DOI: S0100-7203(12)03400206 - volume 34 - Fevereiro 2012
Ana Gabriela Pontes, Marta Francis Benevides Rehme, Anice Maria Vieira de Camargo Martins, Maria Thereza Albuquerque Barbosa Cabral Micussi, Técia Maria de Oliveira Maranhão, Walkyria de Paula Pimenta, Anaglória Pontes
Introdução
A síndrome dos ovários policísticos (SOP) é considerada a endocrinopatia mais comum durante a vida reprodutiva da mulher, com prevalência que varia entre 5 a 10% das mulheres em idade fértil1. É caracterizada por anovulação crônica e hiperandrogenismo, apresentando fisiopatogenia complexa de caráter multifatorial2,3. Vários estudos confirmam a hipótese de que a resistência à insulina (RI) e a hiperinsulinemia desenvolvem papel patogênico na SOPe parece ser um importante marcador de doença metabólica, com risco cardiovascular2,3.
Os mecanismos envolvidos na RI são complexos, com contribuições genética e ambiental. As anormalidades no metabolismo da insulina identificadas na SOP são específicas e incluem redução na secreção, excreção hepática e na sinalização dos receptores de insulina4. A RI pode ser definida como um estado metabólico, no qual o mecanismo de homeostase da glicose normal falha em funcionar de forma adequada4.
Em 1980, Burghen, Givens e Kitabchi5 descreveram pela primeira vez a relação entre RI e SOP, e estudos posteriores demonstraram que a RI é uma característica da SOP com frequência estimada de 50 a 90%4,6-8. Também demonstraram que a presença de RI ocorre independente do índice de massa corpórea (IMC)9-12.
A frequência da RI varia de acordo com a população analisada, na SOP, apresenta valores superiores aos da população em geral6,7,9. A prevalência da RI variou de 64% em americanas7 a 79,2%, em italianas6. No Brasil, a prevalência da RI observada em mulheres com SOP variou de 33,0 a 70,5%, de acordo com o método de avaliação à insulina utilizada8,13.
Embora o método considerado padrão-ouro para a avaliação da sensibilidade à insulina seja o clamp euglicêmico hiperinsulinêmico, este é muito invasivo, complexo, demorado e dispendioso, não sendo viável para aplicação na prática clínica14. Métodos indiretos de investigação de RI têm sido utilizados para rotina, devido à facilidade de realização e menor custo15. São eles: índice de sensibilidade à insulina (ISI), descrito por Matsuda e DeFronzo16 (que utiliza o teste de tolerância à glicose oral); insulinemia de jejum; relação glicemia/insulinemia de jejum; HOMA-IR (homeostasis model assessment for insulin resistance) e QUICKI (quantitative insulin sensitivity check index), que são baseados na glicemia e/ou insulinemia de jejum. Portanto, o objetivo do presente estudo foi analisar a prevalência da RI de acordo com as diferentes medidas antropométricas e bioquímicas em mulheres com SOP.
Métodos
Foram incluídas, retrospectivamente, 189 pacientes com o diagnóstico de SOP, acompanhadas no Ambulatório de Ginecologia Endócrina do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, no período de 1997 a 2007. Foram incluídas mulheres com idades compreendidas entre 16 a 40 anos e diagnosticadas com SOP, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Consenso de Rotterdam17. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, em 01 de março de 2004.
Foram excluídas: pacientes com intolerância à glicose (IG); diabéticas; que apresentassem outras doenças, que cursavam com anovulação crônica e/ou hiperandrogenismo (hiperprolactinemia, distúrbios da tireoide, hiperplasia adrenal congênita de início tardio, Síndrome de Cushing e tumores produtores de androgênios de origem adrenal ou ovariana); e as que estivessem em uso de qualquer medicação que interferisse no eixo hipotálamo-hipófise-ovário há menos de 90 dias.
