DOI: 10.1590/So100-720320140005086 - volume 36 - Dezembro 2014
Ana Dorcas de Melo Inagaki, Nadyege Pereira Cardoso, Renata Julie Porto Leite Lopes, José Antônio Barreto Alves, José Roberto Freire Mesquita, Karina Conceição Gomes Machado de Araújo, Satie Katagiri
A toxoplasmose assume importância significativa em gestantes devido ao risco de infecções congênitas, decorrentes da infecção aguda materna e consequente transmissão do Toxoplasma gondii por via transplacentária1. Em gestantes, essa transmissão também pode ocorrer por reinfecção ou recrudescimento2,3.
A transmissão congênita é mais frequente se a infecção for adquirida durante o terceiro trimestre de gestação, e é menor quando a infecção ocorre durante o primeiro trimestre, sendo sua gravidade inversamente proporcional. As principais sequelas para o recém-nascido são coriorretinite, hidrocefalia, calcificação cerebral4.
Em humanos, a taxa de prevalência de toxoplasmose varia entre 20 e 90% da população mundial adulta, dependendo da região, sendo mais elevada em regiões quentes e úmidas, especialmente quando associada às más condições de saneamento e hábitos alimentares5. No Brasil, a soroprevalência em gestantes varia de 31,1%, em Caxias do Sul6, a 91,6%, em Mato Grosso do Sul7. Em Sergipe, é de 69,3% e em sua capital, 77,8%8. A soroprevalência aumenta com a idade, mas a taxa de aquisição de infecção varia de acordo com o país e o nível socioeconômico. Em populações que vivem sob precárias condições de higiene pode ser alcançada uma soroprevalência quase máxima ainda na infância9.
Sendo o pré-natal o momento favorável para educação em saúde, é importante que os profissionais de saúde conheçam os fatores de risco associados à aquisição da infecção pelo T. gondii para que ofereçam informações adequadas às gestantes sobre sua prevenção10.
As orientações de prevenção primária devem enfatizar a importância de lavar as mãos ao manipular carne crua; evitar o consumo de carne mal cozida, água sem tratamento e leite não pasteurizado, assim como de alimentos expostos a moscas, baratas, formigas e outros insetos. Outras recomendações incluem lavar bem as frutas e legumes que serão consumidos crus. É preciso também evitar contato com gatos, utilizar luvas ao manipular fezes desses animais e o solo durante a jardinagem ou lidar com horta e agricultura1.
Uma forma atual utilizada para conhecer mais detalhadamente as condições de saúde da população é por meio da utilização de técnicas de geoprocessamento, ou seja, mediante mapas que permitem observar a distribuição espacial de situações de risco e de problemas de saúde. Essa abordagem associa informações gráficas (mapas) a bases de dados de saúde11 e permite o mapeamento das doenças contribuindo para a estruturação e análise de riscos socioambientais. O geoprocessamento proporciona, portanto, a integração de dados demográficos, socioeconômicos e de saúde12.
O interesse para desenvolver este estudo surgiu devido à lacuna de conhecimento quanto à distribuição espacial da infecção pelo T. gondii no Brasil. Essa análise se justifica, pois permitirá que as políticas públicas sejam direcionadas para populações com maior risco para aquisição da toxoplasmose durante a gestação e subsequente infecção congênita.
Os objetivos do presente estudo foram analisar a distribuição espacial da prevalência de anticorpos antitoxoplasma em gestantes residentes na capital do estado de Sergipe, e correlacionar a prevalência de anticorpos antitoxoplasma com a faixa etária materna e o local de residência.
Foi desenvolvido um estudo ecológico, descritivo e analítico, realizado no período de 01 de janeiro a 31 de dezembro de 2012 em Aracaju, a capital do estado de Sergipe, Nordeste do Brasil. Aracaju está localizada na região leste do estado (10° 54' 40" S e 37° 04' 18" W), com uma área de 181,8 km2, encontra-se a 4 m acima do nível do mar e tem população de 571.149 habitantes, segundo censo populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística do ano de 201013.
