DOI: S0100-7203(13)03500800008 - volume 35 - Agosto 2013
Alzira Xavier Garcês, Ana Maria Barral de Martinez, Carla Vitola Gonçalves, Fabiana Nunes Germano, Maria Fernanda Martinez Barral, Valdimara Correia Vieira
Introdução
Chlamydia trachomatis é uma bactéria gram-negativa, intracelular obrigatória1, com um ciclo de desenvolvimento bifásico que ocorre com coexistência de duas formas morfológicas distintas - os corpúsculos elementares (CE), que são extracelulares, metabolicamente inativos e infecciosos, e os corpúsculos reticulares (CR), que são intracelulares, não infecciosos e metabolicamente ativos2. A infecção por C. trachomatis é a mais comum doença sexualmente transmissível (DST) causada por bactéria em todo o mundo, superando a infecção gonocócica e sífilis3, constituindo um dos maiores problemas de saúde pública.
Estima-se que ocorram cerca de 92 milhões de novos casos de infecções por ano, e a maior prevalência tem sido relatada no Sudeste da Ásia (45 milhões), seguido por África Subsaariana (15 milhões)4. O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) relatou a existência de 976.445 casos de infecções genitais causadas por C. trachomatis em 2005 nos EUA, e a prevalência em mulheres nos diversos estados variou entre 3,1 e 14,5%5. A Coordenação Nacional Brasileira de AIDS e DST relata aproximadamente 2 milhões de novos casos de infeção por C. trachomatis por ano6. No Brasil, não existem estudos documentando a situação real da infecção por C. trachomatis, estão disponíveis apenas estudos isolados em populações específicas do país5,7. A prevalência de infecção por C. trachomatis no Brasil varia de 0,608 a 20,7%9.
O maior desafio de firmar o diagnóstico dessa infecção é a verificação de que 70 a 80% das mulheres infectadas são assintomáticas10 e isso pode levar a sequelas graves, como a doença inflamatória pélvica (DIP), gravidez ectópica e a infertilidade11.
Os fatores de risco para aquisição de infecção por C. trachomatis descritos na literatura são: gestação, atividade sexual precoce, múltiplos parceiros, relações sexuais sem uso de preservativo, indivíduos portadores de outras DSTs, fatores socioeconômicos, hábito de fumar, falta de conhecimento sobre DST, ser solteiro e uso de contraceptivos hormonais10.
Em razão da escassez de trabalhos relacionados à infecção genital causada por C. trachomatis no Brasil, especialmente nos Estados do sul do País, o presente estudo teve como objetivo determinar a prevalência e os fatores de risco associados à infecção por C. trachomatis em amostras endocervicais de mulheres de uma cidade do Estado do Rio Grande do Sul.
Métodos
Estudo transversal com amostragem por conveniência realizada no período de setembro 2008 a março de 2010. O número da amostra foi calculado utilizando o programa Epi-info 6.04â. Com base na média de 300 atendimentos no período de 2 anos no ambulatório de Ginecologia e Obstetrícia Geral do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio Grande (HU-FURG) e nas referências encontradas na literatura, que variam de 0,6 a 20% para encontrar uma prevalência de 10%, com um erro de +∕- 5% e um nível de confiança de 99%, seriam necessárias 193 amostras.
Foram incluídas as pacientes com idade igual ou superior a 14 anos que durante a consulta eram submetidas à coleta do exame citopatológico do colo uterino. Foram excluídas do estudo participantes sem amostra suficiente para realizar a extração do ácido desoxirribonucleico (DNA). No total, 200 mulheres participaram do estudo e todas responderam a um questionário autoaplicável por meio do qual foram obtidas informações sociodemográficas (cor da pele, idade, escolaridade, renda, estado civil) e ginecológicas (início da vida sexual, número de parceiros sexuais, uso de preservativo e sintomas de DST).
Amostras de secreção endocervical das participantes foram coletadas, com o auxílio de uma escova Vagispec®, para posterior análise molecular. As amostras foram condicionadas em tubos criogênicos contendo 1 mL de tampão Tris-EDTA (TE) (10 mM Tris-HCl pH 8,5; 1 mM EDTA) e encaminhadas ao Laboratório de Biologia Molecular da Faculdade de Medicina (FAMED) da FURG até a etapa de extração do DNA.
O DNA genômico foi extraído das amostras utilizando o kit comercialmente adquirido: GFX Genomic Blood DNA Purification Kit, da GE Healthcare®/Amersham Biosciences®. Para visualização dos fragmentos de DNA, foi feita uma eletroforese em gel de agarose 0,8%.