Foram analisados: o padrão menstrual, no qual a amenorreia foi definida por ausência de menstruação por, no mínimo, 3 meses, e a oligomenorreia por menstruações com intervalos maiores que 35 e inferiores a 90 dias; o Índice de Ferriman-Gallwey modificado18 (considerada hirsuta quando o somatório das áreas fosse maior ou igual a 8); acantosis nigricans foi pesquisada em regiões de dobras como a nuca, axila, região inframamária e raiz de coxas19 e acne classificada em três graus20. A circunferência da cintura foi obtida considerando como medida da cintura a menor circunferência entre o rebordo costal e a crista ilíaca, com limite de corte de 88 cm21. O IMC foi calculado por meio do índice de Quetelet22, cujo valor é obtido pela razão peso e estatura2, considerando-se peso normal se os valores estivessem entre 18,5 e 24,9, sobrepeso entre 25,01 e 29,9 e obesidade acima de 30 kg/m2. A pressão arterial foi aferida utilizando a técnica recomendada por Perloff et al.23. Foram diagnosticadas como hipertensas as pacientes que apresentaram pressão arterial sistólica maior ou igual a 130 mmHg e/ou pressão arterial diastólica igual ou superior a 85 mmHg, ou as que estivessem em uso de anti-hipertensivos24.
Os valores de testosterona total plasmática foram obtidos pelo método de quimioluminescência no equipamento Immulite 2000 (Diagnostic Products Corporation - Los Angeles CA, EUA) e com valor de normalidade de até 80 ng/dL.
O teste de tolerância à glicose oral (TTGO) foi realizado administrando-se 75 g de glicose anidra, sem restrição calórica, por via oral, dissolvida em 300 mL de água, entre 8 e 9 horas da manhã, após jejum noturno de 12 horas. O líquido foi ingerido em um tempo máximo de cinco minutos. Amostras de sangue para dosagem de glicemia e insulina foram obtidas, imediatamente, antes e após 30, 60, 90 e 120 minutos de ingestão de glicose por via oral. A concentração plasmática de glicose foi determinada pelo teste enzimático calorimétrico da glicose - oxidase no equipamento Vitrus, modelo 950, e o resultado expresso em mg/dL. A insulina foi dosada pelo método de quimioluminescência no aparelho Immulite 2000, em valores expressos em µUI/mL.
Foram realizadas dosagens do colesterol total, HDL-colesterol, LDL-colesterol e triglicerídeos, utilizando-se o método de química seca, no equipamento Vitrus, modelo 950, da marca Johnson e Johnson. Considerou-se como valores normais, colesterol total igual ou abaixo a 200 mg/dL, HDL-colesterol maior ou igual a 50 mg/dL,
LDL-colesterol abaixo de 100 mg/dL e triglicerídeos abaixo de 150 mg/dL24.
Para diagnóstico da RI, foram utilizadas a insulinemia de jejum, relação glicemia de jejum/insulinemia de jejum, índice de HOMA-IR, QUICKI e ISI. Considerou-se RI quando a insulinemia basal era superior a 12 µIU/mL6, e a relação glicemia de jejum/insulinemia de jejum apresentou valores inferiores a 6,4 µIU/mL6.
O índice de HOMA-IR foi calculado pelo modelo matemático descrito por Matthews et al.25, aplicando-se a seguinte equação: HOMA-IR=glicemia de jejum (mg/dL) versus insulina (µIU/mL)/405. A RI foi considerada quando os valores de HOMA-IR foram maiores que 2,71, de acordo com a distribuição de valores para a população brasileira normal26. O índice de QUICKI foi determinado pela fórmula: QUICKI=1/ (log insulina(µIU/mL)+log glicemia (mg/dL). Considerou-se RI aqueles valores inferiores a 0,336. O ISI foi obtido pela equação expressa da divisão de 10.000 pela raiz quadrada do produto da glicemia e insulina de jejum, multiplicado pelo produto das médias da glicemia e insulina nos tempos 0, 30, 60, 90, e 120 minutos. A RI foi considerada quando os valores do ISI foram menores que 4,7516.
Utilizando uma medida antropométrica (circunferência da cintura) e outra bioquímica (concentração de triglicerídeos), avaliou-se o lipid accumulation product (LAP). Sua determinação em mulheres é dada pela seguinte equação: (circunferência da cintura [cm] - 58) x (triglicerídeos [mmol/L])3,com o objetivo de rastrear os riscos de RI, doença cardiovasculares e diabetes melito do tipo 227.
