DOI: S0100-72032014000500211 - volume 36 - Maio 2014
Sayonara Drummond, Thaís Silva Souza, Fernanda Goulart de Lima, Alan Araújo Vieira
Apesar do consenso sobre a importância do uso da corticoterapia antenatal (CAN) em gestações com risco de parto prematuro, ainda persistem controvérsias, tais como o tipo ideal de corticoide, suas doses e as vantagens de ciclos repetidos1 , 2.
Está claro na literatura que o uso de corticoide antenatal não aumenta o risco materno de infecção ou de óbito e está associado à importante diminuição da mortalidade neonatal e das principais morbidades neonatais: síndrome de desconforto respiratório, hemorragia ventricular, sepse neonatal precoce e enterocolite necrosante3.
Atualmente, o Ministério da Saúde do Brasil recomenda4: 2 doses de 12 mg de betametasona intramuscular (IM) com intervalo de 24 horas ou 4 doses de 6 mg de dexametasona IM com intervalo de 12 horas em gestações de risco de parto prematuro entre 24 e 34 semanas de idade gestacional. O melhor benefício começa 24 horas após o início da terapia e tem uma duração de 7 dias.
Em 2004, um estudo da Rede Brasileira de Pesquisas Neonatais mostrou a correlação entre o uso antenatal de corticosteroides e melhores condições de nascimento de pré-termos, baseado nos valores do escore Apgar no primeiro e quinto minuto5. Esses achados comprovaram os anteriormente relatados por Gardner, em 19956.
Atualmente, a Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organization incorporou a CAN como um fator para avaliar a qualidade do atendimento perinatal7.
Apesar das evidências das vantagens do uso de corticoide antenatal, sua utilização nas maternidades brasileiras ainda está longe do ideal5 , 6 , 8.
O objetivo deste estudo foi avaliar a influência da CAN na necessidade de reanimação em sala de parto e evolução ao óbito em recém-nascidos prematuros de muito baixo peso.
Estudo de coorte, no qual foram acompanhados todos os recém-nascidos (RN) com peso de nascimento menor ou igual a 1.500 g e idade gestacional menor ou igual a 34 semanas no período de janeiro de 2006 a dezembro de 2011, no Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP)/Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói (RJ). Foram excluídos do estudo os RN com anomalias congênitas maiores ou anomalias cromossomiais, os com infecções do grupo do complexo TORCHS: toxoplasmose, outras infecções (malária, varicela, hepatite, B e C, doença de Chagas, varicela, HIV, parvovirose), rubéola, citomegalovírus, herpes simples e sífilis, e os transferidos para ou os oriundos de outras maternidades.
Os RN foram separados em 2 grupos em relação à administração de corticosteroide antenatal, definida como a administração de pelo menos uma dose de 12 mg de betametasona intramuscular até 1 hora antes do parto, e foram comparados em relação às suas características clínicas e demográficas.
Foram coletados os seguintes dados referentes à gestação e ao parto: frequência de pré-natal, presença de hipertensão arterial materna4, de trabalho de parto prematuro4, de febre materna (temperatura axilar ≥37,8 24 horas antes do parto ou após a ocorrência do mesmo), de corioamnionite4, o uso de corticosteroide antenatal e o tipo de parto.
Em relação aos RN, foram coletados os seguintes dados: peso ao nascer, gênero, idade gestacional em semanas (sendo levados em consideração, primeiramente, a data da última menstruação ou a ultrassonografia com até 12 semanas de gestação e, finalmente, o método de New Ballard)9, classificação quanto à relação idade gestacional e peso ao nascer pelo método de Alexander et al.10, asfixia (Apgar no quinto minuto menor que 7), escore Clinical Risk Index for Babies (CRIB)11 , 12, sepse comprovada (hemocultura positiva), presença de canal arterial (diagnóstico ecocardiográfico), enterocolite necrosante grau II e III de Bell et al.13, hemorragia intraventricular grau III e IV14, necessidade de reanimação na sala de parto e manobras utilizadas (ventilação com balão e máscara, ventilação com balão e cânula traqueal, massagem cardíaca e uso de medicações)15 e a mortalidade ocorrida durante a internação na UTI neonatal.
As variáveis contínuas foram descritas por meio de médias e desvio padrão e comparadas sendo utilizado o teste t de Student e teste de Mann-Whitney, quando necessário. As variáveis categóricas foram descritas por meio de percentuais e comparadas pelo teste do χ2 com correção de Fisher. Foi realizada regressão logística binária para avaliar a influência do uso de corticosteroide antenatal na necessidade de manobras de reanimação neonatal e na evolução ao óbito durante a internação. Foi utilizado o pacote estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) 16.0 e a significância foi considerada 0,05. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina do HUAP/UFF sob o número 0008.0.258.000-09.
Dos 261 RN admitidos na UTI neonatal do HUAP/UFF com peso de nascimento menor ou igual a 1.500 g e idade gestacional menor ou igual a 34 semanas, 220 preencheram os critérios de inclusão e 41 foram excluídos (11 transferidos para outras unidades, 22 oriundos de outras maternidades e 8 malformados). Dos incluídos no estudo, 182 (82,7%) receberam corticosteroide antenatal e 38 (17,3%) não receberam.
