DOI: S0100-7203(13)03501000008 - volume 35 - Outubro 2013
Gustavo Fernando Sutter Latorre, Priscila Aparecida Bilck, Fernando Luiz Cardoso, Fabiana Flores Sperandio
Introdução
A disfunção sexual (DS) é um problema de saúde pública muito prevalente que aflige quase metade das mulheres em todo o mundo, e para o qual grande esforço científico vem sendo dedicado1,2. É possível estudar a DS por meio de questionários, hoje largamente utilizados na investigação de disfunções pélvicas diversas3,4, inclusive dos comprometimentos sexuais5,6. Atualmente, o questionário mais utilizado no estudo da DS feminina é o Female Sexual Function Index (FSFI)7, para o qual foram desenvolvidos escores de corte capazes de identificar o problema em cada um dos seis domínios do instrumento8.
Tradicionalmente, os questionários são aplicados face a face e em papel, mas o advento da Internet (1969) permitiu uma nova forma de administrar os relacionamentos interpessoais, em menor tempo a custo reduzido9,10, o que rapidamente foi aplicado à pesquisa científica. De fato, a utilização de questionários no modo on-line é hoje uma realidade11-15 também quando se trata de disfunção sexual feminina16,17. Foi descrito que, para questões de foro íntimo, as respostas são mais sinceras nos questionários via Internet quando comparadas ao modelo tradicional18,19. Ocultas pelo ambiente virtual, usuárias da Internet podem driblar constrangimentos do mundo real20 e, no conforto do anonimato, responder as perguntas com maior franqueza10,18, vantagens estas que podem aperfeiçoar a pesquisa de temas polêmicos como a sexualidade.
Apesar de não haver garantia de que a população virtual corresponda exatamente àquela do mundo real20, estudos20-23 têm demonstrado que há certa equivalência de características, como gênero, etnia e aspectos sociais, quando são comparados esses dois tipos de população. No entanto, novas situações de letramento cultural, por exemplo, a leitura de documentos digitais, interferem na percepção e assimilação do conteúdo10. Entende-se que, apesar de um questionário qualquer estar solidamente validado para a aplicação física tradicional, não é certo que sua validade seja idêntica quando aplicado no ambiente virtual.
Embora inúmeros estudos tenham comparado versões tradicionais e on-line de questionários distintos15,24-28, não há estudos que verifiquem especificamente a confiabilidade do FSFI quando aplicado de modo on-line. A conclusão a priori de que outras validações se estenderiam também para o FSFI é enganosa porque as questões envolvidas são de cunho íntimo: o constrangimento pode diferenciar as respostas de questões idênticas respondidas no papel quando comparadas às respostas por detrás de um computador.
Diante da insegurança na utilização de versões on-line do FSFI e considerando a interferência de assimilação provocada pela digitalização da leitura, o presente estudo objetivou verificar a validade e a confiabilidade de uma versão on-line do FSFI quando comparada a sua versão tradicional no papel.
Métodos
Foi realizado um estudo descritivo, parte transversal e parte longitudinal, com amostra conveniente, que testou a hipótese nula de que os escores obtidos na versão brasileira29 do FSFI7, quando aplicada tanto no papel quanto via Internet, são equivalentes. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Científica da Universidade do Estado de Santa Catarina (ref. 204/2011).
A região da Grande Florianópolis conta com cinco universidades que oferecem o curso de Fisioterapia: Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC (capital), Universidade do Sul de Santa Catarina (Palhoça), Uniban-Anhanguera (São José), Instituto de Ensino Superior da Grande Florianópolis IES-FASC (São José) e Faculdade Estácio de Sá (São José). Destas, apenas a Faculdade Estácio de Sá não participou do estudo por motivos burocráticos.
Após esclarecimentos sobre o estudo, estudantes de Fisioterapia dessas universidades foram convidadas a participar dele. As voluntárias assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, preenchendo uma nominata na qual constavam primeiro nome, e-mail e telefone. Um total de 273 acadêmicas aceitou participar do estudo, e 28 delas desistiram durante a segunda coleta.
Uma lista de números randômicos, em blocos de três, foi aplicada à nominata, dividindo-as em dois grupos. O G-pp/ol (n=126) respondeu ao FSFI aliado a questões demográficas no papel e, após 15 dias25, ao mesmo questionário disponibilizado em uma versão on-line. O grupo G-ol/pp (n=147) fez o inverso. As características sociodemográficas das voluntárias dos dois grupos estão descritas na Tabela 1.