A partir do DNA genômico extraído, um fragmento de 281 pares de bases (pb) da região do gene da proteína da maior membrana externa (MOMP) de C. trachomatis foi amplificado por meio de polymerase chaim reaction (PCR). Os primers utilizados para reação foram; CT05/06: 5′-GATAGCGAGCACAAAGAGAGCTAA-3′/5′-TTCACATCTGTTTGCAAAACACGGTCGAAAACAAAG-3′12. A amplificação foi realizada no termociclador MJ research®, nas seguintes condições de ciclagem: desnaturação inicial de 94oC por 5 min, seguido de 35 ciclos de 94oC por 30 s, 40oC por 30 s, 70oC por 20 s e extensão final de 72oC por 4 min. Em cada reação, foi utilizado um controle positivo de C. trachomatis previamente conhecido e um controle negativo no qual não havia presença de qualquer DNA.
Para determinação do Human papillomavirus (HPV), foi realizada uma PCR aninhada. O primeiro round, o qual amplificou um fragmento de 450 pb da região L1 do capsídeo viral, foi realizado com primers externos: MY09/11 (5′CGTCCMAARGGA WACTGATC3′) e MY11(5′GCMCAGGGWCATAAYAATGG3′)13. O segundo round amplificou um fragmento de 150 pb também da região L1 e utilizou os primers internos: GP5/6: 5′TTTGTTACTCTGGTAGATAC3′/ 5′GAAAAATAAACTGTAAATCA3′14. A PCR foi realizada no termociclador MJ research® nas seguintes condições de ciclagem: 95oC por 9 min, seguidos de 40 ciclos de 95oC por 1 min, 55oC por 1 min, 72oC por 1 min e 72oC por 5 min, para extensão final.
Em seguida, foi realizada a eletroforese em gel de agarose 2% para PCR CT 05/06, 1,0% para PCR MY09/11 e 2% para PCR GP5/6. Os fragmentos foram visualizados por fluorescência UV por um sistema de fotodocumentação EDAS Kodak após terem sido banhados em brometo de etídio (10 mg/mL), e o tamanho foi comparado com o marcador de peso molecular, Leidwing Biotc® Ladder 50 pb Puls.
A portabilidade do vírus HIV foi confirmada por revisão de prontuário em que foi verificada a existência de dois exames de imunoensaio (ELISA) positivo e um confirmatório, que no nosso serviço é realizado pelo método de imunofluorescência indireta (IFI).
Para as análises estatísticas, foram utilizados os programas do software SPSS, prevendo a realização da análise bruta, do cálculo da razão de prevalência, dos intervalos de confiança e do valor p, considerando que as diferenças foram estatisticamente significativas quando p<0,05 e utilizando o teste exato de qui-quadrado. A análise multivariada foi realizada no programa SPSS com regressão de Poisson, sendo seguida de um modelo hierarquizado de análise, no qual foram integradas as variáveis com p=0,20 na análise bruta. No primeiro nível, ingressaram as variáveis idade, renda familiar e escolaridade. No segundo, entraram as variáveis que representavam os fatores de risco para infecção por C. trachomatis, como idade da primeira relação sexual e portabilidade do HIV.
A presente pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa na Área da Saúde (CEPAS-FURG), protocolo nº 23116.003711/2010-14, parecer nº 121/2010.
Resultados
A prevalência de C. trachomatis foi de 11% (22 pacientes) do total de mulheres que participaram do estudo. Entre as 200 participantes, 55 (27,5%) foram positivas para o HPV. A idade das participantes variou de 15 a 71 anos, e a média de idade foi de 33 anos; 63,5% eram brancas, 73,6% tiveram nove ou mais anos de estudo e 40,7% viviam com renda familiar igual ou superior a três salários mínimos mensais.
Do total, 41,3% haviam tido a primeira relação sexual com idade entre 16 e 18 anos, 80,4% tiveram cinco ou menos parceiros sexuais na vida, 31,9 usavam camisinha como método contraceptivo, 13,3% estavam infectadas por alguma DST e 9,2% estavam infectadas pelo HIV.
Entre as variáveis sociodemográficas associadas à presença de C. trachomatis com diferença significativa foram: pacientes com 8 ou menos anos de estudo apresentaram maior prevalência da infeção por C. trachomatis (p<0,001); pacientes que viviam com até 1 salário mínimo também apresentaram maior prevalência da infeção por C. trachomatis (p=0,005); aquelas que tiveram início vida sexual com 15 anos ou menos aparentaram maior prevalência de C. trachomatis (p=0,04). Houve correlação estatisticamente significativa entre a portabilidade do HIV e a prevalência de C. trachomatis (p<0,001); os dados podem ser encontrados na Tabela 1.
A análise multivariada mostrou que o maior risco de infeção por C. trachomatis está associado a pacientes com escolaridade <8 anos de estudo (IC95% 0,4 - 24,6; RP 3,1; p=0,02) e aquelas infectadas pelo HIV (IC95% 3,4 - 57,5; RP 14,1; p<0,001) (Tabela 2).