Houve diferença em relação à frequência de pré-natal (76,9 versus57,9%) e de parto operatório (77,5 versus 50,0%), que foram mais elevadas no grupo de RN que recebeu CAN. A frequência de asfixia, o valor do escore CRIB e a necessidade de reanimação em sala de parto foram menores nesse grupo. Não houve diferença entre as demais características estudadas (Tabela 1).
Receberam corticosteroide antenatal – n (%) | Não receberam corticosteroide antenatal – n (%) | Valor p | |||
---|---|---|---|---|---|
Pré-natal presente | 140 (76,9) | 22 (57,9) | 0,003 | ||
Hipertensão materna | 85 (46,7) | 12 (35,6) | 0,1 | ||
Febre materna | 13 (7,1) | 3 (7,9) | 0,7 | ||
Corioamnionite | 34 (18,7) | 7 (18,4) | NS | ||
Trabalho de parto prematuro | 81 (44,5) | 22 (57,9) | 0,1 | ||
Parto operatório | 141 (77,5) | 19 (50,0) | 0,001 | ||
Sexo masculino | 90 (49,4) | 23 (60,5) | 0,2 | ||
Pequeno para a idade gestacional | 86 (47,2) | 15 (39,5) | 0,4 | ||
Asfixia* | 14 (7,6) | 11 (28,9) | 0,001 | ||
Síndrome do desconforto respiratório | 122 (67,0) | 29 (76,3) | 0,3 | ||
Persistência de canal arterial | 51 (28,0) | 8 (21,0) | 0,5 | ||
Enterocolite necrosante | 20 (11,0) | 2 (5,2) | 0,3 | ||
Hemorragia intraventricular III ou IV | 12 (6,5) | 2 (5,2) | 0,5 | ||
Sepse comprovada | 30 (16,4) | 4 (10,5) | 0,4 | ||
Óbitos | 27 (14,8 | 13 (34,2) | 0,006 | ||
Média±DP | Mediana (Mín–Máx) | Média±DP | Mediana (Mín–Máx) | ||
Peso (gramas) | 1.102±261 | 1.137 (530–1.500) | 1.040±276 | 1.057 (590–1.495) | 0,1 |
IG (semanas) | 29,52±2,485 | 30 (24–34) | 29,21±2,75 | 30 (24–34) | 0,4 |
Escore CRIB | 2,91±3,45 | 1 (0–20) | 4,61±4,77 | 3 (0–18) | 0,04 |
Com corticosteroide – n (%) | Sem corticosteroide – n (%) | Odds Ratio | IC95% | Valor p | |
Reanimação | 86 (47,2) | 26 (68,4) | 2,4 | 1,1–5,0 | 0,02 |
VPP com máscara | 74 (40,6) | 15 (39,5) | 0,9 | 0,4–1,9 | 0,8 |
VPP com cânula traqueal | 49 (26,9) | 22 (57,9) | 3,7 | 1,7–7,6 | 0,000 |
Massagem cardíaca | 8 (4,4) | 8 (21,0) | 5,7 | 2,0–16,5 | 0,001 |
Medicações | 3 (1,6) | 5 (13,1) | 8,9 | 2,0–39,4 | 0,004 |
*
Apgar de quinto minuto <7
NS
: não significante
DP
: desvio padrão
IG
: idade gestacional
: Clinical Risk Index for Babies
: intervalo de confiança de 95%
VPP
: ventilação com pressão positiva
Tabela 1
Comparação entre as características clínicas das gestantes e dos recém-nascidos que receberam (n=182) e que não receberam (n=38) corticosteroide antenatal
Não houve diferença entre os grupos em relação à necessidade de ventilação com balão e máscara. No entanto, houve diferença na necessidade de procedimentos avançados de reanimação (ventilação com balão e cânula traqueal, massagem cardíaca e uso de medicações) (Tabela 2).
Com corticosteroide – n(%) | Sem corticosteroide – n(%) | Odds Ratio | IC95% | Valor p | |
---|---|---|---|---|---|
Reanimação | 86 (47,2) | 26 (68,4) | 2,4 | 1,1–5,0 | 0,02 |
VPP com máscara | 74 (40,6) | 15 (39,5) | 0,9 | 0,4–1,9 | 0,8 |
VPP com cânula traqueal | 49 (26,9) | 22 (57,9) | 3,7 | 1,7–7,6 | 0,001 |
Massagem cardíaca | 8 (4,4) | 8 (21,0) | 5,7 | 2,0–16,5 | 0,001 |
Medicações | 3 (1,6) | 5 (13,1) | 8,9 | 2,0–39,4 | 0,004 |
: intervalo de confiança de 95%;
VPP
: ventilação com pressão positiva
Tabela 2
Análise da influência da corticoterapia antenatal nas manobras de reanimação nos grupos estudados - regressão logística binária
Não ter recebido CAN aumentou a incidência de óbito em 3 vezes (IC95% 1,4-6,5; p<0,01).
