DOI: S0100-7203(12)03400904 - volume 34 - Setembro 2012
Denise Queiroz Ferreira, Mary Uchiyama Nakamura, Eduardo de Souza, Corintio Mariani Neto, Meireluci Costa Ribeiro, Tânia das Graças Mauadie Santana, Carmita Helena Najjar Abdo
Introdução
A mulher vivencia sua sexualidade de forma peculiar nos diversos períodos de sua vida1, especialmente durante a gestação, quando pode ter sua função sexual e qualidade de vida comprometidas. Somente o fato de tomar conhecimento da gravidez, logo nas primeiras semanas, parece afetar a atividade sexual feminina, diminuindo o número de coitos2. Estudos mostram que nos mais diversos contextos socioeconômico e cultural as mulheres podem apresentar dificuldades com desejo, excitação, orgasmo, lubrificação, além de insatisfação sexual e dispareunia na gravidez2-15.
Os sintomas de disfunção sexual nesse período ocorrem mesmo para as gestantes de baixo risco, ou seja, aquelas saudáveis que não apresentam intercorrências clínicas e/ou obstétricas16. No Brasil, dois estudos mostraram que a função sexual de grávidas brasileiras e saudáveis era mais comprometida conforme se aproximava o momento do parto17,18. Também recentemente, foi verificado que a prevalência de sintomas de disfunção sexual feminina era alta tanto em grávidas saudáveis, quanto naquelas com diabetes mellitus gestacional, durante o terceiro trimestre da gestação19,20.
A qualidade de vida também vem sendo estudada em mulheres grávidas. Pesquisadores compararam este aspecto em dois grupos de gestantes turcas saudáveis: adolescentes e adultas. Verificaram que em ambos os grupos, a qualidade de vida diminuía no primeiro trimestre, aumentava no segundo e novamente declinava no último trimestre gestacional21. A qualidade de vida está, ainda, associada a fatores sociodemográficos como idade, nível educacional, planejamento familiar, horas trabalhadas e acompanhamento pré-natal22.
No entanto, apesar da alta prevalência de sintomas de disfunção sexual durante a gestação, bem como o comprometimento da qualidade de vida de mulheres nesse período, não encontramos na literatura estudos que avaliassem a associação entre a qualidade de vida e a função sexual feminina de gestantes.
Também não foi encontrado trabalho utilizando o questionário de qualidade de vida da Organização Mundial da Saúde (OMS), World Health Organization Quality of Life - bref (WHOQOL-bref), em mulheres grávidas. Esta lacuna na literatura nos motivou a pesquisar sobre o tema. Nosso objetivo foi avaliar em gestantes saudáveis, no segundo trimestre, a associação entre função sexual e qualidade de vida, bem como entre função sexual e satisfação sexual.
Métodos
Trata-se de estudo transversal realizado entre janeiro e dezembro de 2010, nos ambulatórios de pré-natal de baixo risco do Departamento de Obstetrícia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (UNIFESP-EPM) e do Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros (HMLMB). Este projeto foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da UNIFESP e HMLMB. Todas as participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Foram incluídas mulheres matriculadas no ambulatório de pré-natal de uma das instituições acima mencionadas, que não apresentavam doenças clínicas e/ou obstétricas e, portanto, consideradas de baixo risco. Os critérios de inclusão foram: idade igual ou superior a 20 anos; ter parceiro fixo com quem coabitavam há pelo menos 6 meses; ter tido relação sexual com penetração vaginal nos últimos 15 dias; saber ler e escrever, estar cursando ou ter estudado no mínimo até o quinto ano do ensino fundamental. As gestantes deveriam estar no segundo trimestre de gestação (entre a 15ª e a 26ª semana). A idade gestacional foi calculada com base na data da última menstruação e ultrassonografia obstétrica precoce. Quando houve discordância entre as datas, a idade gestacional foi considerada pela ultrassonografia.
Foram excluídas mulheres vítimas de violência sexual, quadro de depressão anterior ou atual e história de aborto habitual, ruptura prematura das membranas ovulares, hemorragias na gestação e parto prematuro (de acordo com informações obtidas da gestante ou no prontuário).
