DOI: S0100-7203(13)03501000004 - volume 35 - Outubro 2013
Gisele Ferreira Paris, Sandra Marisa Pelloso, Priscilla Martha Martins
Introdução
Entre os casos de óbitos maternos ocorridos no estado do Paraná entre 1989 e 2008, mais de 70% havia recebido assistência pré-natal. Também nesse período duplicaram os óbitos maternos ocorridos no setor privado, demonstrando a necessidade de medidas para qualificação da assistência pré-natal em todo o sistema de saúde1. Quanto à mortalidade neonatal, o número insuficiente de consultas no pré-natal foi significativo dentre os fatores de risco2.
A falta ou assistência inadequada durante o pré-natal podem trazer graves consequências para a saúde da mãe e do feto. Gestantes que frequentaram os serviços de atenção pré-natal apresentaram número menor de casos de complicações e os fetos, adequado crescimento intrauterino3, demonstrando a relação entre assistência pré-natal e o bem-estar do recém-nascido4. Mesmo quando o nascimento ocorre no hospital4, a inadequação do cuidado pré-natal acarreta um maior risco para resultados adversos da gravidez5.
No ano 2000, o Ministério da Saúde, com o objetivo de reduzir as altas taxas de morbimortalidade materna e perinatal, instituiu o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN), tendo por finalidade assegurar a qualidade do acompanhamento pré-natal6, com o compromisso de melhorar a saúde das gestantes e reduzir a mortalidade infantil até o ano de 2015 para alcance dos objetivos do milênio propostos pela Organização das Nações Unidas.
Nos últimos anos, apesar dos dados disponíveis apontarem para um aumento considerável no número de consultas de pré-natal por mulheres, a qualidade da assistência ainda continua comprometida, conforme se verifica em auditoria nos cartões pré-natal7. Na prática clínica, os registros dos atendimentos nos cartões de acompanhamento pré-natal permitem verificar se as necessidades das gestantes estão sendo atendidas nos serviços de saúde, pois refletem diretamente a qualidade da atenção prestada e explicam os indicadores de mortalidade materna e infantil8, pressupondo-se que, se não foi registrado, o procedimento não foi realizado.
Aproximando-se do ano para atingir os objetivos do milênio, após mais de uma década de criação da PHPN, espera-se que, nos municípios, estejam consolidadas as medidas efetivas para humanização no pré-natal e, quando utilizadas, sejam direcionadas em ações concretas para redução da mortalidade materna e neonatal. Portanto, pesquisar a qualidade da assistência ao pré-natal é de suma importância, representando um passo necessário para o conhecimento de suas limitações e deficiências de atendimento aos problemas de saúde no espaço onde é produzida. O objetivo deste estudo foi analisar a assistência pré-natal no atendimento público e privado segundo registros nos cartões das gestantes.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal, retrospectivo, analítico a partir da auditoria dos cartões das gestantes que tiveram partos em um hospital de referência para atendimento de baixo risco no município de Ponta Grossa, região dos Campos Gerais, estado do Paraná, no primeiro semestre de 2011. Foram excluídas as pacientes que não possuíam o cartão da gestante da assistência pré-natal realizada no município de Ponta Grossa.
Os dados foram coletados a partir das informações registradas nos cartões das gestantes, baseando-se nas recomendações do PHPN na atenção pré-natal com qualidade, envolvendo: número total de consultas de pré-natal conforme cada trimestre; realização de exames laboratoriais, de imagem e obstétricos e controle das vacinas, agrupadas em serviço público, nos casos de atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e privado, nos casos de convênios e particulares.
Para os exames laboratoriais, ultrassonografia obstétrica, vacina contra influenza e estatura, que devem ser realizados uma única vez, atribuiu-se "sim" para os registros preenchidos e "não" para os registros não preenchidos. Para os exames laboratoriais e administração de vacinas que conforme o esquema vacinal devem ser realizados mais de uma vez e para os exames obstétricos, que devem ser realizados em todas as consultas, foi atribuído "sim" para todos os registros preenchidos; "não", quando nenhum registro foi preenchido, e "às vezes", quando os registros foram preenchidos algumas vezes.
