DOI: S0100-7203(13)03501200004 - volume 35 - Dezembro 2013
Haley Calcagnotto, Ana Lúcia Letti Müller, Julio Cesar Loguercio Leite, Maria Teresa Vieiro Sanseverino, Kelli Wagner Gomes, José Antonio de Azevedo Magalhães
Introdução
Gastrosquise é uma malformação congênita caracterizada por um defeito de fechamento da parede abdominal associado com exteriorização de estruturas intra-abdominais, principalmente o intestino fetal. O defeito é localizado na região paraumbilical, mais comumente à direita, e o cordão umbilical não apresenta alterações na sua inserção1. Raramente se associa a outras malformações ou síndromes, exceto algumas alterações intestinais como atresias ou estenoses2,3.
A incidência da gastrosquise vem aumentando nas últimas décadas em diversas populações, variando de 1 a 2 até 4 a 5/10.000 nascidos vivos, estando associada à baixa idade materna (<20 anos)1,4. Outros fatores de risco citados e sob investigação: tabagismo, drogas ilícitas e drogas vasoativas como a pseudoefedrina (dos descongestionantes nasais)5,6. Nenhum dos fatores de risco foi ainda substancialmente comprovado com dados convincentes e reproduzidos.
A maior parte dos casos de defeitos abdominais fetais é diagnosticada no exame ultrassonográfico morfológico entre a 18ª e 22ª semana de gestação3. Os benefícios do diagnóstico pré-natal incluem preparo e apoio, planejamento adequado do nascimento com equipe obstétrica, cirúrgica e neonatal em alerta, categorização do risco e possibilidade de desenvolver protocolos de ação.
Nascimentos prematuros e restrição de crescimento intrauterino são esperados nos casos de gastrosquise7. Para o tratamento pós-natal, uma das maiores dificuldades para o fechamento cirúrgico primário é a desproporção visceral-abdominal. O desenvolvimento do silo foi um passo decisivo no manejo da gastrosquise. O silo consiste em uma bolsa de policloreto de polivinil (PVC) ou silicone estéril, que engloba de forma primária todo o conteúdo exteriorizado e evita a perda de calor e líquidos; progressivamente, esse conteúdo é colocado para dentro da cavidade até o fechamento cirúrgico secundário em torno de cinco a dez dias. A taxa de mortalidade atualmente gira em torno de 3,6%, e os fatores mais significativos para o óbito têm sido as ressecções de intestino grosso, as anomalias congênitas circulatórias e pulmonares e a sepse8.
Este trabalho teve como objetivo analisar a taxa de mortalidade perinatal dos casos de gastrosquise atendidos em hospital de ensino do sul do Brasil e os possíveis fatores associados.
Métodos
Foi realizado um estudo de coorte retrospectivo entre 1992 e 2012. Foram incluídos todos os casos de gastrosquise nascidos no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Rio Grande do Sul, Brasil, naquele período. Os autores assinaram o termo de responsabilidade para uso de dados de prontuário e a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Pesquisa e Ética em Saúde do grupo de pesquisa e pós-graduação do HCPA, sob o número 08-468.
As gestantes com suspeita diagnóstica atendidas no pré-natal realizado no hospital e na rede primária referenciada foram encaminhadas para o Setor de Medicina Fetal, onde realizaram exame de ultrassonografia obstétrica morfológica. O diagnóstico de gastrosquise foi definido pela confirmação ultrassonográfica do defeito da parede abdominal localizado lateralmente à inserção do cordão umbilical normalmente inserido, conteúdo abdominal flutuando no líquido amniótico, sem membrana recobrindo as estruturas2. Nos casos de suspeita, apenas no momento do nascimento, o diagnóstico foi feito pela identificação clínica do defeito.
As variáveis analisadas foram: idade materna em anos, paridade (número de partos prévios), escolaridade, peso ao nascer em gramas, idade gestacional em semanas, escore de Apgar e modo de parto (vaginal ou cesariana). Também foram analisadas as anomalias associadas encontradas (patologias, defeitos e malformações congênitas), o tipo de fechamento cirúrgico (primário ou silagem + secundário), reintervenções, sepse e outras causas do óbito. As gastrosquises foram classificadas como simples (exposição de alças intestinais somente, sem complicações) e complexas (presença de anomalias e complicações como as atresias intestinais, perfuração, necrose ou volvo) de acordo com o conteúdo eviscerado9,10. A silagem foi realizada de acordo com os protocolos hospitalares que foram sendo atualizados, inicialmente utilizando um frasco de soro estéril rígido cortado para abranger o conteúdo até o uso de bolsa de silicone de soro estéril maleável também cortada.
