DOI: S0100-7203(12)03401200003 - volume 34 - Dezembro 2012
Kateli Fiolo, Cibele Esteves Zanardi, Marizete Salvadego, Carmem Silvia Bertuzzo, Eliana Amaral, Roseli Calil, Carlos Emilio Levy
Introdução
Streptococcus agalactiae ou Streptococcus do Grupo B (EGB) é uma bactéria gram-positiva cocóide em forma de cadeias, beta hemolítica e de potencial invasivo, especialmente no período perinatal, envolvendo recém-nascidos (RN), mulheres grávidas ou no pós-parto e, mais recentemente, descrito em pacientes idosos e em casos de infecção hospitalar1,2. A doença em RNs, em geral ocorre na primeira semana de vida e é denominada sepse neonatal de início precoce3,4. As formas clínicas em recém-nascidos abrangem a sepse, osteomielite, artrite séptica, pneumonia e meningite, podendo acarretar sequelas neurológicas, visuais e auditivas graves em 15 a 30% dos nascidos acometidos, ou podendo ainda levar ao óbito4.
Aproximadamente 10 a 30% das gestantes são colonizadas pelo EGB na vagina ou no reto3,4. Na ausência de qualquer intervenção, estima-se que 1 a 2% dos RNs de mães colonizadas desenvolvem doença precoce por EGB4. Em 1996, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) publicou diretrizes para a prevenção de infecção estreptocócica do grupo B no período perinatal5. As normas foram atualizadas em 2002 pelo CDC, padronizando a triagem de mulheres grávidas para a detecção de colonização pelo EGB entre a 35ª e a 37ª semanas de gestação, indicando profilaxia antibiótica nas infectadas durante o trabalho de parto6.
Em 2010, nova atualização reavaliou as estratégias de prevenção dando novas orientações referentes ao uso racional dos antibióticos, triagem de urina e metodologias laboratoriais4.
Do ponto de vista microbiológico, cada etapa do processo laboratorial (coleta, isolamento, uso de meio seletivo e apropriada identificação do EGB) é crítica para o sucesso da caracterização deste agente, assim como a experiência do profissional que executa estas tarefas4,7-12. Além de técnicas convencionais de identificação para EGB, foram desenvolvidas sondas de DNA4,13 e testes de amplificação de ácido nucléico, como reação em cadeia da polimerase (PCR)14-16.
O S. agalactiae é classificado em sorotipos de acordo com diferenças antigênicas capsulares detectados classicamente pela técnica de imunodifusão ou por PCR4,9,10.
Existem atualmente dez sorotipos capsulares distintos (Ia, Ib, II, III, IV, V, VI, VII, VIII), incluindo o mais novo, IX, descrito em 200717. A variedade capsular tem relação com a virulência, e identificar os sorotipos é fundamental para estudos clínicos e epidemiológicos4,9.
Dentre os dez sorotipos conhecidos, o III é o mais encontrado nas doenças do neonato, principalmente meningite e septicemia, e é o segundo mais detectado em amostra vaginal de gestantes assintomáticas, enquanto o sorotipo Ia é o mais isolado em amostra vaginal e o V tem predominado em casos de infecção em adultos, excluindo-se as gestantes4.
Para o desenvolvimento de uma vacina visando à prevenção das infecções pelo EGB, o planejamento da sua composição antigênica depende da distribuição dos sorotipos de EGB nas diferentes populações. Estudos em fase I e II têm revelado que mães imunizadas, produzindo anticorpos IgG tipo específico, protegem seus RNs de doença invasiva4,18-20, sendo, para este fim, importante conhecer a distribuição dos sorotipos prevalentes a regional e nacionalmente.
Assim, este trabalho teve como objetivos contribuir para o melhor conhecimento da importância do S. agalactiae em nosso meio e avaliar o impacto das medidas de prevenção preconizadas pelo CDC e a distribuição dos sorotipos de EGB detectados pela técnica de PCR em RNs4,9.