Atribuiu-se, para batimento cardiofetal, movimentação fetal e apresentação fetal, "sim", "não" e "às vezes" a partir da 20ª semana de gestação, período em que podem ser detectados clinicamente. O exame urina tipo I, foi investigado somente uma vez e não, conforme preconizado pelo PHPN, uma coleta na primeira consulta e outra coleta próximo a 30ª semana de gestação.
Para verificar a associação do não registro dos cartões da gestante quanto à assistência pré-natal no atendimento público e privado, foi utilizado o teste qui-quadrado de Yates corrigido ou teste exato de Fisher, conforme frequência apresentada, com nível de significância fixado em p 0,05 no programa Statistical Analysis System (SAS)9.
A qualidade da assistência pré-natal foi avaliada com base no percentual dos não registros de uma variável pelo total da amostra10 e foi classificada em: excelente, quando o percentual de não registro foi inferior a 5%; bom, quando o percentual de não registro foi de 5 a 9%; regular, quando o percentual de não registro foi de 10 a 19%; ruim, quando o percentual de não registro foi de 20 a 49%, e muito ruim, quando o percentual de não registro foi igual ou superior a 50%.
O estudo seguiu as normas de pesquisa envolvendo seres humanos, conforme Resolução 196/96, e foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Ponta Grossa sob o parecer nº 129/2010.
Resultados
Foram analisados 500 cartões de pré-natal da gestante de um total de 2.487 nascimentos vivos, correspondendo a 20% dos nascimentos ocorridos no hospital de referência ao baixo risco do município de Ponta Grossa (PR). Destes, 376 (75%) tiveram atendimento pré-natal público e 124 (25%) atendimento pré-natal privado. Foi encontrada uma variedade de modelos de cartão da gestante, inclusive entre pacientes usuárias do SUS, porém predominou um dos modelos de cartões.
A frequência de seis ou mais consultas de pré-natal foi significativa e de maior proporção no atendimento privado, com 91,9%. Em relação ao número de consultas adequadas por trimestre, predominou no primeiro e terceiro trimestre para o serviço público, com respectivamente 65,4 e 34,6%, e no segundo trimestre para o serviço privado, com 72,6% (Tabela 1).
Quanto aos exames laboratoriais, a frequência do não registro e a diferença significativa do não registro (p≤0,05) no serviço público em relação ao privado, respectivamente, para sorologia: de hepatite B (79,3 e 48,4%), hemoglobina e hematócrito (35,6 e 21,8%), sorologia anti-HIV (29,3 e 12,9%) e urina (23,7 e 10,5%). Os exames registrados às vezes, ou seja, com apenas um registro quando deveriam ter um registro na primeira consulta e outro próximo à 30ª semana de gestação, foram: glicemia em jejum, sorologia para sífilis e anti-HIV, com predominância no privado devido ao melhor registro nas duas coletas necessárias (Tabela 2).
Em relação às vacinas, observou-se na maioria a ausência de qualquer registro; e "às vezes" para vacina antitetânica e anti-hepatite B no serviço público, ou seja, foi iniciado o registro no cartão da gestante, mas não foi feito o registro do esquema completo (Tabela 2). Quanto à realização do exame obstétrico, a maior proporção de não registro, respectivamente, para o público e privado foram observados para: movimentação fetal (84,3 e 58,9%); estatura (60,4 e 88%); verificação de edema (60,9 e 54,8%); apresentação fetal (52,4 e 61,3%) e batimentos cardiofetais (28,5 e 21,8%) (Tabela 3).
