DOI: S0100-7203(12)03401102 - volume 34 - Novembro 2012
Gláucia Virgínia de Queiroz Lins Guerra, Alex Sandro Rolland de Souza, Bruna Faria da Costa, Flávia Renata Queiroz do Nascimento, Mariana de Andrade Amaral, Ana Caroline Paz Serafim
Introdução
A infecção urinária caracteriza-se pela presença de agentes infecciosos e invasão dos tecidos urinários, sendo classificada segundo sua localização em infecção urinária baixa e alta. A bacteriúria assintomática é definida como o isolamento de bactérias na urina em quantidade maior ou igual a 105 unidades formadoras de colônias por mililitros (UFC/mL), sem sinais ou sintomas locais ou sistêmicos de infecção1-3. Entre mulheres, gestantes ou não, sua prevalência é de 2 a 10%4, e encontra-se associada ao nível socioeconômico, história de infecção urinária recorrente, diabetes e anormalidades anatômicas do sistema urinário1.
Durante a gravidez, há uma série de alterações fisiológicas no organismo materno que leva a maior predisposição à infecção urinária e suas complicações. A estase urinária secundária, a compressão do ureter pelo útero gravídico e o relaxamento da musculatura por ação da progesterona favorecem o surgimento de bacteriúria, sendo um fator de risco importante para o desenvolvimento de pielonefrite e suas complicações durante a gravidez. Nessas mulheres, quando a bacteriúria, assintomática ou sintomática, não é tratada ou inadequadamente tratada, evolui para pielonefrite em 30% dos casos1,4,5. Estudos sugerem, ainda, que a bacteriúria, assintomática ou sintomática, encontra-se fortemente associada a complicações maternas e fetais, como a rotura prematura de membranas, trabalho de parto prematuro, corioamnionite, baixo peso ao nascer, febre materna e infecção neonatal4,5.
O exame mais utilizado para o diagnóstico de bacteriúria e infecção urinária é o exame simples de urina, também conhecido como sumário de urina e urinálise2,6. Este analisa a urina quanto à cor, densidade, aspecto, presença de leucócitos, bactérias, sangue, glicose, urobilinogênio, bilirrubina, nitrito e sedimentos urinários. Para esse diagnóstico provável, a literatura sugere que a presença de leucócitos, hemácias e nitrito são bons indicativos de bacteriúria ou infecção urinária. Entretanto, esses elementos são apenas sinais indiretos de inflamação, não sendo precisos para o diagnóstico definitivo de bacteriúria significativa. Para a confirmação de infecção urinária exige-se a cultura de urina, na qual o patógeno em crescimento é isolado e quantificado6.
Apesar de a literatura sugerir que o exame simples de urina apresenta um alto valor preditivo negativo, ou seja, quando ausentes sinais sugestivos de infecção urinária, aproximadamente 90% das mulheres encontram-se sem bacteriúria, as sociedades médicas internacionais ainda recomendam a realização da cultura de urina de rotina no rastreamento pré-natal da infecção urinária2,6-8.
Porém, diferentemente do exame simples de urina, que é de baixo custo, fácil acesso e realização, a urocultura não é disponibilizada de rotina na grande maioria dos serviços de pré-natal2. Assim, é importante haver estudos sobre a validação diagnóstica do exame simples de urina comparada à urocultura para reforçar o uso do melhor teste diagnóstico na rotina de pré-natal, visto que a bacteriúria, mesmo assintomática, quando não tratada de forma adequada poderá trazer grandes prejuízos para o binômio mãe e feto.
Métodos
Realizou-se um estudo analítico, prospectivo, do tipo transversal, envolvendo 164 gestantes admitidas na enfermaria de Gestação de Alto Risco do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP), localizado em Recife, Pernambuco, Brasil, no período de janeiro a junho de 2011.
Foram incluídas as gestantes internadas na enfermaria de gestação de alto risco por motivos diversos, independentemente de apresentarem queixas urinárias. As pacientes em uso de antibiótico e/ou que o utilizaram nos últimos dez dias foram excluídas.
Todas as gestantes foram abordadas e esclarecidas quanto aos objetivos da pesquisa, sendo incluídas apenas após concordarem em participar e assinar o termo de consentimento livre e esclarecido. O estudo teve início apenas após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa em seres humanos do IMIP (CEP nº. 1.889-20, de outubro de 2010), sendo conduzida de acordo com a Declaração de Helsinque revisada em 2008.
O cálculo do tamanho amostral foi realizado utilizando o software Statcalc do Epi-info versão 3.5.1, prevendo-se uma frequência de bacteriúria assintomática de 10%2, com precisão de 30% e intervalo de confiança de 80% Encontrou-se um número de 164 participantes; prevendo-se eventuais perdas, optou-se por incluir no estudo 180 gestantes.
