DOI: S0100-72032014000500198 - volume 36 - Maio 2014
Vania Reis Girianelli, Luiz Claudio Santos Thuler, Gulnar Azevedo e Silva
O câncer do colo do útero é uma importante causa de morbidade e mortalidade na população feminina, particularmente nos países em desenvolvimento, onde ocorrem 85% dos casos diagnosticados1. No Brasil, é a terceira causa de óbito por câncer entre as mulheres, desde 2006, após as correções realizadas para óbitos por câncer do útero porção não especificada (SOE) e causas mal definidas2. Tem sido observada queda na tendência de mortalidade em todas as capitais das regiões brasileiras e nos demais municípios das regiões Sul e Sudeste. No entanto, nos municípios do interior das regiões Norte e Nordeste, a tendência é crescente, sinalizando a necessidade de atenção para as áreas menos privilegiadas economicamente, que concentram a população com maior risco e com menor acesso aos serviços de saúde. Já a taxa de incidência no país é superada apenas pela do câncer de mama e recentemente pela do cólon e reto, excluindo câncer de pele não melanoma3. A incidência e mortalidade do câncer do colo do útero, contudo, podem ser significativamente reduzidas com a implantação de programas efetivos de rastreamento e tratamento oportuno das lesões precursoras.
Em revisão sistemática da literatura sobre a cobertura do exame de Papanicolaou no Brasil4, os autores identificaram poucos estudos sobre o tema e a maioria concentrado nas grandes cidades das regiões Sul e Sudeste do país. Os estudos sinalizaram que as mulheres mais jovens, de baixa escolaridade, de baixo nível socioeconômico e com menor renda familiar eram as que menos faziam o exame.
Diversas estratégias vêm sendo adotadas para garantir o acesso ao programa de rastreamento do câncer do colo do útero, bem como o seguimento das mulheres com exames alterados. A Estratégia Saúde da Família (ESF), por ser um modelo de assistência constituído por equipes responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias de uma área geográfica delimitada, favorece o acesso da população ao programa. Essa estratégia também possibilita a identificação e busca ativa das mulheres elegíveis para o rastreamento e tratamento, aumentando a resolutividade da assistência e consequentemente o controle dessa neoplasia.
Em estudo realizado em áreas cobertas pela ESF no município de Rio Grande, Rio Grande do Sul, o exame foi realizado na unidade de referência em menos da metade das mulheres para as quais o exame foi oferecido5. Em estudo qualitativo que incluiu usuárias da ESF na Parnaíba, Piauí, foi constatado que a maioria delas não realizava o exame em razão de timidez, medo, vergonha e dor, embora reconhecesse a importância6. Apesar da gratuidade do exame na rede do SUS e de ser considerado um exame de fácil realização - pois demanda tecnologia relativamente simples e bem conhecida no país, mas cuja logística apresenta grande complexidade -, ainda há uma importante lacuna nos conhecimentos no que diz respeito às razões pelas quais as mulheres não se submetem ao exame na periodicidade recomendada pelo Ministério da Saúde.
Considerando que o câncer do colo do útero é uma das prioridades das políticas de saúde do país e que a ESF pode exercer um papel fundamental na redução da morbimortalidade dessa neoplasia, o presente estudo objetivou avaliar a adesão ao rastreamento para câncer do colo do útero entre mulheres assistidas pela Saúde da Família dos municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu, do Estado do Rio de Janeiro, que estavam com exames atrasados. Procurou também identificar as causas referidas de não realização dos exames preventivos recomendados.
Trata-se de um estudo de prevalência seletiva7 , 8, tendo como população-fonte as participantes de estudo conduzido pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) em 2002, em que foram avaliados quatro exames (Papanicolaou, citologia em meio líquido, captura híbrida para HPV com coleta por profissional de saúde e por autocoleta) no rastreamento do câncer do colo do útero9. Naquela ocasião, foram incluídas no estudo 2.059 mulheres de 25 a 59 anos, de 13 comunidades assistidas pela Estratégia Saúde da Família dos municípios de Duque de Caxias e de Nova Iguaçu, que não faziam exame de Papanicolaou há mais de três anos. Após 9 anos, foram elegíveis apenas as mulheres que não tiveram diagnóstico de neoplasia intraepitelial cervical de grau II (NIC II) ou lesão mais grave na avaliação histopatológica e não se submeteram à histerectomia no período, e ainda residiam nas áreas de abrangência da pesquisa inicial.