A auditoria dos cartões das gestantes permitiu examinar a qualidade da assistência pré-natal e confirmou diferenças da assistência segundo o local de atendimento, mostrando qualidade excelente e boa no serviço privado e regular no público para ultrassonografia e tipo sanguíneo/fator Rh; qualidade regular no privado e ruim no público para exames de urina e verificação do peso e, para os demais exames laboratoriais, exames obstétricos e esquema vacinal, qualidade ruim ou muito ruim nos dois sistemas.
Discussão
O presente estudo apresentou um retrato do atendimento pré-natal para gestantes de risco habitual no município de Ponta Grossa do ano 2011. Foram observados, no serviço privado: maior frequência das consultas, exames laboratoriais e obstétricos, vacinas e ultrassonografia. O atendimento pré-natal gratuito normalmente é disponível nas Unidades Básicas de Saúde, com remuneração pelo sistema público de saúde, ou em consultórios privados, quando as consultas são pagas diretamente pela cliente ou indiretamente, através de convênios médicos ou sistema de seguro saúde11.
Estima-se que a cobertura do serviço privado corresponda a 35% da população brasileira12 envolvendo todas as necessidades de atendimento. Observamos uma procura de 25% pelo atendimento pré-natal no serviço privado neste estudo, enquanto em outros estudos esta porcentagem variou de 16 até 39%13,14, o que demonstra as diferenças dos atendimentos nas diversas regiões12. Cabe ressaltar o acesso da população brasileira aos serviços públicos, beneficiando-se os que também têm planos de saúde com as ações de prevenção e de vigilância sanitária no controle de sangue e hemoderivados, registro de medicamentos, controle de vetores ou em eventual atendimento, quando este é negado pelo plano de saúde.
O número de consultas inferior no serviço público, apesar de contraditório pelo atendimento gratuito e preconizado no PHPN, foi compatível com a literatura14,15 e demonstrou a realidade das mulheres que utilizam o serviço público de ter um menor poder aquisitivo15 e maior dificuldade para acesso físico aos serviços de saúde tanto por residirem em locais afastados como por falta de orientação sobre a importância do acompanhamento pré-natal11.
Com os exames laboratoriais previstos na rotina de consulta pré-natal, podem-se identificar precocemente morbidades e o tratamento medicamentoso eficaz visando à cura ou controle da doença materna, prevenção de infecção fetal pela transmissão vertical e possíveis óbitos maternos, fetais e infantis. O resultado dos exames laboratoriais corresponde a um monitoramento para a classificação do risco pré-natal.
As gestantes que frequentam o pré-natal público são submetidas com menor frequência a exames de urina do que o privado, conforme preconizado pelo PHPN15 e, mesmo considerando-se como adequada pelo menos uma coleta para o exame de urina, ainda faltaria efetividade no rastreamento da infecção urinária durante a gestação. Em um censo de nascimentos, para 23,6% das mães não foram feitos os dois exames de urina e 2,9% das mães haviam sido internadas para tratamento da infecção do trato urinário no período gestacional15.
A sorologia toxoplasmose tem especial relevância no período gestacional devido à associação com possíveis malformações6. É necessário manter a solicitação do exame de investigação para toxoplasmose, devido a contato comum com toxoplasmose entre as gestantes atendidas pelo serviço público de saúde do Paraná; e já se observou, na região oeste deste estado, 40% de gestantes suscetíveis à infecção16.
As duas coletas para o rastreamento da sífilis e do HIV previstos pelo Ministério da Saúde mostraram-se, neste estudo, inferiores aos percentuais encontrados em outros serviços públicos: 26,9 e 65,5% para sífilis8,14 e de 70,1 e 74,8% para HIV8,14 e no serviço privado: 22,8% para sífilis e de 70,8% para HIV14. Considerando a frequência de 32% em três ou mais consultas no 3º trimestre, nos serviços deste estudo, e a prevalência de apenas uma coleta nessas sorologias demonstra, como outro estudo17, que o número de consultas é uma das barreiras para coleta adequada da sorologia da sífilis e HIV.