Métodos
Trata-se de um estudo clínico-laboratorial e transversal. Foram selecionados os casos correspondentes às amostras que tiveram cepas de S. agalactiae isoladas de líquidos biológicos, de RNs atendidos no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM) do Hospital da Mulher Prof Dr José Aristodemo Pinotti, durante o período de 1º de janeiro de 2007 a 31 de dezembro de 2011. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética Médica em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) sob parecer nº 640/2008.
Foram excluídas deste estudo as amostras clínicas não identificadas corretamente, as repetidas do mesmo paciente e cepas que não foram confirmadas como S. agalactiae.
As amostras de sangue foram processadas no equipamento de automação BacT/Alert BioMerieux® e as amostras positivas semeadas em ágar sangue de carneiro e incubadas a 37ºC com 5% de CO2, permanecendo por 24 horas na estufa. Desta mesma forma, foram semeadas as amostras de líquor (LCR).
A rotina microbiológica de identificação de S. agalactiae baseou-se em técnicas padronizadas compreendendo a beta hemólise em ágar sangue de carneiro, prova da catalase, teste de CAMP, hidrólise do hipurato9,10. Nos casos de provas com resultados duvidosos, as amostras foram identificadas pelo equipamento de automação Vitek 2 Compact (BioMeriéux Vitek Inc., St. Louis, MO). As confirmadas foram estocadas a -80ºC, em caldo BHI com 15% de glicerol.
O protocolo de extração de DNA baseou-se no trabalho de Ausubel et al.21 utilizando colônias crescidas diretamente no ágar sangue. O DNA genômico foi quantificado por espectrofotometria, pelo NanoVue, General Eletric Company. Para a reação de PCR foram designados um par de primers para cada sorotipo de EGB (Ia, Ib, II-VIII) e um par para confirmar o microrganismo realmente como sendo S. agalactiae22,23. Foram feitas três reações no termociclador, sendo a primeira apenas com os primers que definiam a espécie. As amostras amplificadas nessa etapa, assim o foram com os outros nove pares de primers. Por fim, realizou-se uma última reação, para confirmar o sorotipo, apenas com o par de primers que amplificou na reação anterior, descartando-se reações cruzadas.
O ciclo do termociclador foi de 15 minutos a 94°C, 60°C por 30 segundos, 72°C por 1 minuto, 72°C por 10 minutos e final de 22°C24. Os produtos das PCRs foram submetidos à eletroforese em gel de ágarose 1,5% e utilizou-se 2,0 µL de marcador de peso molecular 100 Kb e 50 Kb (Fermentas Life Science, USA). As imagens foram capturadas pelo analisador Amersham Biosciences/GE Healthcare Typhoon 9400® e, posteriormente, analisadas.
Os prontuários dos recém-nascidos e de suas mães foram revisados para a coleta de informações clínicas e demográficas. Os dados foram tabulados no Microsoft Excel e o programa utilizado para as análises estatísticas foi o PASW Statistics 18.0, no qual executaram-se análises comparando as médias dos resultados apresentados.
Resultados
No período de 2007 a 2011 foram detectados nove casos de RNs com culturas positivas para S. agalactiae, sendo sete isoladas de hemocultura, uma de líquor e uma de secreção ocular. Em apenas um deles houve amostras positivas pareadas da mãe e do RN, totalizando dez amostras analisadas.
Entre os nove RNs com processos infecciosos causados por S. agalactiae, em cinco foi diagnosticado quadro de sepse neonatal precoce (sendo dois gemelares), um de bacteremia neonatal precoce, um de meningite neonatal associada a sepse precoce e dois de infecção tardia (um de conjuntivite purulenta e outro de sepse e pneumonia). Das amostras, apenas seis estavam disponíveis para estudos moleculares.
A triagem inicial por PCR de espécie S. agalactiae confirmou as sete amostras selecionadas (seis de RN e uma de mãe). O PCR dos sorotipos das seis amostras de RNs revelou a participação dos tipos Ia, III e V, com dois casos cada um. Na única amostra pareada mãe-RN, que eram casos de bacteremia sem evolução para sepse, o subtipo III foi encontrado nas duas amostras de sangue. Os demais sorotipos não foram encontrados e nenhuma amostra deixou de ter o sorotipo identificado pelos primers utilizados.
