DOI: S0100-7203(13)03500100004 - volume 35 - Janeiro 2013
Viviane Herrmann, Renata Gebara De Grande Di Sessa, Cassio Luís Zanettini Ricceto, Sirlei Siani Morais, Edilson Benedito de Castro, Cassia Raquel Juliato
Introdução
A Incontinência Urinária (IU) é dividida em três subtipos: incontinência urinária de esforço (IUE), incontinência urinária de urgência (IUU) e incontinência urinária mista (IUM)1. Aproximadamente metade das mulheres com queixa clínica de IU apresentam IUE, 30 a 40% apresentam queixa de IUM e 9,3 a 16% apresentam sintomas exclusivamente de IUU2-4.
Entre as ferramentas que auxiliam na abordagem da IU está a Avaliação Urodinâmica (AU), que permite estudar a estabilidade do detrusor na fase de enchimento vesical, bem como a perda urinária durante realização de manobra de Valsalva, além de analisar fluxo/pressão e avaliar a presença de obstrução infravesical. É considerada, por alguns autores, o padrão-ouro para a determinação da etiologia de incontinência urinária5,6.
Trata-se, entretanto, de um exame invasivo, que pode provocar desconforto e constrangimento para a paciente e, em grande parte dos casos, não evidencia os sintomas relatados, especialmente em pacientes com Síndrome da Bexiga Hiperativa, ou SBH7,8. A baixa correlação entre o diagnóstico clínico e o urodinâmico da incontinência urinária foi evidenciada através de revisão sistemática de 23 artigos, em 2011, porém com a ressalva de o diagnóstico clínico ter sido feito com anamnese, exame físico e pad test ou teste de esforço ou diário miccional. Em nenhum dos estudos foram comparadas combinações de testes diagnósticos com a AU. A associação de outros testes menos invasivos à anamnese e exame físico poderia se aproximar do resultado da AU6.
Os questionários clínicos são exemplos de instrumentos não invasivos que complementam a avaliação clínica da paciente9,10. O International Consultation on Incontinence Questionnaire Urinary Incontinence/Short Form (ICIQ-UI/SF)11, e validado em 2004 para o português10, é de fácil aplicabilidade e compreensão. Consiste em três perguntas que abrangem a frequência de perda urinária, o volume da perda e o quanto ela interfere na vida da paciente, segundo suas próprias impressões. A cada resposta é dada uma pontuação, resultando em um escore final, que é a soma de todas as pontuações. A vantagem desse questionário está no fato de ser breve, simples e autoaplicável10,12.
Seckiner et al.12 avaliaram o escore do ICIQ-UI/SF com os parâmetros urodinâmicos em pacientes com IUU antes e depois do tratamento medicamentoso e observaram que pacientes que apresentaram primeiro desejo miccional com baixos volumes de enchimento vesical e pacientes com níveis mais altos da pressão do detrusor na capacidade cistométrica máxima apresentaram maior escore no ICIQ-UI/SF.
Este estudo propôs-se a avaliar a associação entre o ICIQ-UI/SF e a Avaliação Urodinâmica em pacientes com incontinência urinária, independente do tipo. Tem como objetivo avaliar a capacidade do questionário em predizer resultados da avaliação urodinâmia, o que permitiria que eventuais gastos com esse exame e potenciais riscos para o paciente fossem evitados.
Métodos
O estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa do SISNEP (código n° 1308/2011). Foram analisados, retrospectivamente, dados clínicos e relatórios de estudos urodinâmicos realizados, conforme as padronizações da International Continence Society (ICS)1, por 358 mulheres com queixa clínica de IU. Foram excluídas mulheres com infecção do trato urinário, gestantes e portadoras de doenças malignas e/ou neurológicas. Todos os exames foram efetuados em clínica privada entre 2006 e 2008 e as pacientes responderam ao questionário ICIQ-UI/SF antes do procedimento, em complemento à anamnese habitual. A Tabela 1 mostra as características demográficas das pacientes avaliadas.
Para o Estudo Urodinâmico foi utilizado o modelo Urosystem 5600 (Viotti Equipamentos Médicos Ltda). Foram realizadas a urofluxometria livre, em que foi estimado o fluxo urinário e o volume urinário, a cistometria e o estudo fluxo-pressão. A pressão de perda ao esforço (PPE) foi medida quando era alcançada a capacidade cistométrica máxima. As pressões uretrais não foram avaliadas no estudo. Os parâmetros urodinâmicos coletados foram: volume do enchimento intravesical no primeiro desejo miccional; capacidade cistométrica máxima (CCM); presença de contração não inibida (CNI); PPE; pressão do detrusor na CCM; volume urinado; diagnóstico urodinâmico (normal, incontinência de esforço urodinâmica); hiperatividade do detrusor urodinâmica; incontinência urinária de esforço associada à hiperatividade do detrusor).