Assim, durante o estudo, foram candidatas à participação 211 gestantes, sendo 31 excluídas por uso de antibióticos no momento da admissão ou até 10 dias antes, e 16 foram perdidas por ausência de resultado de um dos exames após inclusão no estudo. Portanto, foram avaliadas 164 gestantes com idade entre 14 e 46 anos (27,9±7,5 anos) e idade gestacional variando entre 12 a 39 semanas (30,0±5,9 semanas) (Tabela 1).
A mediana da paridade foi um, e a de número de abortos anteriores foi zero, com 41,5% de mulheres nulíparas. A maioria das gestantes era proveniente do Recife e região metropolitana (53,7%), sendo as demais do interior do Estado de Pernambuco e de outros Estados, 40,9 e 5,5%, respectivamente. Em relação ao estado civil, 73,7% tinham companheiro, 22,6% eram solteiras e 3,7% divorciadas. Os principais motivos da internação foram síndrome hipertensiva, diabetes e trabalho de parto prematuro (Tabela 1).
Para todas as participantes foram solicitados exames de urina simples, urocultura e aplicado um instrumento de coleta de dados no momento da admissão com as seguintes variáveis: idade, estado civil, procedência, paridade, idade gestacional, motivo da internação, presença de sinais e sintomas atuais de infecção urinária e resultado dos exames realizados.
O exame simples da urina foi realizado utilizando o aparelho Uriscan Pró II (Coreia) do laboratório de urinálise do IMIP e a análise foi automatizada. Avaliou-se a presença de nitrito, piócitos, hemácias (cinco ou mais hemácias por campo) e células epiteliais. Para o diagnóstico de bacteriúria/infecção urinária considerou-se como critério a presença de mais que quatro piócitos por campo e/ou nitrito positivo3.
A cultura de urina para isolamento e quantificação de microrganismos foi realizada no laboratório central de microbiologia do IMIP, conforme rotina estabelecida, segundo técnica de disco-difusão7. Considerou-se bacteriúria/infecção urinária quando a urocultura evidenciou mais que 105 bactérias por colônia3,7.
A coleta da urina pela paciente foi realizada após instruções dadas pelos profissionais de saúde da enfermaria (técnicos de enfermagem ou enfermeiros). Colheu-se para o exame o jato intermediário da primeira urina do dia, após a realização de assepsia. O exame simples de urina e a urocultura foram realizados por profissionais do laboratório da instituição sem o conhecimento prévio do estudo ou da realização de ambos os exames.
A sintomatologia referida pela paciente foi definida como a presença de qualquer um dos sinais e sintomas, como disúria (dor ou ardor durante a micção), alteração do odor da urina, polaciúria (aumento na frequência urinária), hematúria (presença de sangue), febre (temperatura axilar maior que 37,5ºC) e dor lombar.
A analise estatística foi feita pelo programa Epi-Info versão 3.5.3 e Open-Epi versão 2.2. Para descrever as características da amostra foram utilizadas medidas de tendência central, dispersão e distribuição de frequências. Para validar o diagnóstico de bacteriúria/infecção urinária pelo exame simples de urina, foi determinada a acurácia (A), sensibilidade (S), especificidade (E), valor preditivo positivo (VPP) e negativo (VPN), razão de verossimilhança positiva e negativa e seus respectivos intervalos de confiança a 95% (IC95%).
Utilizou-se ainda o índice de Kappa (K) para se determinar a concordância entre os exames simples de urina e a urocultura, sendo considerada concordância ruim quando igual a 0,00; fraca, de 0,01 a 0,20; sofrível de 0,21 a 0,40; regular de 0,41 a 0,60; boa de 0,61 a 0,80; ótima de 0,81 a 0,99; e perfeita quando igual a 1,008,9.
Resultados
Quando se considerou o critério diagnóstico de bacteriúria/infecção urinária apenas pela presença de mais que quatro piócitos por campo, o exame de urina simples foi considerado sugestivo de infecção em 72 mulheres (43,9%), das quais 63 (87,5%) eram assintomáticas. Porém, considerando a presença de piócitos e nitritros a bacteriúria/infecção urinária foi sugestiva em apenas seis gestantes (3,6%), sendo três (50,0%) assintomáticas. Destaca-se que todas as gestantes com nitrito positivo apresentavam quatro ou mais piócitos por campo.