Dos nove RNs com amostras positivas para S. agalactiae, quatro evoluíram para óbito, sendo dois casos de gemelares com diagnóstico de sepse neonatal. Destes quatro, apenas um foi submetido ao PCR e teve identificação do sorotipo V. Entre os cinco que sobreviveram, um apresentou meningite neonatal causada pelo sorotipo III e na evolução clínica foram detectadas sequelas neurológicas caracterizadas por atrofia cerebral fronto-parietal, com crises convulsivas e atraso no desenvolvimento motor. Nos outros quatro casos de sepse e um de conjuntivite, os RNs não tiveram sequelas. Todas as mães também tiveram alta sem complicações.
Das oito parturientes (uma com gemelares), cujos nove RNs apresentaram infecção por S. agalactiae, cinco foram acompanhadas em Centro de Saúde, sendo que três fizeram cultura reto-vaginal para S. agalactiae e tiveram resultado negativo. A mãe dos gemelares não fez cultura por ser prematuro. Das três parturientes acompanhadas pelo CAISM, duas eram casos de trabalho de parto prematuro e uma não fez pré-natal.
A taxa de doença de início precoce por EGB foi 0,51 casos/1 mil nascidos vivos e a letalidade no período, 44,4%. Quando considerados também os dois casos de infecção de início tardio, a taxa foi de 0,65 casos/1 mil nascidos vivos (Tabela 1).
Discussão
A triagem com exame reto-vaginal para pesquisa de S. agalactiae, entre a 35ª e 37ª semana de gestação, seguida de tratamento profilático das gestantes colonizadas, aplicado na rotina do CAISM desde janeiro de 2007, mostrou-se pertinente e efetiva. O número de amostras reduzido pode ser atribuído à eficiência deste programa. A técnica de PCR foi útil e de elevada especificidade.
Tais protocolos seguem orientações do Centro de Controle de Doenças (CDC)4,6 e do Projeto Diretrizes da Associação Médica Brasileira sobre Rotura Prematura das Membranas, de 200824. A conduta baseia-se na estimativa de risco 25 vezes maior de uma grávida colonizada por EGB ter parto de RN com doença de início precoce, comparada com uma gestante com cultura negativa no pré-natal4-7,25. Nos Estados Unidos, a taxa alcançou patamar de aproximadamente 0,5 casos por 1 mil nascidos vivos4, e, mais recentemente, 0,3 a 0,4 casos por 1 mil nascidos vivos, graças à estratégia de prevenção que incluiu a triagem universal em 20026. No CAISM, encontramos uma taxa semelhante, de 0,51 casos por 1 mil nascidos vivos, para o período de 2007 a 2011, após o início do monitoramento vaginal/retal de gestantes. Segundo dados disponíveis de período anterior (1996 a 2006), a taxa estimada era de 0,8 casos por 1 mil nascidos vivos (dados não publicados - Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do CAISM).
Devemos considerar que a reduzida casuística pode ser atribuída aos resultados positivos alcançados pelas medidas de prevenção adotadas. Os recursos laboratoriais tradicionais utilizados para isolamento e identificação de EGB, associados ao caldo seletivo Todd-Hewitt, com ou sem o uso de meios cromogênicos, o adequado treinamento do pessoal técnico e o reconhecimento da sua importância clínica permitem a adequada caracterização e estiveram presentes em nosso estudo4. Por outro lado, possíveis problemas com a coleta ou técnica de isolamento e identificação podem justificar os três casos seguidos em Centros de Saúde que tiveram amostras reto-vaginais colhidas e resultados negativos e apresentaram sepse neonatal precoce (dois casos) e bacteremia (um caso), mostrando as limitações possíveis da triagem e a consequente falha na profilaxia. Um caso seguido em Centro de Saúde foi um parto prematuro gemelar, não tendo sido colhida a cultura; outro caso não fez pré-natal. Nos três atendimentos de pré-natal no CAISM, as amostras não foram colhidas, pois se encontravam antes da 35ª semana de gestação.
