DOI: S0100-7203(13)03500600003 - volume 35 - Junho 2013
Marta Francis Benevides Rehme, Ana Gabriela Pontes, Tamara Beres Lederer Goldberg, José Eduardo Corrente, Anaglória Pontes
Introdução
A síndrome dos ovários policísticos (SOP) é uma desordem endócrina frequente, com prevalência estimada entre 5 a 10% nas mulheres em idade fértil1. No entanto, a prevalência da SOP na adolescência não é bem estabelecida porque os sintomas e sinais que definem a síndrome frequentemente se sobrepõem às mudanças fisiológicas do eixo reprodutivo que ocorrem habitualmente neste período2. Durante a adolescência podemos encontrar uma anovulação transitória na pós-menarca associada com ovários multicisticos que podem não ser facilmente distinguíveis da anovulação crônica e a morfologia ovariana policística relacionada à SOP3.
Enquanto nas mulheres adultas os critérios diagnósticos permitem variações nos fenótipos da SOP, nas adolescentes muitos achados podem ser transitórios ou estarem em involução. Sugere-se para o diagnóstico da SOP na adolescência, que sejam valorizados os três critérios de Rotterdam4, e que no mínimo haja a presença de hiperandrogenismo e anovulação após dois anos da menarca5.
O hiperandrogenismo é considerado o marcador mais consistente da SOP na adolescência, uma vez que os ciclos irregulares são muito comuns nos primeiros anos pós-menarca. Os ovários policísticos ao ultrassom são encontrados em 40% das adolescentes com irregularidades menstruais3.
Deste modo, o diagnóstico da SOP na adolescência apresenta critérios mais restritos, nos quais a irregularidade menstrual caracterizada pela oligomenorreia e/ou amenorreia deve estar presente no mínimo por dois anos após a menarca, o diagnóstico de ovários policísticos pela ultrassonofrafia deve incluir o volume ovariano (maior ou igual a 10 cm3) e a hiperandrogenemia além do hiperandrogenismo clínico deve ser bem documentado5.
Uma das características metabólicas da SOP é a presença de hiperinsulinemia e resistência insulínica, mais evidente nas adolescentes com sobrepeso ou obesas. A obesidade é um achado frequente nestas pacientes, presente em 40 a 60% delas. O diagnóstico oportuno e a correta intervenção nos casos de SOP, faz-se importante uma vez que esta síndrome está relacionada ao aumento de risco de resistência insulínica, intolerância à glicose, diabetes mellitus tipo 2, doença cardiovascular e síndrome metabólica observadas também nas adolescentes com SOP6-8.
O presente estudo teve como objetivo avaliar as alterações clínicas, bioquímicas, ultrassonográficas e metabólicas em um grupo de adolescentes com síndrome dos ovários policísticos.
Métodos
Estudo retrospectivo observacional. Foram analisados registros médicos de 44 adolescentes entre 12 e 19 anos, que preenchiam os critérios para o diagnóstico de síndrome dos ovários policísticos atendidas no ambulatório de Ginecologia Endócrina do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HC/FMB-UNESP), no período de junho de 1997 a junho de 2008. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HC/FMB-UNESP (Of. 152/2007).
Para o diagnóstico da SOP foram utilizados os critérios estabelecidos pelo Consenso de Rotterdam (The Rotterdam ESHRE/ASRM - Sponsored PCOS Consensus Workshop Group, 2004)4 no qual foram consideradas na análise dos registros as pacientes que apresentavam no mínimo dois dos seguintes critérios: anovulação, caracterizada pelo padrão menstrual de oligomenorréia ou amenorréia; sendo considerado para avaliação da anovulação das adolescentes analisadas no estudo, um período mínimo de 2 anos após a menarca; sinais clínicos de hiperandrogenismo (escore de Ferriman e Gallwey modificado >8)9 e/ou hiperandrogenismo bioquímico (quando o valor da testosterona total, dosada em pelo menos duas ocasiões, foi superior a 60 ng/dL) e achados ultrassonográficos de morfologia ovariana (presença de pelo menos um ovário com volume igual ou superior 10 cm3 ao ultrassom e/ou presença de 12 ou mais folículos em cada ovário medindo entre dois e nove milímetros de diâmetro)4. Foram excluídas as pacientes que estavam em uso de medicações que pudessem interferir na análise dos dados ou que apresentassem outras endocrinopatias como hiperprolactinemia, tireoidopatias, hipogonadismo hiper ou hipogonadotrófico, hiperplasia adrenal congênita (HAC) de início tardio por deficiência da 21-hidroxilase, síndrome de Cushing e tumores produtores de androgênios.