Na urocultura, o exame foi positivo em 32 participantes (19,5%) e apenas 7 (21,9%) eram sintomáticas. O agente etiológico de maior frequência foi Escherichia coli, responsável por 28% das infecções, seguido de Klebsiella pneumoniae, Staphylococcus coagulase negativa e Streptococcus beta hemolítico, com 18,7, 18,7 e 15,6%, respectivamente.
A presença de um ou mais sintomas foi relatado por 22 gestantes (13,4%). Os sintomas mais frequentes foram disúria (n=11; 6,7%), polaciúria (n=9; 5,5%), hematúria (n=8; 4,9%), dor lombar (n=7; 4,3%), febre (n=5; 3,0%) e odor forte (n=2; 1,2%).
Quando o exame simples de urina foi sugestivo de infecção, utilizando como critério apenas a presença de piócitos, em 27,8% das pacientes a urocultura foi positiva. Quando o exame simples de urina foi normal, em 87,0% das vezes a urocultura foi negativa. Assim, observou-se um índice de Kappa de 0,16 (IC95% 0,03 - 0,3), com acurácia de 61,0% (IC95% 53,3 - 68,1), sensibilidade de 62,5% (IC95% 45,2 - 77,1), especificidade de 60,6% (IC95% 52,1 - 68,5), valor preditivo positivo 27,8% (IC95% 18,8 - 39,0), valor preditivo negativo de 87,0% (IC95% 78,6 - 92,4), razão de verossimilhança positiva de 1,6 (IC95% 1,4 - 1,7) e razão de verossimilhança negativa de 0,6 (IC95% 0,5 - 0,7) (Tabela 2).
Quando se analisou a presença de piócitos associada à presença de nitrito o índice de Kappa foi de 0,16 (IC95% 0,05 - 0,3), com acurácia de 81,7% (IC95% 53,3 - 68,1), sensibilidade de 12,5% (IC95% 5,0 - 28,1), especificidade de 98,5% (IC95% 94,6 - 99,6), valor preditivo positivo 66,8% (IC95% 30,0 - 90,3), valor preditivo negativo de 82,3% (IC95% 75,6 - 87,4), razão de verossimilhança positiva de 8,2 (IC95% 0,1 - 678,7) e razão de verossimilhança negativa de 0,9 (IC95% 0,8 - 0,9) (Tabela 2).
Discussão
Em nossa pesquisa, analisamos a acurácia do exame de urina simples no diagnóstico de infecção urinária a partir de amostra representativa de gestantes atendidas em uma enfermaria de gestação de alto risco. As sociedades médicas americanas recomendam a realização de rotina da urocultura para o rastreio de bacteriúria assintomática durante a gestação10,11. O Ministério da Saúde do Brasil indica que a urocultura seja reservada quando o exame simples de urina sugira infecção do trato urinário ou quando o médico julgar necessário12.
O American College of Obstetrics and Gynecology recomenda que a cultura de urina seja realizada na primeira consulta pré-natal e repetida no 3º trimestre de gravidez10, enquanto, a recomendação do U.S. Preventive Services Task Force é que a urocultura seja realizada entre a 12ª e 16ª semanas de gestação11.
As dúvidas em relação ao exame de rastreamento de infecção urinária ou bacteriúria assintomática10-12 e a maior frequência dessas entidades clínicas em gestações de alto risco motivaram a realização dessa pesquisa nesse grupo de mulheres13,14. De forma semelhante a outros estudos nos quais se incluíram gestantes de alto risco15,16, as mulheres investigadas em nossa pesquisa eram jovens, apresentando média de idade de 27,9 anos, 41,4% delas eram primíparas e 27,4% declaravam antecedente de pelo menos um aborto. A maioria provinha do Recife e região metropolitana e viviam com companheiro.
Síndromes hipertensivas, diabetes, trabalho de parto prematuro e rotura prematura das membranas foram os principais diagnósticos. Tais frequências estão de acordo com estudos realizados em enfermarias de gestação de alto risco15, da mesma forma que o principal diagnóstico na internação foi a hipertensão durante a gravidez, provavelmente porque as síndromes hipertensivas são bastante frequentes em nosso meio15,16.
Diabetes, trabalho de parto prematuro e rotura prematura das membranas, além de serem importantes causas de internação pré-natal, também estão associadas à bacteriúria/infecção urinária sintomática ou não1. Estudos sugerem uma associação significativa de causa e efeito da bacteríuria/infecção e o parto prematuro e rotura prematura das membranas17,18. Por seu lado, o diabetes está associado à instalação de processos infecciosos, particularmente a bacteriúria/infecção urinária19.