Esses municípios estão localizados na região da Baixada Fluminense, periferia da capital do Estado do Rio de Janeiro, sendo o terceiro e quarto municípios mais populosos do estado. Eles apresentam alto índice de desenvolvimento humano geral e médio em relação às dimensões de educação e de renda. No entanto, as comunidades estudadas estavam entre as mais carentes de cada município.
As mulheres foram novamente contatadas por meio de visita domiciliar pelos agentes de saúde da área adscrita para participarem do estudo. As que aceitaram agendaram entrevista na unidade de saúde da ESF. Elas assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e foram entrevistadas, no período de janeiro a novembro de 2011, por quatro enfermeiras selecionadas e treinadas para o estudo. Foi utilizado um questionário semiestruturado sobre as características socioeconômicas e demográficas, a realização de exames preventivos para câncer do colo do útero e os critérios de elegibilidade supracitados, e consultado o prontuário da unidade de saúde.
Os exames foram classificados como documentado quando era apresentado o laudo com o resultado ou havia registro no prontuário da paciente; os demais foram classificados como relatados. No caso de desconhecimento do dia ou mês do exame realizado, foi registrado o meio do período do mês ou do ano informado, ou foi considerado ignorado quando a mulher não recordava. A adesão ao rastreamento para câncer do colo do útero foi considerada quando a mulher estava com os exames em dia, conforme a recomendação do programa nacional10.
O local de realização dos exames foi categorizado em unidade da ESF, outras unidades da rede pública (SUS) ou unidades da rede privada (Não SUS). Foi avaliada a periodicidade de realização dos exames de Papanicolaou com resultado negativo, considerando o intervalo em anos entre os dois últimos exames e entre o penúltimo e o antepenúltimo exames realizados. Os intervalos foram categorizados em menos de três anos; três anos, recomendação do programa nacional10; e maior ou igual a quatro anos.
As mulheres que estavam com os exames de prevenção do câncer do colo do útero atrasados também foram indagadas quanto aos motivos para o atraso. As causas referidas de não realização do exame foram posteriormente categorizadas em: não percepção de risco - considerar-se não suscetível ao câncer do colo do útero, ou seja, acreditar que essa doença não pode afetá-la; barreiras percebidas à ação - aspectos negativos relacionados à intervenção, como desconforto, dor, vergonha, medo do diagnóstico de câncer; barreiras sociais - aspectos impeditivos para a realização do exame preventivo, como indisponibilidade em razão do trabalho, afazeres domésticos, problemas de saúde; barreiras institucionais - questões administrativas, burocráticas e relativas ao relacionamento entre equipe de saúde e a mulher que dificultam a realização do exame como: dificuldade para marcar o exame, indisponibilidade de recurso material ou pessoal, extravio do resultado do exame, demora na entrega do resultado, mau atendimento.
Foi calculada a prevalência de adesão ao rastreamento do câncer do colo do útero e respectivo intervalo com 95% de confiança (IC95%) e as proporções das demais variáveis avaliadas.
O teste do χ2 foi utilizado para analisar a existência de diferença estatisticamente significativa (p<0,05) entre as proporções, quanto às características socioeconômicas (anos de estudo: até 7 anos, 8 anos ou mais), demográficas (município de residência e faixa etária: 25 a 34, 35 a 49, 50 a 59 anos) e resultados dos exames realizados na pesquisa anterior (normais ou alterados), entre as mulheres entrevistadas e aquelas elegíveis para o estudo. Entre as entrevistadas foi avaliada a existência de diferença na periodicidade da realização dos exames de Papanicolaou com resultado negativo (<3 anos, 3 anos e ≥4 anos) em relação ao local de realização (ESF, SUS e Não SUS); e entre as características socioeconômicas (situação conjugal e anos de estudo) e demográficas (município de residência e faixa etária) e os motivos referidos de atraso na realização dos exames preventivos.
Os dados foram armazenados e analisados no programa estatístico Epi Info, versão 3.5.2, 2010. O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob o número 0012.0.259.000-10, em 19 de outubro de 2010.