Após a Avaliação Urodinâmica, as pacientes foram divididas em: IUE urodinâmica (IUE urodinâmica), IUE urodinâmica associada à hiperatividade detrusora (IUM urodinâmica), Hiperatividade Detrusora (HD) e pacientes com Avaliação Urodinâmica normal (AU normal).
A fim de se buscar a correlação entre o ICIQ-UI/SF e os parâmetros urodinâmicos, foi calculado o índice de correlação de Spearman entre o valor do ICIQ-UI/SF e a PPE, a CCM e o volume vesical no Primeiro Desejo Miccional (PDM).
Foram avaliadas a sensibilidade e a especificidade de cada escore do ICIQ-UI/SF nos diferentes grupos de pacientes, a fim de se obter um ponto de corte no escore do questionário que tornasse possível diagnosticar o subtipo de IU, assim como discriminar os diagnósticos e prever resultados de parâmetros urodinâmicos. Para tanto, foi utilizada a curva ROC, onde se obteve o valor do escore com maior sensibilidade e especificidade para o objetivo do trabalho. A partir desse ponto de corte, as variáveis foram estudadas em relação ao diagnóstico e avaliadas quanto à significância estatística (valor p) através dos testes do c2 ou exato de Fisher. O nível de significância foi de 5% e o software utilizado para a análise, o SAS versão 9.2.
Resultados
Dentre as pacientes, 33 apresentaram Avaliação Urodinâmica normal, ou seja, 9,2% dos casos (grupo 4), o que condiz com a incidência encontrada na literatura. IUE foi o diagnóstico em 241 casos (67,3%), IUE e HD (IUM urodinâmica) em 58 (16,2%) e HD em 26 (7,3%). As pacientes com AU normal representaram 9,2% do total. O escore do ICIQ-UI/SF nos grupos foi de 15,4 (±3,8) nas mulheres com IUE urodinâmica, 15,9 (±3,9) naquelas com IUM urodinâmica e 15,0 (±4,8) naquelas com HD. Não foi observada associação entre o escore do ICIQ-UI/SF e tipo de IU (p=0,1980), não sendo o questionário capaz de discriminar os diferentes tipos de IU à urodinâmica.
O índice de correlação de Spearman evidenciou correlação significativa entre os valores da PPE e o escore do ICIQ-UI/SF em mulheres com IUE (coeficiente rho=-0,18; p=0,0010), não se observando correlação entre este e a CCM (rho=-0,08; valor p=0,09) ou o PDM (rho=-0,05; valor p=0,33). A correlação obtida foi inversamente proporcional e fraca. Em mulheres com IUE urodinâmica, foi observada significativa associação entre valor de PPE<90 cmH2O e escores mais altos do ICIQ-IU/SF (p=0,0037) (Tabela 2).
A curva ROC permitiu estabelecer o escore 14 como ponto de corte no ICIQ-UI/SF a fim de predizer os diagnósticos para cada grupo. Houve associação significativa entre o escore do ICIQ-UI/SF nos Grupos com IUE urodinâmica (p=0,0131) e IUM urodinâmica (p=0,0015). Não houve associação entre o escore ICIQ-UI/SF e HD isoladamente (p=0,4414). Ainda, em todos os grupos, o ICIQ-UI/SF mostrou-se pouco específico para o diagnóstico da IU (Figura 1).
Discussão
Embora a Avaliação Urodinâmica (AU) seja, por muitos, considerada o padrão-ouro para a caracterização da incontinência urinária, sua realização pode significar desconforto e constrangimento, além de se tratar de um procedimento de custo elevado, o que limita seu uso em parcela significativa de hospitais de pequeno e médio porte. Pode, ainda, não reproduzir os sintomas da paciente e seu impacto sobre o desfecho cirúrgico é ainda controverso. Estudos foram realizados para estabelecer possível correlação entre a AU e métodos menos invasivos de diagnóstico de IU13-16.