Destaca-se neste estudo que os RN de muito baixo peso e com idade gestacional menor ou igual 34 semanas que não receberam CAN tiveram maior chance de serem reanimados e de necessitarem de procedimentos avançados de reanimação na sala de parto.
Em geral, 2 em cada 3 RN com peso de nascimento menor que 1.500 g necessitam de reanimação. No Brasil, a cada ano, cerca de 25 mil RN de muito baixo peso necessitam de assistência ventilatória na sala de parto15.
O ato de reanimar um recém-nascido, principalmente os prematuros, não é livre de riscos. Há a possibilidade de complicações graves, tais como pneumotórax, hemotórax, fratura de costelas, laceração de fígado, laceração esofágica, hemorragia intracraniana, falha na intubação orotraqueal e intubação seletiva, além de poder contribuir, de forma direta ou indireta, para o aumento na incidência de patologias tardias, como displasia broncopulmonar, retinopatia da prematuridade e leucomalácea periventricular15 - 17. Portanto, qualquer procedimento que possa minimizar os riscos relacionados à reanimação em sala de parto, tal como o uso de CAN, é de crucial importância na perinatologia.
Durante a gestação, a exposição fisiológica fetal ao cortisol é baixa até 32 semanas, quando a produção começa a aumentar para preparar o feto para a vida extrauterina18. Quando administrado à gestante, o corticoide atua de múltiplas formas no feto. Acredita-se que a ação principal da CAN, a despeito da provável diminuição da multiplicação celular, seja acelerar a maturação dos tecidos fetais19 , 20.
Em relação ao pulmão, age aumentando a produção de surfactante e diminuindo a permeabilidade vascular e, consequentemente, a perda proteica para o espaço alveolar, gerando, com isso, aumento da complacência pulmonar20.
Quanto ao sistema cardiovascular, há relatos de que RN expostos a corticosteroide antenatal apresentam pressão arterial mais estável nas primeiras 24 horas de vida. Isso faz com que eles necessitem menos de reanimação e de medicamentos vasopressores após o nascimento20.
Também são claros os relatos de menor ocorrência de hemorragia intraventricular em RN que receberam corticosteroide antenatal, pelo menos uma dose em até uma hora antes do parto19 , 21.
Em decorrências de todas essas ações, uma melhora importante das condições clínicas dos RN é esperada ao nascimento quando se faz uso da CAN e, consequentemente, menor necessidade de intervenções na sala de parto. Isso foi confirmado por este estudo, no qual a frequência de asfixia foi menor no grupo que recebeu CAN, além de menor necessidade de reanimação e, principalmente, menor necessidade de procedimentos avançados de reanimação, corroborando os achados da Rede Brasileira de Pesquisas Neonatais5.
Neste estudo, também não foi verificada diferença na incidência das principais morbidades neonatais. Isso pode ser explicado pela grande diferença de quantidade de RN alocados em cada grupo, já que o uso de CAN no HUAP/UFF é alto (83%).
O escore CRIB, utilizado para avaliar risco de mortalidade em RN de muito baixo peso, foi menor no grupo de RN que recebeu CAN em relação ao que não recebeu (Tabela 1). Esse também pode ser um efeito da melhora das condições de nascimento provocada pelo uso da CAN, já que o CRIB utiliza, além do peso de nascimento e idade gestacional, parâmetros gasométricos e necessidade de oxigênio, que, indiretamente, são relacionados com a função pulmonar10 , 19.
Na maioria dos trabalhos publicados, observa-se influência importante da idade gestacional e do peso de nascimento nas condições ao nascer dos RN e na necessidade de reanimação neonatal. Quanto menor o peso de nascimento e a idade gestacional, maior a necessidade de reanimação e maior a mortalidade. Neste estudo, no entanto, a idade gestacional e o peso de nascimento não foram diferentes entre os grupos estudados, o que nos sugere, que o menor percentual de necessidade de reanimação e óbito seja de fato correlacionado apenas ao uso da CAN.
Importante ressaltar que houve diferença entre os grupos em relação à frequência de pré-natal e de parto operatório, que foi maior no grupo que fez uso da CAN. Provavelmente, há uma correlação direta entre a presença de pré-natal e a indicação mais precisa do uso de CAN e, talvez, a indicação do parto operatório. De fato, um pré-natal adequado aumenta a possibilidade de diagnóstico precoce e manuseio adequado de patologias gestacionais, otimizando o uso de CAN nas gestantes que possuem tal indicação.
Concluímos que o uso da CAN gerou diminuição da necessidade de reanimação neonatal, principalmente de procedimentos avançados de reanimação, além de diminuição da mortalidade nos RN estudados.
O uso desse medicamento, que traz poucos riscos para as mães e imensos benefícios para a população de RN prematuros, deve ser mais incentivado, principalmente no Brasil, onde a sua frequência de uso ainda é muito baixa.