A proporção de não registro para sorologia de hepatite B, acrescido do não registro da vacinação nas gestantes demonstrou recém-nascidos mais expostos à hepatite B. Apesar das altas coberturas da vacina contra hepatite B para os menores de um ano, na medida em que a idade da população aumenta, a cobertura vacinal para hepatite B diminui na maioria dos municípios18.
Com relação à vacinação contra influenza, o dobro da frequência de vacinação contra influenza do serviço privado (16,1%) em relação ao público (8,8%) verificado neste estudo, poder estar relacionado ao período de maior disponibilidade no privado em relação ao período de campanhas no público. Entretanto, a imunização no município deste estudo foi inferior aos 95,7% das gestantes imunizadas contra influenza durante o pré-natal num serviço privado do estado de São Paulo19. Já se verificou que o conhecimento da proteção neonatal, o empenho de campanhas do governo e a recomendação médica auxiliam na cobertura da vacinação contra influenza19.
Para adequado acompanhamento pré-natal, é necessário que a equipe de saúde realize correta e uniformemente os procedimentos técnicos durante o exame clínico e obstétrico nas consultas de pré-natal, possibilitando o acompanhamento da gestação e garantindo o atendimento qualificado e humanizado6. A baixa porcentagem de exames obstétricos durante as consultas, no atendimento privado14 e, principalmente, no público3,8,14 mostram deficiência na qualidade da assistência, visto que são procedimentos indispensáveis para monitorar a saúde da gestante. A PHPN acrescenta a ultrassonografia obstétrica na rotina mínima apenas quando houver disponibilidade6. Contudo, as gestantes são mais submetidas à ultrassonografia do que a alguns exames preconizados no atendimento pré-natal neste estudo e em outra localidade20.
O cartão da gestante é um documento de uso obrigatório nos serviços de saúde e deve ser mantido sempre disponível para o adequado acompanhamento, fornecimento de informações e a assistência à gestação, assegurando a integração dos serviços de saúde e a comunicação entre os profissionais da atenção primária com os profissionais da atenção hospitalar. A multiplicidade dos modelos dos cartões da gestante pode dificultar o estabelecimento de uma rotina de preenchimento, a análise comparativa de alguns dados e até a implantação de um sistema adequado de referência e contra-referência.
As limitações deste estudo incluem a classificação da qualidade, o período da coleta de dados e o tipo de estudo. Pode ter ocorrido subestimação na qualidade de alguns exames e na vacinação contra influenza, pois alguns exames podem ter sido realizados e não registrados no cartão da gestante e o período da coleta de dados pode ter subestimado a cobertura da vacinação contra influenza, que ocorre em período sazonal. No estudo transversal, os dados indicam um único momento, não mostrando as modificações da qualidade do pré-natal ao longo do tempo.
Conclui-se que, apesar do superior número de consultas de pré-natal frequentadas no serviço particular em relação ao público, a maioria dos atendimentos apresentaram qualidade ruim ou muito ruim em relação aos critérios exigidos pelo PHPN tanto no setor público como no privado. Os elevados percentuais e as diferenças estatisticamente significativas entre a assistência pré-natal nos serviços público e privado demonstrou a necessidade de ações destinadas à melhoria da assistência prestada, principalmente no SUS. Tendo em vista que as mulheres atendidas nesse serviço apresentam maiores dificuldades no acesso, mais apresentam maiores problemas de saúde.
Certamente o aprimoramento da qualidade da assistência pré-natal envolve o adequado registro no cartão da gestante para diagnóstico do risco gestacional, a capacitação técnica continuada dos profissionais da saúde, bem como o cumprimento das normas técnicas pré-estabelecidas e o comprometimento com as necessidades da população, sendo essas as ferramentas de reversão dos resultados encontrados para uma assistência integral, equitativa e de qualidade a todas as gestantes.
Recebido: 02/09/2013
Aceito com modificações: 11/10/2013
Conflito de interesses: não há.
Trabalho realizado no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá UEM Maringá (PR), Brasil.