Das 2.059 mulheres que participaram do estudo inicial foram excluídas do estudo 56 com diagnóstico de NIC II ou lesão mais grave na avaliação histopatológica, 16 por terem se submetido à histerectomia, 51 que haviam falecido e 843 por mudarem de endereço residencial.
Foram elegíveis para o estudo 1.093 mulheres. Destas, 317 (29,0%) faltaram aos agendamentos realizados pelos agentes de saúde, 7 mulheres não tinham disponibilidade em decorrência do trabalho, 4 se recusaram a participar do estudo e 1 estava hospitalizada no período da realização da entrevista. Entre as que faltaram à entrevista, 163 (51,4%) tinham registro no prontuário de saúde de exames preventivos realizados, sendo que 83 (50,9%) estavam com os exames em dia. As mulheres entrevistadas (764) foram similares às elegíveis para o estudo quanto à faixa etária, escolaridade, município de residência e resultado dos exames anteriores realizados (p>0,05) (Tabela 1).
Características | Entrevistadas | Elegíveis | Valor p | ||
---|---|---|---|---|---|
n | %* | n | %* | ||
Município de residência | |||||
Duque de Caxias | 423 | 55,4 | 575 | 52,6 | 0,2 |
Nova Iguaçu | 341 | 44,6 | 518 | 47,4 | |
Faixa etária | |||||
25 a 34 anos | 217 | 28,4 | 334 | 30,6 | |
35 a 49 anos | 390 | 51,0 | 551 | 50,4 | 0,5 |
50 a 59 anos | 157 | 20,5 | 208 | 19,0 | |
Anos de estudo | 0,9 | ||||
Até 4 | 193 | 25,3 | 279 | 25,7 | |
4 a 7 | 341 | 44,6 | 489 | 45,1 | |
8 ou mais | 224 | 29,3 | 316 | 29,2 | |
Ignorado | 6 | – | 9 | – | |
Exames anteriores** | |||||
Pelo menos um alterado | 323 | 42,3 | 430 | 39,3 | 0,1 |
Todos normais | 441 | 57,7 | 663 | 60,7 |
*
Excluídos os valores ignorados
**
exames de Papanicolaou, citologia em meio líquido, captura híbrida para HPV com coleta por profissional e por autocoleta, realizados durante a pesquisa do INCA
Tabela 1
Características das mulheres entrevistadas e elegíveis para o estudo
A prevalência de adesão ao rastreamento do câncer do colo do útero foi 70,7% (IC95% 63,7-73,9). Entre as 540 mulheres que estavam com os exames em dia, 307 (57,0%) apresentaram o resultado do exame ou havia registro em prontuário. No entanto, 95 mulheres que foram entrevistadas (12,4%) não fizeram exames preventivos desde a pesquisa conduzida pelo INCA.
Três mulheres apresentaram o último exame preventivo alterado. Destas, duas apresentaram os exames confirmatórios (histopatológico ou colposcópico) negativos, e uma, com lesão de baixo grau, ainda não havia repetido o exame após sete meses. Apenas duas mulheres ainda não haviam recebido o resultado do exame realizado na ESF nos últimos dois meses, uma das quais apresentou exame anterior com lesão de baixo grau.
A Tabela 2 apresenta o intervalo de tempo em anos entre os exames realizados com resultado negativo, por local de realização. Entre as mulheres submetidas a exames preventivos no período (669), 409 (61,1%) fizeram o último exame preventivo na unidade de referência da Estratégia da Saúde da Família; 152 mulheres (22,7%) usaram plano de saúde ou particular em razão de maior facilidade de agendamento. Cento e oito (108) mulheres (16,1%) utilizaram outras unidades da rede SUS em decorrência da dificuldade de marcação e não disponibilidade do exame na unidade de referência. Mais de dois terços das mulheres também tiveram o antepenúltimo (68,2%) e o penúltimo (71,5%) exames coletados na ESF. Foi observado, contudo, que a maioria das mulheres repetiu o exame com intervalo menor que três anos, independentemente do local de coleta. O percentual foi menor na ESF entre os dois últimos exames (75,8%), embora a diferença não seja significativa (p=0,6). Em contrapartida, intervalo maior do que o preconizado (≥4 anos) foi proporcionalmente maior entre os dois últimos exames do que entre o penúltimo e o antepenúltimo exame, em todos os locais (p<0,05).