A versão on-line apresentava um algoritmo que, ao final do preenchimento, fornecia o escore total do FSFI para cada voluntária imediatamente ao final do preenchimento. Uma palestra sobre DS feminina e seus tratamentos foi oferecida para as voluntárias ao final do estudo.
Os dados no papel foram transcritos para o software estatístico SPSS v.20, licenciado para a Universidade do Estado de Santa Catarina. Os dados on-line foram importados para o mesmo software, sem a necessidade de transcrição. Diferenças demográficas entre os dois grupos foram verificadas pelo teste t de Student ou pelo teste exato de Fischer, assumindo-se um intervalo de confiança de 95% e considerando-se significativas as diferenças maiores que p=0,05.
Para a concordância das respostas entre a primeira e a segunda coletas do G-pp/ol, foi empregado o teste t não pareado, uma vez que não houve paridade entre os dados em razão de desistências na segunda coleta e da garantia de não identificação das voluntárias. O coeficiente de Pearson foi utilizado para verificar a associação das questões entre as coletas (valores de associação de Pearson: 1=perfeita; >0,75=forte; >0,5=moderada; <0,5=fraca; 0=inexistente). Estratégia idêntica foi adotada para os testes de concordância e associação das questões entre as coletas do G-ol/pp.
Para verificação da concordância intergrupos, tanto das respostas das questões quanto dos valores dos domínios do G-pp/ol, papel/on-line, e do G-ol/pp, foi empregado o teste t. Para a associação entre questões e domínios, foi empregado o coeficiente de Pearson.
Resultados
Para investigação da confiabilidade do teste-reteste entre os grupos, as variáveis sociodemográficas foram comparadas para averiguação dos níveis de diferença entre G-pp/ol e G-ol/pp. Não houve diferença significativa entre os grupos para nenhuma das variáveis sociodemográficas (Tabela 1).
A concordância e a correlação transversal dos domínios e escores totais do FSFI entre os grupos estão demonstradas na Tabela 2. Durante a primeira coleta, houve diferença significativa entre os grupos nas respostas das questões 5 e 6 (p=0,02), do domínio excitação, e da questão 15 (p=0,03), do domínio satisfação. Também apresentaram diferença (p=0,03) os escores dos domínios orgasmo e satisfação. Todas as outras questões e domínios apresentaram correlação fraca (r<0,5).
No segundo ciclo de coleta, 15 dias após o primeiro, os grupos apresentaram diferença significativa nas respostas da questão 1 (p=0,01), do domínio desejo, e das questões 11 (p=0,04), 12 e 13 (p = 0,03), que em conjunto formam o domínio orgasmo. Como esperado, o domínio orgasmo também apresentou diferença significativa entre os dois grupos (p=0,01). Houve correlação fraca entre as outras questões e domínios.
As análises intragrupo revelaram que tanto o G-pp/ol quanto o G-ol/pp apresentaram melhor consistência entre as respostas no primeiro e no segundo dia de coleta, embora as correlações continuassem fracas. Todas as questões, os domínios e os escores totais estiveram associados e correlacionados fracamente (r<0,5), conforme exposto na Tabela 3.
Discussão
O FSFI é o questionário para DS feminina mais utilizado mundialmente e apresenta um escore de corte capaz de identificar as portadoras de DS em uma determinada amostra. O instrumento foi validado culturalmente para uso no Brasil. No caso de utilização do FSFI on-line, por se tratar de um questionário validado, restaria a dúvida quanto à confiabilidade do ambiente virtual.
A comparação das versões no papel e on-line do instrumento aplicado a dois grupos distintos de mulheres sociodemograficamente equivalentes revelou que as respostas de 15 das 19 questões, 3 dos 6 domínios, e o escore total estiveram associados, mas a correlação entre eles foi apenas fraca. Esses resultados foram mantidos mesmo no reteste, após 15 dias. Já a análise das respostas intragrupos revelou associação e correlação, embora fraca, em todas as questões e domínios mesmo no reteste após 15 dias.
Alguns vieses podem ter alterado especialmente os valores de correlação, por exemplo, o fato de que 28 voluntárias desistiram antes da segunda coleta, especialmente para o G-pp/ol, o que prejudicou a análise intragrupos. Os dados dessas mulheres não puderam ser excluídos da análise porque não houve identificação de formulários e/ou indivíduos, conforme regula a Lei nº 196/9630.