As grávidas foram convidadas pela pesquisadora principal (DQF) a participar da pesquisa enquanto aguardavam pela consulta pré-natal. As que aceitaram participar foram direcionadas individualmente a uma sala isolada para que pudessem ter privacidade para responder aos questionários. Após assinarem o termo de consentimento pós-informado, responderam aos formulários de forma individual, escrita e anônima.
Por não haver publicações sobre o tema, foi realizado estudo preliminar (piloto) para determinação do número de casos. Inicialmente foram incluídas 30 mulheres. Como não houve diferença estatística, incluímos mais 21. Portanto, a amostra foi composta de 51 gestantes.
Com o intuito de melhor caracterizar a população estudada, avaliamos as seguintes variáveis socioeconômicas e demográficas: idade em anos; idade gestacional em semanas; escolaridade (Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior); renda mensal familiar (menor que um, de um a três ou superior a três salários-mínimos); religião (católica, evangélica, espírita ou nenhuma); número de filhos vivos anteriores à gestação atual (nenhum, um a três ou mais que três filhos) e tempo de relacionamento com o atual parceiro (menos de três e mais de cinco anos).
A função sexual foi avaliada através do Quociente Sexual - Versão Feminina (QS-F), um questionário brasileiro de fácil manuseio que, por meio de questões, abrange a função sexual feminina. Este instrumento é composto por 10 questões que avaliam cada fase do ciclo de resposta sexual. Contempla ainda outros domínios, a saber: desejo e interesse sexual (questões 1, 2 e 8); preliminares (questão 3); excitação pessoal e sintonia com o parceiro (questões 4 e 5); conforto (questões 6 e 7); orgasmo e satisfação (questões 9 e 10). Consequentemente, o QS-F permite identificar disfunções específicas do desejo, da excitação, do orgasmo, dispareunia ou vaginismo. Cada uma das perguntas oferece alternativas com pontuação que varia de zero a cinco. O desempenho/satisfação sexual global é avaliado pelo escore final computado a partir do cálculo baseado nas dez perguntas individuais e oferece um valor em uma escala que vai de zero (mínimo) até cem (máximo) pontos. O desempenho/satisfação sexual global é calculado multiplicando-se a soma dos valores das 10 questões por 2, e é interpretado da seguinte forma: 82-100 pontos, bom a excelente; 62-80 pontos, regular a bom; 42-60 pontos, desfavorável a regular; 22-40 pontos, ruim a desfavorável e 0-20 pontos, nulo a ruim23.
Para avaliar a qualidade de vida, foi utilizada a versão brasileira do instrumento abreviado de avaliação de qualidade de vida da OMS (WHOQOL-bref). Este questionário é composto por 26 questões, sendo duas delas gerais sobre qualidade de vida e 24 divididas em quatro domínios: físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente. A resposta para cada questão varia em uma escala de zero a cinco pontos, com o cinco representando escore máximo24.
De acordo com os objetivos do nosso trabalho, utilizamos as questões 1 e 21 do questionário WHOQOL-bref. Questão 1 - Como você avaliaria sua qualidade de vida? Com as seguintes opções: muito ruim; ruim; nem ruim nem boa; boa e muito boa. Questão 21- Quão satisfeita você está com a sua vida sexual? Com as seguintes alternativas: muito insatisfeito; insatisfeito; nem satisfeito nem insatisfeito; satisfeito; muito satisfeito24. As gestantes foram orientadas para que tivessem como referência as duas últimas semanas para responder aos questionários.
Para variáveis qualitativas foram utilizados os testes exato de Fisher e do χ2. Quando o teste mostrava haver diferença significante foi complementado pela partição do χ2. Foram considerados estatisticamente significantes os valores de p<0,05 e a análise estatística foi realizada com o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 17.0 para Windows.
Resultados
A idade das participantes variou de 20 a 37 anos, com média de 26,9 anos. A maioria cursou ou estava cursando o Ensino Médio, tinha renda familiar entre um a três salários-mínimos, era católica, primigesta e estava com o mesmo parceiro há menos de três anos. A idade gestacional média quando responderam aos questionários era de 19,7 semanas (Tabela 1).