Encontramos correlação inversa entre a PPE e o escore do ICIQ-UI/SF, mas não entre esse questionário e a CCM ou o volume vesical no primeiro desejo miccional, diferente do que foi descrito por Seckiner et al.12. Nosso estudo incluiu 358 mulheres com todos os subtipos de IU, enquanto o de Seckiner et al.12 avaliou 68 pacientes com hiperatividade detrusora urodinâmica de ambos os sexos. Segundo nosso estudo, a correlação é presente apenas em pacientes com perda urinária ao esforço, e ainda assim é fraca.
No presente estudo também foi encontrada associação entre a AU e o escore do ICIQ-UI/SF, em termos de ponto de corte para o diagnóstico, tanto da presença de perda ao esforço à urodinâmica, quanto do mais provável valor da PPE a ser encontrado. Segundo nosso estudo, valores do ICIQ-UI/SF maiores ou iguais a 14 têm maior chance de apresentar IUE à Urodinâmica, e valores maiores ou iguais a 16 indicam maior chance de a PPE ser menor que 90 cmH2O ou seja, situações de maior gravidade.
A associação entre piores escores do questionário e valores de PPE menores que 90 cmH2O coincide com o conceito defendido por muitos autores de que esse valor de pressão seria um ponto de corte acima do qual a IUE urodinâmica seria consequência de hipermobilidade uretral17,18.
Recente revisão sistemática utilizou dados de 385 mulheres com IU, das quais 197 haviam sido submetidas à avaliação urodinâmica. Os autores concluíram que não houve diferença significativa entre o número de mulheres submetidas à cirurgia para tratamento de IU com e sem AU prévia. As mulheres com AU prévia foram mais propensas a ter seu tratamento alterado, mas isto não foi significativo na análise estatística19. De fato, a AU não é mandatória em avaliações pré-operatórias em muitos serviços e pode ser considerada útil na investigação de novas modalidades de tratamentos, ou no diagnóstico da IU caso haja dúvida, não sendo necessária antes do tratamento de bexiga hiperativa e tratamento cirúrgico inicial de IUE20,21.
Por outro lado, embora adotar o valor da PPE para definir o tipo de IUE seja controverso, assumir 90 cmH2O como um ponto de corte que define a gravidade da IUE é compatível tanto com os artigos já publicados sobre a relação entre a PPE e a IUE, quanto com os achados de nosso estudo17. A correlação entre o escore do ICIQ-UI/SF e a PPE pode significar que, em pacientes com IUE, a aplicação do questionário de qualidade de vida pode prever a gravidade da incontinência urinária.
Nosso estudo não teve como objetivo substituir a AU pelo ICIQ-UI/SF, uma vez que o primeiro é um método diagnóstico, objetivo, e o segundo é uma avaliação subjetiva de um diagnóstico já estabelecido. Porém, o fato de haver correlação entre ICIQ-UI/SF e a PPE, além de haver um valor de corte no escore que não somente prediz a presença do componente de esforço na IU, mas também o possível valor da PPE, permite-nos dizer que o questionário é uma ferramenta útil para avaliação do diagnóstico da IUE. Aliado à avaliação clinica, pode-se, portanto, dispensar a AU nas pacientes com incontinência urinária aos esforços.
O estudo tem limitações quando diz respeito à hetereogenicidade da coorte analisada. Embora todas as mulheres apresentassem incontinência urinária clinicamente diagnosticada, apresentam diferenças em relação à idade, paridade e morbidades. Algumas já haviam sido submetidas a cirurgias anti-incontinência. Tais características podem influenciar as respostas das pacientes no questionário quanto à qualidade de vida, independente do tipo de IU e de sua gravidade. De fato, a média do escore do ICIQ-UI/SF nas pacientes que não haviam sido submetidas à cirurgia foi menor que aquela referente às pacientes com ao menos uma cirurgia como antecedente (14 naquele sem cirurgia, e 15,7 naquele das pacientes com antecedente cirúrgico).
Por outro lado, a importância deste estudo é fundamentada no tamanho amostral e no fato de não ter apresentado vício de seleção, uma vez que não se tratava de um centro de referência para nenhum tipo específico de incontinência urinária. Embora não tenham sido incluídas pacientes sem o diagnóstico clínico de incontinência urinária, as pacientes avaliadas não pertenciam a grupos de risco, com morbidades que poderiam cursar com IU, nem eram todas da mesma raça, o que diminui o erro quando os resultados são transportados para a população geral.
Recebido 17/08/2012
Aceito com modificações 12/11/2012
Conflito de interesses: não há.