6 | 165 | 0,3 | 1 | 36,1 | 93 |
Tigeciclina | 100 | 100 | 0 | 0 |
S
: Suscetível
R: Resistente
Em 394 uroculturas de pacientes, foi possível identificar o período gestacional em que a paciente se encontrava. A presença de E. coli em relação ao total de germes isolados foi mais prevalente no primeiro (84%) e segundo trimestres (84%), comparado ao terceiro trimestre (63,7%), embora não tenha havido diferença significativa entre os grupos. Quando observado o padrão de sensibilidade a E. coli entre os grupos, não houve diferença para nenhum dos antibióticos testados, sendo o perfil de suscetibilidade muito semelhante ao grupo total de pacientes.
As uroculturas foram divididas conforme síndrome clínica apresentada (bacteriúria assintomática, cistite e pielonefrite). Esta informação estava disponível em 471 casos. Para bacteriúria assintomática, E. coli correspondeu a 64% (132/205) dos casos; para cistite, 80,7% (67/83) e para pielonefrite, 84,7% (155/183). Novamente, não houve diferença entre os grupos para padrão de suscetibilidade aos antimicrobianos testados.
Foi analisada a evolução do padrão de suscetibilidade em isolados de uroculturas aos antibióticos testados de 2010 a 2013 (Figura 1). É possível notar uma tendência positiva no padrão de suscetibilidade para Ampicilina e Sulfametoxazol/Trimetoprim. Os demais antibióticos não demonstram modificações relevantes ao longo dos anos avaliados no presente estudo.
Figura 1
Comparação do padrão de suscetibilidade aos antibióticos testados em isolados de uroculturas de 2010 a 2013
Infecção do trato urinário é uma das condições infecciosas mais comuns na gestação. Este estudo analisou a epidemiologia e padrão de suscetibilidade dos uropatógenos mais prevalentes aos antibióticos rotineiramente utilizados no tratamento de bacteriúria assintomática, cistite e pielonefrites.
De acordo com o descrito na literatura11 - 15 , 17 - 19, E. coli foi o germe mais prevalente, seguido de Enterococcus sp, Streptococcus agalactiae e outras enterobactérias como P. mirabilis e K. pneumoniae. Esta situação pode ser explicada pela patogenicidade inerente para colonização urinária e as características de adesão do E. coli no trato urinário. Adicionalmente, o E. coli faz parte da flora normal do trato gastrointestinal, e é a principal fonte de agente infeccioso para bacteriúria assintomática em mães no pré-natal18 , 19. Neste estudo, dividindo as pacientes por idade gestacional e por síndrome clínica (bacteriúria assintomática, cistite e pielonefrite), não houve diferença na prevalência de germes, sendo novamente E. coli o germe mais comumente relacionado à ITU em gestantes. Esta última situação pode ser explicada pela evolução de colonização do trato urinário até a síndrome clínica, sendo, portanto, o mesmo germe implicado na ITU.
Os padrões de suscetibilidade, especialmente ao principal patógeno (E. coli), são bastante assemelhados com o descrito na literatura, ou seja, ampicilina e sulfametoxazol/trimetoprim foram os antimicrobianos menos ativos20 , 21. Adicionalmente, houve resistência frequente em gram-negativos para cefalosporinas de primeira geração. Esta situação está de acordo com a utilização ampla dessas medicações nos últimos anos para tratamento de ITU em gestantes e não-gestantes, acarretando aumento na resistência bacteriana21 - 25. Todos outros antibióticos mostraram ótimo padrão de suscetibilidade. Tendo em vista o restrito arsenal terapêutico para as gestantes, devido ao risco de mal-formações fetais, cefuroxima e nitrofurantoína emergem como excelentes opções no tratamento das síndromes urinárias infecciosas comunitárias em gestantes20.
O presente estudo avaliou a evolução do padrão de suscetibilidade de 2010 até 2013. É possível observar que não houve modificações para a maioria dos grupos estudados. No entanto, é preciso discutir três antimicrobianos em especial. Cefalosporinas de primeira geração têm sido amplamente utilizadas e recomendadas no tratamento empírico de infecções urinárias26. Dessa maneira, a diminuição no padrão de suscetibilidade é esperada, como mostra a Figura 1. Por outro lado, nos últimos anos, tanto ampicilina quanto sulfametoxazol/trimetoprim têm sido evitados e não recomendados rotineiramente20 , 26 , 27. Os autores acreditam que esta prática tem resultados na diminuição da prescrição, utilização e consequentemente da pressão de resistência, especialmente de gram-negativos, sobre ampicilina (aumento na suscetibilidade de 45 para 64%) e sulfametoxazol/trimetoprim (aumento de 59 para 75% no padrão de suscetibilidade).
Em relação às limitações do estudo, o pequeno número de isolados de urocultura deve ser considerado. Adicionalmente, a limitação de testagem a alguns antibióticos no período de 2007 a 2009 evitou a comparação de evolução no padrão de suscetibilidade aos antibióticos testados neste período.
Em conclusão, o padrão de suscetibilidade apresentado neste estudo revela que a escolha para tratamento de ITU na gestação deve ser nitrofurantoína (para infecções não-complicadas) ou cefalosporinas de primeira geração como Cefuroxima (para infecções não-complicadas e complicadas), em detrimento de ampicilina, cefalosporinas de primeira geração e sulfametoxazol/trimetoprim. É importante destacar o aumento de suscetibilidade para ampicilina e sulfametoxazol/trimetoprim desde 2010 até 2013. Estes dados devem ser avaliados com cautela. Novos estudos e o seguimento do mesmo mostrarão a tendência de suscetibilidade para estes e outros antibióticos na prática clínica.
Finalmente, é fundamental que a terapêutica empírica nas síndromes infecciosas urinárias na gestação seja iniciada conforme os padrões de suscetibilidade descritos na literatura28, devendo ser avaliada imediatamente após o resultado da urocultura para o correto tratamento direcionado ao patógeno implicado.