A mortalidade perinatal foi o desfecho principal e os casos foram divididos em mortos e vivos, sendo as variáveis comparadas entre si. Os resultados foram analisados com o programa PASW, versão 18.0, utilizando-se média e desvio-padrão para variáveis quantitativas de distribuição simétrica como peso ao nascer, pelo teste t de Student, ou mediana e intervalo interquartil para variáveis quantitativas de distribuição assimétrica como idade materna, idade gestacional e escore de Apgar, pelo teste de Mann-Whitney. As variáveis categóricas foram analisadas utilizando-se as frequências absoluta e relativa percentuais e comparadas pelo teste do χ2 com correção de Yates, para as variáveis escolaridade e tipo de gastrosquise, e pelo teste exato de Fisher, para as variáveis paridade, modo de parto, anomalias associadas, tipo de fechamento cirúrgico, reintervenção e sepse. Considerou-se nível de significância de 5% (p=0,05).
Resultados
Foram incluídos 64 recém-nascidos (RN) com gastrosquise; 59 deles (92,2%) foram diagnosticados no pré-natal e os demais, ao nascimento.
As características demográficas estão descritas na Tabela 1. A maioria das gestantes com fetos com gastrosquise eram jovens (idade média de 21,5 anos), primíparas (68,7%) e com bom nível de escolaridade (60,9% com ensino médio e 6,3% com ensino superior).
Foram identificadas outras anomalias associadas à gastrosquise em 21 casos: 6 casos de malrotação intestinal, 2 casos de malformações nas mãos (polegar incluso e hipoplasia de falanges), 2 casos de atresia duodenal, 2 casos de atresia de cólon, 2 casos de hidronefrose bilateral com megaureter, 1 caso de obstrução intestinal, 1 caso de criptorquidia, 1 caso de luxação congênita de quadril, 1 caso de estenose de jejuno, 1 caso de hérnia inguinal, 1 caso de teratoma ovariano associado à atresia intestinal e 1 caso de Sequência de Poland (ausência unilateral do músculo pequeno peitoral e da porção esternal do grande peitoral mais anomalia do membro superior) com dextrocardia com situs solitus (somente o coração em posição anormal à direita, os demais órgãos em posição normal).
Com relação ao conteúdo exposto, 26 casos (40,6%) tinham o intestino somente, classificados como gastrosquises simples. Os demais tinham também o estômago em 22 casos (34,4%) e outros órgãos em 16 casos (25%), sendo eles: bexiga, útero, trompas, vesícula biliar, fígado, testículo, baço e ligamento redondo, classificados como gastrosquises complexas.
O fechamento cirúrgico primário foi realizado em 44 casos (68,8%). Em 20 casos, o fechamento primário foi realizado com colocação de silo e, depois, foi realizado o fechamento cirúrgico secundário (considerados como reintervenção). Três casos de fechamento primário também necessitaram de reintervenção cirúrgica.
A mortalidade foi de 23,4% (15 mortes). Os pacientes com gastrosquise que morreram tinham peso ao nascer (p=0,001), escore de Apgar (p=0,03) e idade gestacional ao nascimento (p=0,03) significativamente menor que os sobreviventes. Não houve diferença no modo de parto (p=0,8) e, com relação ao conteúdo eviscerado, não houve diferença entre os casos de gastrosquise simples e complexa (p=0,06). Também não houve diferença na mortalidade de acordo com as anomalias associadas encontradas (p=0,9). Na Tabela 2, está descrita a análise dessas variáveis do nascimento. As variáveis cirúrgicas estão descritas na Tabela 3, e a mortalidade foi significativamente maior nos casos com reintervenção (p=0,001) e com sepse (p=0,008). Os óbitos tiveram como causa principal a seguinte descrição: 10 casos de sepse (66,7%), 1 caso de insuficiência renal aguda (6,7%), 2 casos cardiogênicos (13,3%), 1 caso de síndrome do choque tóxico (6,7%) e 1 caso de desnutrição (6,7%).
Discussão
A taxa de prevalência de gastrosquise tem aumentado progressivamente em todas as regiões do mundo; costumava ser de 1:50.000 nascimentos próximo à década de 1960, quando se iniciaram os programas de vigilância e coletas de dados sobre malformações ao nascimento no mundo. Desde então, tem aumentado, chegando a cerca de 10 a 15 vezes em várias populações. Segundo dados do Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas (ECLAMC), a prevalência na América do Sul é de 2,9:10.0001,4. A taxa de Porto Alegre entre os anos de 2000 e 2004 foi de 4,53:10.000 nascidos vivos e, no HCPA, foi de 5,42:10.000 nascidos vivos (dados do programa local de monitoramento de defeitos congênitos, associado ao ECLAMC).