Em nosso estudo a cultura de urina foi positiva em 19,5% das pacientes. Resultados esses semelhantes à maioria dos estudos2,14,20. Da mesma forma, o agente etiológico mais frequente foi a Escherichia coli, quando comparado a outros estudos2,21,22. Porém a frequência de Escherichia coli foi aproximadamente 28%, menor que a encontrada em outros2,22. Pode-se atribuir a esse fato a diferença das populações incluídas nos estudos:.este em ambiente hospitalar, e os outros em ambiente ambulatorial. Além disso, vários estudos vêm descrevendo a mudança do perfil etiológico dessa infecção. Estudo realizado no próprio IMIP descreveu um aumento na frequência de Klebsiela sp. em mulheres internadas não gestantes7. Tal fato também pode estar ocorrendo entre as gestantes.
Em relação aos sinais e sintomas relativos à infecção urinária, referidos pelas gestantes, constatamos que apenas 21,9% das gestantes com urocultura positiva apresentaram algum tipo de sintomatologia. Porém, analisar sinais e sintomas de infecção do trato urinário (ITU) durante a gestação é por vezes difícil para o profissional de saúde assistente, já que muitos deles são habitualmente referidos pelas gestantes, não caracterizando ITU20. Um estudo observou que, das 232 mulheres incluídas, 46,5% relataram sintomas urinários, porém apenas 10 (4,3%) apresentaram crescimento bacteriano na cultura de urina. Assim, na maioria das mulheres os sintomas foram atribuídos a mudanças fisiológicas induzidas no sistema urinário durante a gravidez21. Em relação à maior frequência de infecção urinária sintomática em nosso estudo, podemos justificar pela amostra de gestantes de alto risco e devido à metodologia dos estudos ser diferente.
De forma semelhante a outros autores, os sintomas mais referidos pelas pacientes foram a disúria e polaciúria21. Porém, a completa ausência de sintomas não descarta a presença de bacteriúria e, consequentemente, os riscos dela decorrentes21,23. Assim, destacamos a importância da realização do diagnóstico de bacteriúria/infecção urinária independente da presença ou ausência de sintomas durante a gravidez, desencorajando o início do tratamento apenas baseado na sintomatologia clínica.
A bacteriúria assintomática pode evoluir para pielonefrite em 25 a 40% dos casos, se a paciente não for tratada13,23. Das 164 gestantes analisadas no presente estudo, a frequência de bacteriúria assintomática foi de 15,2%, estando acima da referida na literatura14,21,23. Isso pode ser explicado pela população do nosso estudo - mulheres internadas no setor de gestação de alto risco.
Sabendo-se do risco aumentado para o desenvolvimento de ITU na gestação, da possibilidade de ocorrência de bacteriúria assintomática e das possíveis complicações maternas e perinatais, alguns pesquisadores apontam como inquestionável a necessidade de realização de urocultura, rotineiramente, no início da gestação10,11. Entretanto, a urocultura exige laboratórios e profissionais especializados, sendo sua realização difícil em alguns dos serviços de pré-natal do Brasil, particularmente nas regiões menos desenvolvidas e nas Unidades Básicas de Saúde.
Um estudo realizado na Índia afirma que a urocultura pode ser solicitada apenas quando o exame simples de urina estiver alterado2, que está de acordo com o resultado encontrado em nossa população. Observamos que, quando o exame simples de urina foi normal (utilizando apenas o critério de piócitos), apenas em 13% a cultura de urina foi discordante - isto é, positiva - resultando em um valor preditivo negativo para o exame simples de urina de 86,9%. Porém, é importante destacar que, quando acrescentamos à presença de nitritos como critério diagnóstico, a especificidade do exame simples de urina aumenta de 62,5 para 98,5%, mantendo o valor preditivo negativo semelhante. Vários estudos encontraram resultados semelhantes ao nosso: alto valor preditivo negativo, uma boa especificidade, porém baixa sensibilidade, e baixo valor preditivo positivo2,14,20,24,25.
Assim, após analisar o valor preditivo positivo e o valor preditivo negativo do exame simples de urina, concluiu-se que na presença de alteração do exame não necessariamente está em curso uma infecção urinária, sendo necessária a realização da urocultura. Quando o exame simples de urina for normal, o resultado dessa pesquisa indicou que em 87% das vezes a urocultura pode ser dispensada. Assim, nossos dados sugerem que em locais onde há impossibilidade de realização da urocultura, o exame simples de urina pode ser utilizado como rastreio de infecção urinária.
Recebido 03/08/2012
Aceito com modificações 12/09/2012
Conflito de interesses: não há.
Centro de Atenção à Mulher do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira - IMIP - Recife (PE), Brasil.
Fonte de financiamento: Bolsistas do Programa Institucional de Iniciação Científica (PIBIC) do CNPq e IMIP.