Além do não pareamento nas amostras, outra possível fonte de viés correlacional pode ter sido o intervalo de 15 dias entre as coletas. Ao responder o FSFI, a mulher é instruída a fazê-lo com base na sua vida sexual nas últimas 4 semanas. Um intervalo de 15 dias (2 semanas) entre 2 coletas corresponde à metade do período utilizado nas respostas, tempo suficiente para que haja alteração na vida sexual31. Realmente, já se observou o fato de que o intervalo de 4 semanas seria muito pouco para a quantificação da função sexual. Para esse problema, os autores propõem o modelo life-long do FSFI, para o qual toda a vida sexual da mulher, desde a menarca, deve ser considerada31.
A função sexual é tema singular no tocante à rapidez na mudança das variáveis envolvidas. Basta um dia para uma voluntária mudar totalmente sua função sexual de inativa para ativa, por exemplo, pelo retorno de um parceiro temporariamente ausente. O próprio ciclo leva a variações importantes durante um mês, o que pode influenciar as respostas colhidas em intervalos relativamente significativos, como os 15 dias para o questionário em questão.
Além da perda amostral e impossibilidade de comparação das respostas do mesmo sujeito, outra limitação do presente estudo foi a ausência de cálculo amostral.
Mesmo diante das diversas fontes de variação nas respostas, houve associação, ainda que fraca, entre as questões e os domínios do questionário aplicado no papel e on-line. Considerando esse dado e os vieses supracitados, a análise intergrupos possibilita a dedução de que, no geral, o tipo de coleta para o FSFI, se on-line ou no papel, influencia pouco as respostas. As análises intragrupos confirmam essa inferência, uma vez que as correlações para um mesmo grupo foram ligeiramente melhores.
Resultados similares foram descritos em outros estudos que comparam as respostas de versões em papel e on-line do PISQ-12 com intervalo de 15 dias entre as coletas, tendo os autores concluído que as versões no papel e on-line do questionário podem ser intercambiadas e/ou substituídas sem prejuízo para análise. Os autores descreveram correlações de Pearson mais significativas nas 50 mulheres estudadas, mas o PISQ-12 trata de prolapsos e incontinência urinária, situações menos sujeitas a oscilações do que a função sexual, levando em conta o intervalo de 15 dias.
A existência de correlação e concordância nas questões, por meio das coletas, para ambos os grupos, sugere que a forma do questionário, se on-line ou no papel, altera ligeiramente as intenções de resposta dos indivíduos, mas essa alteração não foi suficientemente significativa para a conclusão de que não houve associação entre as respostas. A versão on-line do questionário é, portanto, aceitável, o que está de acordo com estudos que compararam versões on-line ao método tradicional, em papel, de questionários distintos, embora sob diferentes metodologias, populações e contextos11,27,28,32.
A pesquisa por meio de questionários on-line é ágil e parcimoniosa10,18. Do ponto de vista econômico, reduz gastos com fotocópias, correio, translado etc., além de permitir a coleta de dados ad eternum e o processamento e a apresentação instantâneos dos resultados. Em um único dia, é possível conceber o estudo, recrutar participantes, realizar testes-piloto, processar e apresentar dados parciais9,10.
Hoje, o acesso ao ambiente virtual está simplificado para os pesquisadores interessados em utilizar essa tecnologia. Com o avanço e a popularização da construção de websites, o desenvolvimento de soluções mistas, que atrelam páginas de Internet a bancos de dados, é relativamente simples: sobram profissionais para este fim, viabilizando a pesquisa em diferentes populações. A confiabilidade dos questionários on-line, quando comparados às versões validadas no papel, alicerça a utilização dessa vantajosa plataforma que, por esse motivo, pode vir a se tornar padrão na coleta de dados em saúde.
A confiabilidade da versão on-line FSFI, quando comparada à versão validada do mesmo instrumento em papel e caneta, foi aceitável. Apesar de alguma perda na confiabilidade, as facilidades da realização de estudos a partir de questionários on-line, desde que aplicados com critério, podem justificar a opção por essa modalidade, especialmente para estudos envolvendo questões de foro íntimo ou pessoal, nas quais a impessoalidade do ambiente virtual pode fazer a diferença.
Recebido: 31/07/2013
Aceito com modificações: 10/10/2013
Conflito de interesses: não há.
Trabalho realizado no Grupo de Estudos em Saúde da Mulher e no Laboratório de Gênero, Sexualidade e Corporeidade do Centro de Ciências da Saúde e do Desporto da Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC Florianópolis (SC), Brasil.