Discussão
No presente estudo, a prevalência de C. trachomatis foi de 11%. Estudo realizado feito no serviço de saúde pública na Bahia, utilizando o teste de amplificação do DNA na urina por meio da técnica de Ligase chain reaction (LCR) também encontrou prevalência de 11,4%15,16. No Brasil, encontramos taxas de infecção por C. trachomatis que variam de 0,6% em amostra de urina de mulheres que usam serviço de saúde comunitária de Porto Alegre por meio de PCR8, 6,1% em amostra cervical de mulheres que usam serviço privado de Ginecologia em Fortaleza usando captura híbrida II17 a 9,4% em amostra cervicovaginal de gestantes de seis cidades brasileiras usando captura híbrida7. Frequências mais elevadas que as observadas: 12,2% em amostra de urina de adolescente de Vitória mediante a técnica LCR18; 28,7% em amostra cervical de mulheres usando PCR em Manaus9. No presente trabalho, pode-se observar que a prevalência de C. trachomatis foi semelhante à encontrada em vários outros estudos realizados no Brasil apesar das diversas técnicas para detecção em amostras biológicas diferentes.
Os principais fatores de risco para infecção por C. trachomatis foram: idade igual ou inferior a 24 anos, renda familiar, idade da primeira relação sexual, escolaridade e portabilidade do vírus HIV. Na literatura, os maiores casos de infecção por C. trachomatis são encontrados em países em desenvolvimento, afetando pessoas mais pobres7,8. Este trabalho foi realizado em hospital público, e a maioria da população que usa esse sistema de saúde é economicamente desfavorecida. Assim, a renda familiar de até um salário mínimo e a baixa escolaridade foram fatores de risco para infecção por C. trachomatis. Para esclarecer o papel da renda familiar e da escolaridade sobre a prevalência de C. trachomatis, seria importante a realização de um estudo em população da mesma região que usa somente o sistema de saúde privado.
Início da vida sexual com 15 anos ou menos foi um preditor para infecção por C. trachomatis. Relato de início precoce da vida sexual e alta prevalência de C. trachomatis também já foram relatados na literatura10,19, porém mais estudos são necessários para explicar quais os mecanismos fisiológicos envolvidos na sinalização de infecção por C. trachomatis em pacientes que têm início da vida sexual precoce.
Na análise multivariada, as variáveis que persistiram associadas significativamente à infecção por C. trachomatis foram a escolaridade e a portabilidade do HIV. As pacientes com oito ou menos anos de estudo tiveram mais chance de infecção por C. trachomatis quando comparadas com aquelas que tiveram mais anos de estudo. Para reverter essa situação, o acesso à educação e à informação assumiria um papel fundamental na prevenção e na promoção à saúde de forma geral, fundamental em um país em crescimento como o Brasil.
Pacientes infectados por HIV apresentaram maior prevalência de C. trachomatis. Esse resultado está em conformidade com outros trabalhos que relatam uma correlação significativa entre a infecção pelo HIV e a prevalência de C. trachomatis20,21. A epidemiologia combinada dessas infecções pode ser parcial em razão de as DSTs, incluindo C. trachomatis e HIV, terem fatores de risco sexual e comportamental semelhantes. As possíveis relações entre a infecção por C. trachomatis e o HIV seriam que a patogenia intracelular invasiva da C. trachomatis pode causar danos substanciais para a camada epitelial genital que podem facilitar a infecção por HIV. Além disso, as alterações imunológicas, decorrentes da infecção por HIV, podem favorecer infecção por C. trachomatis21. É importante salientar que o diagnóstico precoce de DST como a C. trachomatis evita o risco de transmissão de outras DST e sequelas graves. Seria de extrema importância a implementação do diagnóstico de C. trachomatis como parte dos testes de rotina em todos os serviços de Ginecologia e Obstetrícia.
Apesar de a infecção por HPV não ter se mostrado significativa como fator de risco para aquisição de C. trachomatis nesta pesquisa, é importante salientar sua alta prevalência e sua importância como agente etiológico para o desenvolvimento do câncer cervical22.
Uma limitação deste estudo é o emprego de questionário autoaplicável, no qual informações importantes podem ser omitidas pelas participantes pelo receio de quebra de sigilo, podendo interferir diretamente nos resultados.
Em conclusão, a prevalência de C. trachomatis neste estudo foi semelhante a outros estudos feitos no Brasil, e fatores sociodemográficos e a presença do HIV são fatores de risco associados à infecção por C. trachomatis. Diante desses dados, são necessários mais estudos para se conhecer melhor a real situação em relação à prevalência de infectados por C. trachomatis e, futuramente, o desenvolvimento de pesquisas visando à maior informação à população em geral dos riscos, da forma de transmissão e principalmente de medidas de prevenção dessa DST, bem como a pesquisa para o desenvolvimento de vacinas eficazes contra C. trachomatis.
Agradecimentos
À Universidade Federal do Rio Grande pela oportunidade do desenvolvimento e financiamento desta pesquisa, ao Laboratório de Biologia Molecular da Faculdade de Medicina e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) pelo apoio financeiro.
Recebido: 16/07/2013
Aceito com modificações: 01/08/2013
Conflito de interesses: não há.
Trabalho realizado na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande - FURG - Rio Grande (RS), Brasil.