É composta por 39 bairros (Figura 1) e subdividida em 8 regiões de saúde (Figura 2). As regiões e bairros foram caracterizados de acordo com dados do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) do município do ano de 2012. A região 1 de saúde compõe a zona de expansão da cidade com bairros "praianos", como Atalaia e Coroa do Meio, com diversas casas de veraneio, e que como a região (composta pelos bairros Jardins, Luzia e Pereira Lobo), apresenta melhores condições socioeconômicas, com uma proporção de dependentes de assistência do Sistema Único de Saúde (SUS) de 82 e 77%, respectivamente.
Figura 1
Mapa da cidade de Aracaju com distribuição por bairros
Figura 2
Mapa da cidade de Aracaju com distribuição das oito regiões de saúde. A região 1 é composta pela zona de expansão da cidade. As regiões 2, 4, 7 e 8 compreendem os bairros da periferia. A região 3 é composta por bairros nobres. As regiões 5 e 6 compreendem os bairros mais antigos da cidade
Já as regiões 2, 4, 7 e 8 compreendem os bairros da periferia, como Santa Maria, José Conrado, América e Santos Dumont, habitados por famílias de menor poder socioeconômico, sendo que nas regiões 2 e 4 a dependência SUS é de 81%, enquanto que nas regiões 7 e 8 é de 95%.
Por fim, a região 5 compreende os bairros mais antigos da cidade, como Centro e Santo Antônio, com população na sua maioria adulta e economicamente estável e 82% de dependência SUS. A região 6, onde se localiza o bairro Suissa, a proporção de dependentes do SUS é de 92%.
Os dados secundários foram coletados no Centro de Especialidades Médicas, o qual é referência para realização dos exames laboratoriais de todas as gestantes assistidas pelo SUS. A população foi constituída por gestantes residentes nesse município e a amostra foi composta por 4.883 gestantes que foram submetidas ao exame para detecção de anticorpos antitoxoplasma na ocasião da adesão ao pré-natal. O protocolo de atendimento pré-natal desse município preconiza que a pesquisa de anticorpos IgM e IgG antitoxoplasma deve ser solicitada após a primeira consulta e não prevê as repetições de rotina.
Os testes sorológicos foram realizados em amostra de sangue periférico, sendo utilizado bioelisa Toxo IgG e IgM (Biokit, S.A. Lliçà d'Amunt, Barcelona, SPAIN®), obedecendo às instruções do fabricante.
Os dados obtidos foram processados no pacote estatístico Epi info (Epi 7, Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, EUA) e também em planilha do pacote Microsoft Office Excel versão 2010. Para avaliar a associação entre prevalência de anticorpos para essa infecção e a faixa etária, foi aplicado o teste do X2.
A análise espacial da prevalência de toxoplasmose foi realizada no programa TerraView, versão 4.2.2, utilizando o estimador de intensidade Kernel, que permite estimar a quantidade de eventos por unidade de área em cada célula de uma grade regular que recobre a região estudada. O método de alisamento por função Kernel é uma técnica não paramétrica que promove a suavização estatística, o que permite filtrar a variabilidade de um conjunto de dados, retendo as características essenciais dos locais. Foi utilizada, na confecção dos mapas, a base cartográfica do município com eixos dos bairros. Com o objetivo de identificar áreas de maior concentração de casos no município, foram utilizados como parâmetros para gerar o mapa de Kernel, grade de 100 colunas sobre os eventos, com algoritmo de função quártica e raio adaptativo14.
Este estudo obedeceu aos princípios éticos de acordo com a Resolução 466/2012 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos do Hospital Universitário da Universidade Federal de Sergipe sob número CAAE 12724713.0.0000.5546.
Foram analisados os resultados a sorologia de 4.883 gestantes, cuja idade variou entre 12 e 50 anos (média de 25,2 anos; mediana 25; e moda 24; 273 pacientes de 24 anos).
A soroprevalência encontrada para anticorpos antitoxoplasma da classe IgG foi de 68,50%, com intervalo de confiança de 95% (IC95%) 67,2—69,8, e a da classe IgM foi de 0,36% (IC95% 0,2—0,6). Houve associação significativa (p< 0,001) entre prevalência de IgG e incremento da idade, passando de 61,30% (IC95% 58,5—64,0) entre as adolescentes, para 69,50% (IC95% 68,0—71,1) e 78,5% (IC95% 74,7—82,0) entre as faixa etárias de 20 a 34 anos e entre aquelas com 35 anos ou mais, respectivamente.