Os dados antropométricos de peso, estatura, pressão arterial e avaliação do índice de massa corporal (IMC) foram aferidos em todas as pacientes.
O IMC foi calculado dividindo-se a massa corporal (kg) pela estatura ao quadrado (m2). Para as adolescentes, a obesidade foi definida pelos valores descritos por Cole et al. (2000)10 segundo a idade: 12 anos - IMC maior que 26,6 kg/m2; 13 anos - IMC maior que 27,2 kg/m2; 14 anos - IMC maior que 28,5 kg/m2 , 15 anos, IMC maior que 29,1 kg/m2, 16 anos- IMC maior 29,41 kg/m2; 17 anos IMC maior 29,7 1 kg/m2. Para as adolescentes com idade maior ou igual a 18 anos, foram consideradas obesas aquelas com IMC igual ou maior que 30 kg/m2.
Todas as dosagens bioquímicas foram realizadas no laboratório do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu e as amostras colhidas após jejum de 8 horas. O colesterol total, HDL-C (high-density cholesterol) e triglicerídeos foram dosados pelo método de química seca, no equipamento Vitrus, modelo 950, da marca Johnson e Johnson®. Foram considerados como valores de referência: colesterol total <200 mg/dL; HDL-C >50 mg/dL; LDL-C desejável <100 mg/dL e triglicerídeos <150 mg/dL. O valor do LDL-colesterol foi obtido pela fórmula de Friedewald [LDL-colesterol = colesterol total - HDL-C - (triglicerídios/5)] para valores de triglicerídios <400 mg/dL12.
A dosagem da glicemia foi realizada pelo teste enzimático colorimétrico da glicose-oxidase no equipamento Vitros® modelo 950. Foi considerada como valor normal a glicemia de jejum <100 ng/dL13. O teste de tolerância à glicose oral (TTGO) foi feito entre 8 e 9 horas da manhã, com a paciente em jejum de 12 horas, após ingestão de 75 g via oral de glicose anidra por um tempo máximo de 5 minutos. Valores de glicemia no TTOG inferiores a 140 mg/dL foram considerados normais13.
As dosagens de hormônio luteinizante (LH), hormônio folículo-estimulante (FSH), prolactina (PRL), hormônio tireoestimulante (TSH), tiroxina livre (T4), testosterona total, sulfato de dihidrotestosterona (SDHEA), foram realizadas pelo método da quimioluminescência, no aparelho Immulite 2000 Automated Chemiluminescence, Imunoassay System (Siemens®, Califórnia-USA). Para as adolescentes que tinham ciclos oligmenorreicos, foi orientada a dosagem hormonal na fase folicular do ciclo e para aquelas em amenorreia em qualquer dia. O valor de testosterona total foi considerado normal quando menor do que 60 ng/dL em pelo menos duas ocasiões5. Nas suspeitas de síndrome de Cushing foi dosado o cortisol após supressão com dexametasona 1 mg administrado via oral às 23 horas do dia anterior à coleta do sangue. O valor de cortisol pós dexametasona menor do que 1,8 mg/dL afastou o diagnóstico de síndrome de Cushing14. A 17 alfa-hidroxiprogesterona (17aOHP) foi dosada pelo método de radioimunoensaio utilizando-se o "Kit DPC Med Lab"®. Os valores de 17aOHP basal menores do que 2 ng/mL e/ou aos 60 minutos menores do que 12 ng/mL após administração de ACTH (Cortrosyna® 0,25 µcg via endovenosa)15 afastaram a HAC por deficiência da 21 hidroxilase.
Para o diagnósrico da síndrome metabólica (SM) utilizamos as recomendações do International Diabetes Federation16 que considera as seguintes anormalidades: circunferência da cintura (CC) >percentil 90º (10-15 anos) ou >80 cm (idade >16anos); glicemia de jejum >100 mg/dL; triglicerídeos >150 mg/dL; HDL-colesterol <40 mg/dL e pressão arterial >130/85 mmHg. A glicemia de jejum e a insulinemia de jejum foram usadas para calcular o HOMA-IR (Homeostasis model assessment of insulin resistance) e foi considerado resistência insulínica o valor de HOMAR-IR >3,1617. Os dados referentes às variáveis quantitativas foram apresentados em média e desvio padrão. As variáveis qualitativas foram apresentadas em frequência e percentual.
Resultados
A idade variou entre 12 e 19 anos (16,7±2,2 anos), a média do IMC foi de 30,3±6,6 e a média da idade da menarca foi de 11,8 anos (±1,4).