Local | ESF | SUS | Não SUS | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | n | % | |
Local de realização dos exames | ||||||||
Último exame | 409 | 61,1 | 108 | 16,1 | 152 | 22,7 | 669 | 100,0 |
Penúltimo exame | 369 | 71,5 | 67 | 13,0 | 80 | 15,5 | 516 | 100,0 |
Antepenúltimo exame | 259 | 68,2 | 54 | 14,2 | 67 | 17,6 | 380 | 100,0 |
Intervalo em anos entre os dois últimos exames (n=512*) | ||||||||
<3 anos | 241 | 75,8 | 59 | 80,9 | 96 | 79,3 | 396 | 77,3 |
3 anos | 34 | 10,7 | 4 | 5,5 | 11 | 9,1 | 49 | 9,6 |
≥4 anos | 43 | 13,5 | 10 | 13,7 | 14 | 11,6 | 67 | 13,1 |
Intervalo em anos entre o penúltimo e o antepenúltimo exames (n = 378**) | ||||||||
<3 anos | 216 | 85,0 | 51 | 94,4 | 68 | 97,1 | 335 | 88,6 |
3 anos | 18 | 7,1 | 0 | 0,0 | 2 | 2,9 | 20 | 5,3 |
≥4 anos | 20 | 7,9 | 3 | 5,6 | 0 | 0,0 | 23 | 6,1 |
*
Excluídas quatro mulheres com penúltimo exame alterado
**
excluídas duas mulheres com o antepenúltimo exame alterado
SUS
: Sistema Único de Saúde - rede pública
ESF
: Estratégia Saúde da Família
Tabela 2
Local de coleta do exame preventivo e intervalo de tempo entre dois exames normais nas mulheres entrevistadas da Estratégia Saúde da Família, dos municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu
Entre as 224 mulheres com exames preventivos atrasados: 100 referiram não percepção de risco (44,6%), 59 barreiras sociais (26,3%), 50 barreiras percebidas à ação (22,3%) e 48 barreiras institucionais (21,4%). Quanto à não percepção de risco, a principal causa foi considerar desnecessária a realização do exame (38,0%), seguida de descuido (30,0%). Em relação às barreiras sociais, o trabalho foi o principal impeditivo (33,9%). Já a vergonha (48,0%) foi a principal barreira percebida para realização do exame. Quanto às barreiras institucionais, destaca-se a dificuldade para marcar o exame (52,1%). Estas barreiras foram proporcionalmente mais frequentes entre as residentes do município de Nova Iguaçu do que de Duque de Caxias (p<0,01), exceto quanto às barreiras institucionais (p=0,19). Não houve diferença estatisticamente significante entre as demais variáveis avaliadas (p>0,05) (Tabela 3).
Características | n | Não percepção de risco | Barreiras sociais | Barreiras percebidas à ação | Barreiras institucionais | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | %* | n | %* | n | %* | n | %* | ||
Município de residência | |||||||||
Duque de Caxias | 124 | 56 | 45,2 | 32 | 25,8 | 24 | 19,4 | 30 | 24,2 |
Nova Iguaçu | 100 | 44 | 78,6 | 27 | 48,2 | 26 | 46,4 | 18 | 32,1 |
Valor p | <0,01 | <0,01 | <0,01 | 0,19 | |||||
Faixa etária | |||||||||
34 a 59 anos | 165 | 76 | 46,1 | 41 | 24,8 | 39 | 23,6 | 33 | 20,0 |
60 anos ou mais | 59 | 24 | 40,7 | 18 | 30,5 | 11 | 18,6 | 15 | 25,4 |
Valor p | 0,47 | 0,40 | 0,43 | 0,38 | |||||
Anos de estudo | |||||||||
Até 7 | 166 | 76 | 47,1 | 39 | 23,5 | 41 | 24,7 | 36 | 21,7 |
8 ou mais | 56 | 23 | 43,4 | 20 | 35,7 | 8 | 14,3 | 12 | 21,4 |
Ignorado | 2 | 1 | – | – | – | 1 | – | – | – |
Valor p | 0,54 | 0,07 | 0,10 | 0,97 | |||||
Vivendo com o parceiro | |||||||||
Não | 69 | 29 | 42,0 | 20 | 29,0 | 15 | 21,7 | 16 | 23,2 |
Sim | 155 | 71 | 45,8 | 39 | 25,2 | 35 | 22,6 | 32 | 20,6 |
Valor p | 0,60 | 0,55 | 0,89 | 0,67 |
*
Excluídos os valores ignorados
Tabela 3