No que tange à possível infecção aguda, a prevalência de anticorpos antitoxoplasma da classe IgM foi de 0,17% (IC95% 0,05-0,60); 0,40% (IC95% 0,20-0,70) e 0,60% (IC95% 0,20—1,70) para as faixas etárias de 10 a 19 anos, 20 a 34 anos e ≥35 anos, respectivamente, não havendo diferença significante entre elas.
A estimativa de Kernel para o número de casos de toxoplasmose na cidade, de acordo com o resultado do IgG total, IgM total e IgG por faixa etária, está apresentado na Figura 3. A gradação de cores (de verde para vermelho) quantifica a densidade de casos por bairro, ou seja, quanto mais próximo do vermelho maior a prevalência de casos nessas regiões, enquanto que o verde indica menor prevalência.
Figura 3
Distribuição espacial da toxoplasmose por variação de cores (verde para o vermelho), evidenciando o aumento da soroprevalência de anticorpos antitoxoplasma IgM, IgG e IgG por faixa etária
Com relação à soroprevalência de IgG por faixa etária, foi observada densidade mais elevada de ocorrência de casos na faixa etária de 10 a 19 anos em bairros localizados nas regiões de saúde 6, 7 e 8. Convém ressaltar que houve ainda prevalência relevante em um bairro da região 2 somente para essa faixa etária. Entre 20 e 34 anos ocorreu maior prevalência de IgG em bairros das regiões 3, 4 e 5; já entre as gestantes com idade igual ou superior a 35 anos a prevalência se concentrou somente nas regiões 3 e 4. Em relação à distribuição geral do IgG, ocorreu maior prevalência nas regiões 3 e 5 e para o IgM nas regiões 2, 4 e 7.
Quanto à distribuição das prevalências de positivida-de de IgG e IgM, entre as gestantes avaliadas observa-se prevalência mais elevada de anticorpo IgG nos bairros Santa Maria, Santos Dumont e São Conrado, em ordem decrescente. Situação semelhante foi encontrada quanto à ocorrência de IgM, cuja prevalência foi maior nos bairros Santa Maria e São Conrado, além do bairro América, os quais compõem as regiões de saúde 2 e 7. Essas regiões apresentaram um percentual de 20% de gestantes adolescentes.
A distribuição espacial tem sido utilizada na área de pesquisa em saúde por se tratar de uma análise espacial que fornece informações sobre a estrutura espacial e dinâmica da doença, caracterizando a condição de saúde em uma determinada região14.
Nossos achados indicam uma prevalência de anticorpos antitoxoplasma de 68,5%, que está de acordo com outros estudos brasileiros1–15, resultado semelhante à pesquisa realizada em 2007 nesse mesmo município, que evidenciou soropositividade de 77,8% em 20078. A prevalência encontrada é preocupante, considerando-se que o risco de ocorrência de toxoplasmose congênita é elevado quando a prevalência de soropositividade para toxoplasmose encontra-se entre 25 e 80%16.
Um fato importante a ser destacado é que aproximadamente 30% das gestantes eram suscetíveis à infecção pelo T. gondii. Isso evidencia a importância de intensificar as medidas de prevenção primária devido à possibilidade de ocorrer a soroconversão durante a gestação. Estudo realizado em Goiânia, com 522 grávidas e 592 não grávidas, observou que gestantes tinham 2,2 vezes mais chance de se infectar com o parasita em relação às não grávidas17. Revelou-se ainda uma associação entre a soroprevalência de anticorpos antitoxoplasma da classe IgG e o incremento da idade das gestantes, como observado naquelas com idade igual ou superior a 35 anos, o que confirma os dados já apresentados na literatura8.
Em contrapartida, deve-se esperar que as infecções agudas com detecção de anticorpos da classe IgM ocorram mais frequentemente em pacientes mais jovens, devendo-se dar especial atenção às gestantes adolescentes, considerando que as mesmas tem risco 7,7 vezes maior de adquirir toxoplasmose17. Entretanto, nesta pesquisa não houve diferença significativa quanto a esse aspecto, situação similar à encontrada no estudo realizado na cidade do Paraná18.