A Tabela 1 apresenta a frequência dos critérios diagnósticos da SOP entre as 44 adolescentes. Todas apresentaram irregularidade menstrual caracterizada pela amenorreia (72,7%) e oligomenorréia (27,3%). O hirsutismo foi observado em 86,4% (38/44) delas e a acne em 56,8% (25/44). A morfologia ovariana compatível para ovários policisticos foi observada em 12 pacientes (27,3%). O aumento do volume ovariano foi o achado morfológico mais comum nestas pacientes, sendo observado em 8 pacientes (18,2%) e o aumento do número de foliculos em 4 (9,1%). Sete pacientes não tinham dados ultrassonográficos disponíveis. Em 24 adolescentes foi constada hiperandogenemia (54,5%).
O fenótipo mais comum foi a anovulação acompanhada de hiperandrogenismo clínico presente em 45,5% (20/44); seguido do fenótipo completo de anovulação, hiperandrogenismo clínico e bioquímico em 40,9% (18/44). Seis adolescentes apresentavam anovulação e hiperandrogenemia sem hirsutismo (13,6%).
Na Tabela 2 demonstramos as principais alterações metabólicas encontradas neste grupo de adolescentes. De acordo com o IMC, 52,3% (23/44) eram obesas, 20,5% (9/44) tinham sobrepeso e 27,2%(14/44) eram eutróficas. Acantosis nigricans foi encontrada em 52,3% (23/44), sendo 16 (36,4%) obesas; 9 com sobrepeso (11,4%) e 2 com peso adequado (4,5%). O aumento da circunferência da cintura foi observado em 63,6% (28/44), diminuição do HDL-C em 34,1% (15/44), aumento dos triglicerídios em 27,3% (12/44); aumento da pressão arterial em quatro pacientes (9,1%) e aumento da glicemia de jejum em duas delas (4,5%). Nenhuma das adolescentes apresentou intolerância à glicose ou diabetes mellitus-2. A resistência insulínica (RI) calculada pelo HOMA-IR foi observada em 62,8% das adolescentes (27/43), uma das adolescentes não tinha dados para o cálculo da RI. Acantosis nigricans foi encontrada em 52,3% (23/44), sendo 16 (36,4%) obesas; nove com sobrepeso (11,4%) e em duas com peso adequado (4,5%). A síndrome metabólica (SM) foi identificada em seis adolescentes (13,6%), todas com sobrepeso ou obesas. Observamos que 27,3% (12/44) das adolescentes com SOP já apresentavam dois componentes da SM, sendo que apenas uma delas tinha peso normal.
Discussão
Nossos resultados mostraram que as principais manifestações clínicas da SOP no grupo estudado foram a irregularidade menstrual e o hirsutismo, e a morfologia compatível com ovário policístico foi um achado menos prevalente. A amenorreia foi o achado clínico mais comum relatado em mais de 70% delas, diferentemente dos resultados de Hickey et al.18 que observaram 8% de amenorreia em sua casuística. Em nossa análise, levamos em consideração os dados das adolescentes que apresentaram tempo superior a dois anos de menarca5, e observamos que o intervalo médio foi de aproximadamente cinco anos de ciclos irregulares no momento da consulta. Cerca de 20 a 35% das adolescentes apresentam ciclos ovulatórios no primeiro ano pós-menarca, a maioria tem um padrão anovulatório nos primeiros anos pós-menarca. Os ciclos tendem a regularizar com o decorrer dos anos, mas podemos ainda encontrar até 40% de ciclos anovulatórios por imaturidade do eixo num período até 5 anos pós menarca19. Por esta razão, o diagnóstico da SOP pode ser superestimado nas adolescentes com queixa de irregularidade menstrual. A amenorreia foi o achado clínico mais comum relatado em mais de 70% delas, diferentemente dos resultados de Hickey et al.18 que observaram 8% de amenorreia em sua casuística. Todas as adolescentes do estudo apresentaram-se com sinais clínicos e/ou bioquímicos de hiperandrogenismo.
O hirsutismo foi o sinal mais prevalente em nossa casuística, presente em mais de 80% das adolescentes. Há controvérsias sobre a aplicação do escore de Ferriman-Gallwey para adolescentes, uma vez que a ação dos androgênios no folículo piloso depende do tempo de exposição, e na adolescência este tempo pode não ser suficiente para a apresentação do quadro clínico, o que levaria a discussão de um escore diferenciado para esta faixa etária3,20. Seis adolescentes do estudo não apresentarem hirsutismo, no entanto tinham hiperandrogenemia. A resposta do folículo piloso aos androgênios circulantes varia consideravelmente entre os indivíduos, e isto pode explicar porque estas adolescentes tinham hiperandrogenemia sem manifestações cutâneas de hirsutismo21.