Muitos autores têm relatado o aumento das taxas de sobrevivência entre os pacientes com gastrosquise nas últimas décadas, entre 90 a 95% nos países desenvolvidos1,3-5,8,11. No Brasil, a mortalidade varia de acordo com a região; no Nordeste, chega a 52%12,13. Em nosso estudo, a taxa foi de 23,4%, ainda mais alta do que nos países desenvolvidos, mas menor do que em outras regiões brasileiras.
Com relação aos fatores associados à mortalidade, ainda o baixo peso e a prematuridade, que foram significativos no nosso estudo, são causas pertinentes e não especificamente associadas à gastrosquise. Diretamente ligada à patologia, a complexidade é um fator específico. Desordens intestinais, tais como a atresia e o volvo, e as complicações como a enterocolite necrotizante e a perfuração intestinal parecem aumentar a mortalidade e a morbidez dos pacientes com gastrosquise8-10,14,15. A dilatação intra-abdominal intestinal é um dos poucos marcadores de complexidade da gastrosquise que podem ser identificados na ultrassonografia pré-natal, podendo ser utilizada na estratificação de risco16. Além dela, a presença de vários órgãos eviscerados além do intestino também acrescenta complexidade à gastrosquise e ao seu tratamento cirúrgico, conforme o volume do conteúdo exteriorizado. Em nossa coorte, na análise do tipo de gastrosquise, a maioria dos óbitos ocorreu em pacientes com gastrosquise complexa, embora não tenha havido diferença estatística, provavelmente associada ao número dos casos de óbito.
Não encontramos associação entre o tipo de parto e a mortalidade. Outros autores também não encontraram benefício com a cesariana de rotina, e o tipo ideal de parto ainda permanece controverso2,7,15,17. A indicação da via de parto tem sido a cesariana para pacientes com diagnóstico pré-natal estabelecido no HCPA para planejar o momento ideal de intervenção cirúrgica pela equipe da cirurgia pediátrica (disponibilidade de sala cirúrgica e anestesista). Como hospital de referência, muitos casos de gastrosquise nascidos em outros hospitais ou cidades acabam sendo transferidos para o HCPA; não avaliamos os casos nascidos fora do hospital neste trabalho, mas já foi demonstrado pelo estudo de Vilela no Nordeste do Brasil uma mortalidade maior em seus casos transferidos, o que poderia estar relacionado ao manejo sub-ótimo e às condições de transporte em muitas cidades daquela região13.
A análise dos resultados de acordo com o tipo de fechamento cirúrgico não revelou diferenças significativas, o que está de acordo com resultados encontrados na literatura3,7,18. O tratamento de escolha da gastrosquise tem sido extensamente debatido, mas as evidências disponíveis são bastante heterogêneas. As complicações das reintervenções realizadas tanto para o fechamento secundário como após o fechamento primário e a sepse estão associadas com altas taxas de mortalidade, sendo a última responsável por 66,7% das mortes, o que foi similar à encontrada em outros estudos brasileiros12,13. Medidas podem ser tomadas para minimizar tal complicação e posterior redução dessas taxas. Um estudo recente revisando o manejo de gestações com gastrosquise concluiu que a indução de parto na 37ª semana de gestação esteve associada com redução da sepse e morte neonatal em comparação com o manejo expectante, embora revisão feita pela Cochrane não tenha sido capaz de afirmar tal conclusão19,20. A estratificação do risco parece ser possível e pode ser utilizada em nossa realidade, mas algumas questões ainda necessitam ser respondidas, como o planejamento do nascimento conforme o diagnóstico da complexidade da gastrosquise e cobertura antibiótica específica para prevenção das complicações da sepse9,10,15,16. A longa permanência no hospital e as complicações gastrointestinais são fatores a serem esclarecidos para as famílias dos RN com gastrosquise21. Protocolos estão sendo desenvolvidos para padronizar as condutas, técnicas cirúrgicas e coleta de dados para informação e estudos, iniciados no ano de 2013, incentivados pelos resultados do presente estudo. Como o trabalho foi feito com a análise dos dados dos prontuários de até 20 anos atrás, algumas informações importantes podem ter sido omitidas, sendo uma de suas limitações.
A mortalidade perinatal da gastrosquise neste trabalho parece depender principalmente da prematuridade, baixo peso e complicações cirúrgicas. Os benefícios do diagnóstico pré-natal da gastrosquise são muitos e incluem preparo e apoio familiar, planejamento adequado do nascimento com equipes obstétrica, cirúrgica e neonatal em alerta, categorização do risco e possibilidade de desenvolver protocolos específicos de ação, com o objetivo de reduzir ao máximo as taxas de mortalidade perinatal associadas a essa doença.
Recebido: 25/11/2013
Aceito com modificações: 18/12/2013
Conflito de interesses: não há.
Serviço de Ginecologia e Obstetrícia, Setor de Medicina Fetal e Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre - HCPA - Porto Alegre (RS), Brasil