Relação entre as causas referidas de não realização do exame preventivo para câncer do colo do útero e as características das 224 mulheres entrevistadas da Estratégia Saúde da Família dos municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu
Nove anos após a participação em um estudo transversal, o cumprimento às recomendações do Ministério da Saúde sobre rastreamento para o câncer do colo do útero foi registrado em 70,7% das mulheres atendidas pela ESF em 13 comunidades carentes da Baixada Fluminense. Percentual semelhante foi descrito entre usuárias de uma unidade básica de saúde no Ceará11: em 72,8% das mulheres entrevistadas o último exame foi realizado em intervalo não superior a 3 anos, o que foi classificado pelos autores como prática adequada. No Brasil, em 2011, o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (VIGITEL) mostrou um percentual que variou entre 67,9 (Maceió) e 90,4 (São Paulo) de mulheres de 25 a 59 anos de idade residentes nas capitais que informaram ter realizado exame de citologia oncótica para câncer de colo do útero nos últimos 3 anos12. Embora realizado em área periférica à capital do estado do Rio de Janeiro e exclusivamente em usuárias da ESF, os valores de adesão obtidos nos municípios de Duque de Caxias e de Nova Iguaçu estão compreendidos na faixa de valores observados recentemente nas capitais do restante do país e ligeiramente abaixo dos valores observados na capital do estado do Rio de Janeiro (77,8%). Já em inquérito realizado na ESF na região de Comendador Soares, município de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, em 2009, apenas 5% das mulheres de 20 a 59 anos não tinham realizado exame preventivo nos últimos 3 anos13, sinalizando a importância da Saúde da Família na prevenção dessa enfermidade. No presente estudo, no entanto, a população avaliada compreendia um grupo de mulheres que nove anos atrás estava com exames atrasados, das quais quase 30% ainda mantiveram-se nesta condição.
No que diz respeito ao intervalo de tempo entre os 2 últimos exames, o tempo foi de 3 anos ou menos em 86,9% dos casos. Resultados semelhantes foram descritos em estudo envolvendo usuárias do SUS de Amparo, município do interior do Estado de São Paulo, entre 2001 e 2007, o qual mostrou que o percentual de mulheres cujo intervalo de tempo desde o último controle foi de três anos ou mais variou entre 5,0 e 7,1%; tempo menor que três anos foi observado entre 84,1 e 89,2%, conforme o ano investigado14. De maneira semelhante, inquérito domiciliar representativo da população feminina de 10 a 49 anos residente no município de São Luís, realizado em 1998, mostrou que o tempo entre a realização dos exames foi menor que três anos em 82,0% dos casos; para somente 3,7% das mulheres esse tempo foi menor que três anos15. Historicamente, tem sido observada no país tendência para periodicidade do exame preventivo do câncer do colo do útero inferior à recomendada pelos órgãos oficiais. Em estudo pioneiro16, realizado nos anos 90, somente 1% de uma amostra representativa de mulheres das cinco macrorregiões do país referia que o teste de Papanicolaou deveria ser de três em três anos; 35% das entrevistadas julgavam, equivocadamente, que o exame deveria ser anual. É possível que mesmo entre profissionais de saúde o intervalo entre os exames seja entendido de forma equivocada, o que influenciaria as mulheres a repetirem o exame desnecessariamente.