Para a análise dos resultados, foram utilizadas as médias, o desvio padrão e as frequências. Para as variáveis quantitativas, foi utilizada a análise de variância, seguida do método de Tukey. A correlação de Pearson foi utilizada para relacionar a RI com IMC e o LAP. O nível de significância, adotado nos procedimentos estatísticos, foi de 95% de confiança. A análise estatística foi feita utilizando o programa Statistical Analysis System (SAS), for Windows, versão 9.1.3. (SAS, Inc. North-Caroline-Cary).
Resultados
As características clínicas e bioquímicas das pacientes estudadas podem ser visualizadas na Tabela 1. Em relação ao padrão menstrual, 77,8% apresentaram amenorreia, 20,1% oligomenorreia e 2,1% ciclo menstrual normal. O hirsutismo esteve presente em 72% das pacientes, a acantosis nigricans em 44,7% e a acne em 38,8%. A hiperandrogenemia ocorreu em 65% das pacientes.
A frequência de RI variou de 42 a 56,4%, de acordo com os diferentes métodos utilizados. O ISI foi o método que mais detectou a RI entre as pacientes (56,4%), seguido da insulinemia de jejum (49,6%), QUICKI e HOMA-IR (46,3%) e a relação glicemia e insulinemia de jejum (42%), como pode ser visto na Tabela 2.
A prevalência de RI nas mulheres com SOP, de acordo com o IMC, pode ser visualizada na Tabela 3. A prevalência de RI nas pacientes obesas foi significativamente maior quando comparada com as com sobrepeso e peso normal.
Dentre os métodos de detecção de RI, somente a relação glicemia/insulinemia de jejum e o ISI apresentaram correlação forte com o LAP. A relação glicemia/insulinemia de jejum também apresentou correlação forte com a circunferência da cintura. O IMC apresentou correlação significativa com os métodos de avaliação indireta da RI (Tabela 4).
Discussão
Os resultados do presente estudo confirmam que a SOP é um distúrbio heterogêneo, com ampla variabilidade clínica e bioquímica e que acomete mulheres em idade reprodutiva6,28. As pacientes apresentaram média etária de 24,9±5,2 anos com IMC de 31,8±7,6 kg/m2, ou seja, muito jovens, como nos estudos prévios que avaliaram a RI na SOP6-8,11,13,29,30.
A obesidade isoladamente é caracterizada como um fator de risco para o desenvolvimento da RI. Dunaif31, estudando a sensibilidade e a RI em portadoras da SOP, tanto entre as com peso normal quanto nas obesas, decorre de um defeito intrínseco do receptor insulínico, caracterizado pelo aumento da fosforilação da serina31. O agravamento da RI pela obesidade é explicável pelo fato de o tecido adiposo ser um órgão endócrino capaz de secretar diversas substâncias que interferem no metabolismo dos carboidratos e lipídios. A coexistência da SOP com a obesidade exerce um efeito sinérgico e deletério sobre o metabolismo da glicose29-31.
Neste estudo foi verificada uma prevalência de RI que variou entre 42 a 56,4%, utilizando-se cinco critérios para estimar a sensibilidade à insulina e baseados nos pontos de corte utilizados por Carmina e Lobo6 para a insulinemia de jejum, relação glicemia de jejum/insulinemia de jejum, QUICKI e ISI e, por Geloneze et al.26, para o HOMA-IR. Os resultados mostram que os cinco critérios utilizados, com maior ou menor acurácia, possibilitam confirmar que a RI é comum em pacientes com SOP. Todavia, ao se correlacionar a RI de acordo com o IMC, observou-se que a frequência de RI aumenta progressivamente com o IMC.
O ISI foi o que mais detectou RI (27% entre as com peso normal, 57% entre as com sobrepeso e 87% entre as obesas com SOP). Esse índice é o que melhor representa o padrão de sensibilidade hepática e periférica à insulina, dentre os métodos utilizados, e mostra boa correlação com a técnica do clamp euglicêmico por realizar várias medidas e não apenas uma de jejum, as quais podem levar a resultados falso-negativos16.