Avaliamos a função sexual e a qualidade de vida de gestantes saudáveis, no segundo trimestre, medidas respectivamente pelo QS-F e pelo WHOQOL-bref, os quais mostraram que a maioria (64,8%) das gestantes obteve escore final no QS-F classificado como regular a excelente (Tabela 2). Mais da metade das gestantes (58,8%) classificou sua qualidade de vida como boa (Tabela 2) e cerca de um terço (35%) referiu satisfação sexual, enquanto 15,7% afirmou estar sexualmente muito satisfeito (Tabela 3).
Ao comparar o escore final do QS-F e a questão 1 do WHOQOL-bref (p=0,042), verificamos que houve associação entre o resultado do QS-F classificado como "nulo a ruim" com "qualidade de vida ruim", com valor p=0,002 (Tabela 2).
Da mesma forma, ao associar o escore final do QS-F com a questão 21 do WHOQOL-bref (p=0,009), concluímos que os resultados do QS-F classificados como "bom" e "bom a excelente" estão associados a "satisfação" e "muita satisfação sexual", com valor p<0,001 (Tabela 3).
Discussão
Os resultados aqui encontrados confirmam a associação qualidade de vida/função sexual. Observamos que as mulheres que referiram qualidade de vida ruim, também obtiveram escore final no questionário QS-F classificado como ruim. Da mesma forma, os resultados comprovaram que a satisfação sexual associa-se à função sexual, pois as gestantes com escore no QS-F acima do ponto de corte para classificação de risco para disfunção sexual afirmaram estar sexualmente satisfeitas.
Apesar de diversos trabalhos analisarem a função sexual durante a gravidez3,4,7-11,19,25, não encontramos estudos que a correlacionassem com a qualidade de vida em gestantes saudáveis. Sabe-se que a função sexual passa por mudanças na gestação, ocorrendo o aumento de sintomas de disfunção sexual, como a diminuição de desejo e a dispareunia nesse período9,11-13.
Entretanto, o segundo trimestre parece ser o mais favorável quanto a esses aspectos4,14,25. O exemplo disso é que metade das mulheres em nosso estudo referiu satisfação sexual, resultado semelhante ao encontrado em grávidas egípcias15 e nigerianas7 no mesmo período gestacional. Verificamos que aproximadamente 65% das gestantes com o resultado do QS-F classificado de regular a excelente, quando perguntadas se estavam satisfeitas com sua vida sexual, 35% estavam satisfeitas e 16% estavam muito satisfeitas sexualmente. Esse resultado sugere que a satisfação sexual dessas gestantes está associada a uma boa resposta sexual.
A maior parte das mulheres (76%) avaliou sua qualidade de vida como "boa" ou "muito boa", segundo o WHOQOL-bref , semelhante ao verificado em 503 gestantes turcas e saudáveis, que tiveram boa qualidade de vida durante o segundo trimestre gestacional21.
Por outro lado, observamos que as mulheres que avaliaram sua qualidade de vida como "ruim" também referiram função sexual "ruim", o que parece comprovar nossa hipótese inicial de que realmente há associação entre qualidade de vida e função sexual.
Apesar de este estudo ter contado com participantes de um mesmo nível socioeconômico, o que impede que os resultados aqui apresentados sejam ampliados para mulheres de outros contextos culturais ou níveis socioeconômicos, ele apresenta vários pontos positivos. Destacamos, por exemplo, a originalidade do tema, uma vez que não existem estudos anteriores analisando a associação entre função sexual e qualidade de vida em grávidas. Outro ponto forte foi a utilização de dois questionários validados. O questionário QS-F, que é de fácil compreensão e acessa as fases do ciclo de resposta sexual feminina de forma precisa e específica23, assim como o WHOQOL-bref, instrumento mundialmente reconhecido para avaliação da qualidade de vida26.
Finalmente, concluímos que existe associação entre função sexual "ruim" e qualidade de vida "ruim", bem como entre função sexual "regular a boa" e "boa a excelente" com "satisfação" e "muita satisfação sexual".
Agradecimentos
À Dra. Maria Regina Torloni, médica tocoginecologista do Departamento de Obstetrícia da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina - UNIFESP/EPM, pela preciosa contribuição no manuscrito.
Recebido 05/06/2012
Aceito com modificações 24/08/2012
Trabalho realizado no Departamento de Obstetrícia da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina - UNIFESP/EPM - e Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros - São Paulo (SP), Brasil.