É comum uma importante associação entre locais com níveis socioeconômicos baixos e o aumento da frequência de gestação em jovens19. A baixa escolaridade dessas mulheres e a consequente falta de informação sobre os cuidados preventivos para toxoplasmose a tornam propensas ao risco aumentado de infecção e subsequente transmissão ao feto20. O presente estudo confirmou essa assertiva, pois indicou soroprevalência mais elevada em gestantes jovens em bairros carentes da cidade, como Santa Maria, Lamarão e Santos Dumont, justamente os bairros com maior proporção da população dependente da assistência SUS.
No bairro Santa Maria foi desativado recentemente um aterro com todos os resíduos orgânicos recolhidos da capital, que favorecia a presença de gatos e subsequente exposição dos moradores, especialmente crianças e adolescentes. Isso pode ter contribuído para uma positividade elevada de IgG entre as gestantes mais jovens1.
Bairros com baixas condições socioeconômicas apresentaram maior proporção de infecção ativa, com IgM reagente. Entre as 18 gestantes com IgM reagente, 4 eram do bairro Santa Maria, 2 do bairro América e 2 do São Conrado, caracterizados como bolsões de pobreza. Esses dados são coerentes com os resultados de estudo realizado com 3.325 recém-nascidos no mesmo município, submetidos à triagem para toxoplasmose congênita. As duas crianças com infecção confirmada eram procedentes de bairros com as mesmas características21. Quanto à soroprevalência para IgG, observa-se uma maior densidade de gestantes com idade igual ou superior a 35 anos no Centro, São José e Suissa, bairros mais antigos da capital, o que já era esperado devido a um maior quantitativo de mulheres adultas nesses locais e melhores condições sanitárias.
A partir dos resultados apresentados observou-se que houve maior concentração de gestantes previamente infectadas pelo T. gondii residentes em áreas mais pobres, as quais estão expostas a fatores de risco conhecidos como baixo nível socioeconômico e gestação na adolescência17. Dessa forma, torna-se necessário, por parte do poder público, estabelecer estratégias direcionadas à melhoria das condições de saneamento básico, acesso à educação, incremento de ações voltadas à prevenção primária, com orientações constantes relacionadas aos hábitos higiênicos dietéticos, a fim de minimizar a exposição aos fatores de risco. Adicionalmente, há a necessidade de melhoria do programa de diagnóstico precoce da toxoplasmose, incluindo repetições da sorologia para as gestantes suscetíveis.
Embora exista um crescente interesse e aumento das pesquisas sobre a prevalência de toxoplasmose em gestantes no Brasil, ainda são raros os estudos ecológicos nessa temática, o que torna este estudo relevante. O geoprocessamento através das bases cartográficas digitais constitui apenas o ponto de partida das análises espaciais a serem georreferenciadas no campo da vigilância em saúde22.
Este estudo teve como limitação ter sido feito apenas com gestantes assistidas pelo SUS. Por se tratar de análise de banco de dados, sem contato direto com a paciente, não foi possível avaliar outras variáveis. Outra limitação foi o fato dessas gestantes não apresentarem testes confirmatórios, como o IgA e o teste de avidez para IgG. Entretanto, o grande tamanho amostral e sua representatividade com relação à população de gestantes o torna adequado para a estimativa que se pretendeu. Portanto, o presente estudo fornecerá subsídios para o georreferenciamento visando o controle e a prevenção da toxoplasmose congênita.
Em conclusão, este primeiro estudo realizado em Sergipe veio suprir uma lacuna do conhecimento de dados relevantes para o planejamento e a promoção de saúde perinatal, ao apresentar a prevalência de anticorpos antitoxoplasma de acordo com a distribuição dos casos nos diferentes bairros do município e contribuirá para a discussão acerca de medidas preventivas que são apropriadas para a realidade de cidades com características semelhantes.
Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Sergipe – UFS – Aracaju (SE), Brasil.
Ao Centro de Especialidades Médicas, por fornecer os dados necessários para a realização deste estudo. Ao Programa de Iniciação Científica da Universidade Federal de Sergipe (UFS) pela bolsa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, Coordenação de Pesquisa (PIBIC-COPES).