Mulheres obesas com SOP foram as que apresentaram maior RI, independente do método utilizado, com uma variação de 69% pela relação glicemia e insulinemia de jejum a 87% pelo ISI. É importante salientar que a RI detectada pelo HOMA-IR e QUICKI apresentou o mesmo percentual. Neste estudo, mostrou-se que ambos os métodos podem ser utilizados indistintamente para avaliação da RI, independente do IMC.
Como neste estudo, Hayashida et al., em 200413, observaram, em 62 pacientes com SOP com média de idade de 25 anos, um aumento significativo na RI com o aumento do IMC e do percentual semelhante de RI detectado pelo HOMA-IR e QUICKI. Em outro estudo8, com 105 mulheres brasileiras com SOP com média etária de 23,8±5,8 anos e média de IMC de 27,8±7,4 kg/m2, observou-se variação na prevalência de RI de 44,8 a 51,4% quando utilizaram, respectivamente, a insulinemia, QUICKI e HOMA-IR. A variação foi de 64,8 a 70,5% quando se utilizou o ISI e a área sob a curva de insulina. Além disso, observou-se boa concordância entre o ISI e os índices de HOMA-IR e QUICKI, reafirmando dados da literatura que consideram estes métodos de avaliação de RI aplicáveis na prática clínica e em estudos populacionais, por serem mais simples e menos dispendiosos14,15,32,33.
Algumas críticas são mencionadas ao HOMA-IR e QUICKI para se avaliar a RI. Tais métodos medem os parâmetros basais de jejum e refletem a sensibilidade à insulina no tecido hepático e, somente indiretamente, nos tecidos periféricos26, embora tenha sido verificada correlação significativa com o clamp euglicêmico hiperinsulinêmico25,34.
Os pontos de corte para o HOMA-IR variam entre os diferentes estudos30,35. Os resultados do presente trabalho utilizaram o valor de corte de 2,71 baseado na população brasileira34, com média de idade de 40±12 anos e IMC 34±10 kg/m2. Deve-se levar em conta também a falta de padronização entre os laboratórios para a dosagem de insulina. No presente estudo, a insulinemia de jejum mostrou uma prevalência semelhante ao QUICKI e HOMA-IR, utilizando-se o ponto de corte de 12 mUI/mL e não o de 20 mUI/mL padronizado para a população americana36.Mesmo a insulinemia de jejum também sendo alvo de várias críticas quanto à interpretação, devido ao fato de ser um método indireto de avaliação da sensibilidade tecidual e apresentar baixas correlações com a ação da insulina in vivo26.
Como o IMC, o LAP também apresenta relação com a RI. É de se esperar que as mulheres com SOP apresentem maior quantidade de gordura abdominal e perfil lipídico desfavorável em relação às hígidas37. Apresentaram, portanto, valores superiores para o LAP. Essa medida representa um importante indicador não só de RI37, mas também de risco cardiovascular, diabetes tipo 2 e mortalidade27. Esses resultados têm particular importância quando se considera que a RI pode ser influenciada por fatores étnicos e raciais e por fatores hormonais e metabólicos, dentre eles a obesidade26,38, sendo este um importante fator para o desencadeamento da RI.
Os resultados do presente estudo, em consonância com a literatura, confirmam que a prevalência de RI varia de acordo com o método utilizado, e embora estes sejam de fácil execução, não existe um método indireto ideal para avaliação da RI. Apesar das limitações, o diagnóstico de RI pode ser o primeiro marcador identificável de risco para doença cardiovascular em pacientes com SOP. Desta forma, mulheres com SOP obesas e com RI devem ser orientadas quanto à perda de peso com reeducação alimentar e exercício físico regular, enquanto que aquelas com peso normal seguem de forma precoce essas orientações quanto aos hábitos de vida saudáveis.
Conflito de interesses: não há.
Recebido 12/12/2011
Aceito com modificações 16/01/2012
Trabalho realizado na Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP - Botucatu (SP), Brasil.