Em relação às razões apresentadas no atual estudo para não adesão ao exame preventivo para câncer do colo do útero, observou-se que as categorias mais importantes foram a não percepção de risco (considerar-se não suscetível ao câncer do colo do útero), seguida pelas barreiras sociais (aspectos impeditivos para a realização do exame). No primeiro grupo, destacam-se não achar que o exame era necessário, descuido e comodidade. Já no segundo grupo, o principal impeditivo foi a indisponibilidade em razão do trabalho. Entre as barreiras institucionais, a dificuldade para marcar exame foi o principal entrave. Também em estudo realizado em uma Unidade de Saúde da Família de Porto Alegre, Rio Grande do Sul17, o descuido consigo mesma e a dificuldade para marcar a consulta em decorrência do horário de trabalho foram relatados como os principais obstáculos. Já em outro estudo18 envolvendo mulheres atendidas pela ESF de Caio Prado, município de Itapiúna, Ceará, em 2008, as dificuldades relatadas pelas entrevistadas para a realização do Papanicolaou foram decorrentes de falta de motivação e de interesse em realizar o exame, muitas vezes pela sobrecarga do cotidiano, dificuldades na relação entre profissional e usuária, precarização histórica da educação em saúde e barreiras organizacionais existentes no serviço de saúde. Em inquérito realizado no município de Campinas, São Paulo19, as mulheres também referiram achar o exame preventivo desnecessário (43,5%) e embaraçoso (28,1%).
No presente estudo, os motivos relatados por 22,0% das mulheres foram ter vergonha ou medo, não gostar e sentir desconforto e dor. Da mesma forma, estudo realizado em Nova Iguaçu13 apontou o medo relacionado ao resultado do exame e a vergonha da exposição do corpo dentre as principais dificuldades. De maneira similar, estudo realizado no Ceará20 mostrou que as mulheres percebem o exame como um processo agressivo fisicamente que as afeta emocionalmente. Vale ressaltar ainda que cerca de 20,0% das mulheres referiram ter realizado o exame na assistência suplementar em razão de maior facilidade de agendamento. As unidades de saúde deveriam facilitar a marcação de consultas, assim como ampliar o horário de atendimento, a fim de favorecer o acesso às mulheres trabalhadoras. Em contrapartida, muitas mulheres têm diversas consultas registradas em prontuário da ESF, mas sem informação sobre exame preventivo. Em estudo realizado no município de Juiz de Fora, Minas Gerais21, 26,6% das mulheres com filhos menores de dois anos, que frequentaram o pré-natal, estavam com o exame preventivo para câncer do colo do útero atrasado, sinalizando a existência de oportunidades perdidas de prevenção. A maioria dessas mulheres informou desconhecer a importância e a necessidade da realização do exame, e apenas 5,7% sinalizaram dificuldade para marcar consulta.
Não houve diferença entre os municípios em relação às barreiras institucionais. As demais dificuldades relatadas, contudo, foram proporcionalmente maiores entre as residentes de Nova Iguaçu, evidenciando que os fatores impeditivos de realização do exame preventivo devem ser sempre investigados, pois variam de acordo com a cultura e as características da clientela de cada comunidade.
Entre as limitações deste estudo, deve-se destacar que, das 1.093 mulheres elegíveis, apenas das 764 (70,0%) participaram do estudo. Entretanto, dadas as características locais (comunidades de baixo status socioeconômico) e temporais (os dados da pesquisa atual foram colhidos cerca de 9 anos após a participação das mulheres no estudo original), os autores consideram a perda aceitável e o grupo analisado representativo da coorte original, visto que as mulheres entrevistadas foram similares às elegíveis quanto à faixa etária, escolaridade, município de residência e resultado dos exames anteriores realizados. Já entre os pontos fortes, deve-se destacar que há no país carência de estudos longitudinais com casuísticas robustas como a atual e com características semelhantes, cujos resultados são necessários para contribuir para nortear as políticas nacionais, sobretudo dirigidas a populações de alto risco de desenvolvimento da doença.
Conclui-se que, apesar das inúmeras dificuldades e barreiras apontadas pelas mulheres, observou-se boa adesão ao rastreamento do câncer do colo do útero. Os resultados encontrados, no entanto, apontam para a necessidade de treinamento de profissionais para cumprimento das recomendações do Ministério da Saúde quanto ao rastreamento, o que inclui informar a regularidade de exames e facilitar o acesso ao exame preventivo. Importante ainda é o estímulo à realização de estudos para melhor compreensão das crenças e dificuldades emocionais ainda presentes entre as mulheres.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - processo nº 481293/2009-4).