A ocorrência de desordens metabólicas e marcadores de risco cardiovascular em mulheres com hirsutismo tem se correlacionado com a severidade da hiperandrogenemia21. Por esta razão muitos autores tem reforçado a avaliação da hiperandrogenemia como um importante dado de SOP a ser avaliado na adolescência, sendo também o critério aceito pelas três classificações desta síndrome4,5,21.
Sabemos que as limitações da avaliação da hiperandrogenemia são decorrentes da grande variabilidade dos métodos utilizados e da falta de padronização dos valores de referência nas populações estudadas. Para minimizar este fato a dosagem da testosterona total foi realizada em duas ocasiões diferentes. Em nossa casuística mais de 50% das adolescentes tinham hiperandrogenismo bioquímico confirmado após duas dosagens.
A acne (observada em 56% das adolescentes do estudo) não é considerada pelo consenso atual como critério diagnóstico de hiperandrogenismo5, uma vez que pode ser uma ocorrência transitória nesta faixa etária. No entanto, Maluki22 avaliou a presença de SOP em adolescentes com acne e encontrou uma prevalência de 50% de diagnósticos de SOP naquelas com acne severa, sugerindo que este achado pode ser um sinal clínico de hiperandrogenismo e nestas adolescentes a SOP deve ser investigada.
O achado ecográfico de ovários policísticos foi observado em menos de 30% das adolescentes do nosso estudo. Nossos resultados foram inferiores aos encontrados por Hickey et al.18, quando constatou que 35% das adolescentes apresentavam alteração ovariana compatível com ovários policísticos à ultrassonografia por via abdominal. Essa variabilidade pode resultar em questionamentos a valorização dos critérios ultrassonográficos dos ovários no diagnóstico da SOP durante a fase da adolescência. A avaliação ultrassonografica nesta faixa etária pode ser dificultada uma vez que na maioria das pacientes a avaliação foi via abdominal e não endovaginal. Por outro lado a ocorrência frequente de múltiplos folículos durante a adolescência pode confundir o diagnóstico23,24. Codner et al.25 observaram a morfologia ovariana compatível com ovários policísticos em 40% das meninas com dois anos pós-menarca, e quatro anos após a menarca, 33% tinham ovários policísticos ao ultrassom sem relação com irregularidade menstrual e nem achados metabólicos. A conclusão de seu estudo foi que ovários policísticos podem ser um achado inconstante em adolescentes saudáveis sendo considerado uma condição fisiológica nos anos iniciais da adolescência. No entanto, Villa et al.26 sugerem que os ovários devam ser acompanhados nas adolescentes com ciclos irregulares no intuito de prevenir a longo prazo os distúrbios metabólicos da SOP. Foi observado no estudo de Villa et al.26 que o volume ovariano nas adolescentes com SOP foi significativamente associado com testosterona circulante, insulina e índices de resistência à insulina.
Cerca de metade das adolescentes do estudo apresentavam acantosis nigricans, um sinal clínico consequente à presença de resistência insulínica, que foi encontrada em 62% delas. Destas adolescentes, somente duas tinham peso normal. A resistência insulínica é um achado frequente nas pacientes com SOP e tem sido observada em estudos prévios27,28 sendo diretamente relacionada à obesidade e influenciando na presença de síndrome metabólica. A prevalência de 13,6% de síndrome metabólica em nosso estudo foi inferior à encontrada no estudo de Rossi et al.28 e superior aos achados de Carmina et al.29. Os estudos enfatizam que adolescentes identificadas com síndrome metabólica apresentam risco aumentado de diabetes mellitus e doença arterial coronoariana na vida adulta30-32.
Embora a síndrome metabólica não tenha sido observada em nenhuma paciente não obesa do nosso estudo, detectamos resistência insulínica em três adolescentes com peso saudável. Este dado nos leva a observar que alterações metabólicas devem ser pesquisadas em todas as adolescentes portadoras de SOP, independente da presença ou não da obesidade.
Nossos dados indicam que a presença de síndrome metabólica e resistência insulínica são alterações frequentes nas pacientes adolescentes com SOP que apresentam obesidade ou sobrepeso, o que chama a atenção para a importância de medidas efetivas para mudanças de hábitos de vida nesta faixa etária. Além disso, o diagnóstico da SOP na adolescência foi fortemente sugerido pela presença de irregularidade menstrual e hiperandrogenismo, e a morfologia ovariana não se mostou como um dado prevalente nesta população estudada.
Recebido: 27/03/2013
Aceito com modificações: 27/05/2013
Conflito de interesses: não há.
Trabalho realizado no Departamento de Ginecologia, Obstetricia, Programa de Pós-Graduação em Ginecologia, Obstetrícia e Mastologia da Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" - UNESP - Botucatu (SP), Brasil.