Não se pode afastar a possibilidade de transmissão hospitalar do S. agalactiae nos dois casos de início tardio, que ocorreram em 2011, no CAISM, com dois meses de intervalo e o mesmo sorotipo Ia.
Fatores como tratamento prévio com antimicrobianos, ausência de coleta de material para diagnóstico ou menor sensibilidade da hemocultura para casos com baixa bacteremia poderiam ter dificultado um número maior de isolamentos de casos de infecção por S. agalactiae. Novos recursos moleculares para detecção do S. agalactiae diretamente em amostras de sangue estão sendo utilizados, alguns automatizados, que, além de mais sensíveis, rápidos e padronizados, poderão superar algumas destas limitações e serem úteis para fins clínicos e epidemiológicos23,26.
Quanto à prevalência dos sorotipos Ia, III e V em nosso estudo, condizem com os achados em outros países em amostras reto-vaginais2,4,7,27-36, sendo exceção o Japão, onde predominam o VI e VIII37. Estes sorotipos, por nós encontrados, também estão relacionados à maior virulência e, portanto, associados à maioria das infecções neonatais, maternas e em outras populações1-4,9.
Os dados sobre os sorotipos mais prevalentes no Brasil são poucos, todos obtidos pela técnica de imunodifusão, em diferentes períodos e com resultados distintos do padrão internacional. No Rio de Janeiro, em 1982, os mais frequentes foram Ib e Ia38. Em Florianópolis, em 1986, o II e o III39. Um estudo em 2005 encontrou o sorotipo Ib predominante entre gestantes de Jundiaí (SP), seguido pelos sorotipos II e Ia40,41. Mais recentemente, em 2010, um estudo de Curitiba (PR) revelou os tipos Ia e Ib como os mais frequentes em doença de início precoce, e o IV na infecção tardia, com apenas sete casos descritos42. O que chama a atenção é que os sorotipos Ib e II, que predominaram na maioria dos estudos brasileiros, não são considerados de maior virulência. Este fato justifica a ampliação destes estudos de sorotipagem em diferentes situações clínicas para melhor conhecimento de nossa realidade epidemiológica e, eventualmente, da revisão dos conceitos de virulência associados aos sorotipos.
A elevada gravidade da doença pode ser constatada pela também elevada letalidade (44%), especialmente nos casos de instalação precoce, e apesar de imediata introdução de antibioticoterapia específica. Diverge, neste sentido, o quadro apresentado de bacteremia transitória num caso envolvendo mãe e RN, pois apesar de apresentarem um episódio febril, que indicou a coleta de hemoculturas, tomou-se a conduta de não usar antibiótico pelo fato de estarem bem e afebris quando o resultado da hemocultura de ambos revelou a presença de S. agalactiae, com boa evolução.
A técnica de PCR demonstrou-se útil na caracterização dos sorotipos de S. agalactiae pela excelente especificidade e relativa facilidade de execução em relação à técnica sorológica, cuja limitação é a dificuldade na obtenção dos soros específicos. Trabalhos semelhantes com técnicas padronizadas e reprodutíveis de PCR poderão contribuir para um melhor delineamento do perfil de sorotipos prevalentes nas diferentes regiões brasileiras, assim como mais conhecimentos sobre a importância clínica do EGB e do impacto das medidas atualmente preconizadas para a sua prevenção.
Agradecimentos
Aos funcionários do Laboratório de Microbiologia do Hospital de Clínicas da UNICAMP e aos funcionários do LMHC, em especial à bióloga Eni Dagnon, e ao LGHM da FCM da UNICAMP.
Apoio FAEPEX - FCM-UNICAMP convênio 519.292 - 837/07.
Recebido: 15/07/2011
Aceito com modificações: 28/08/2012
Conflito de interesses: não há.
Trabalho realizado na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - Campinas (SP), Brasil.