DOI: S0100-7203(12)03401104 - volume 34 - Novembro 2012
Danielle Albuquerque Pires Rocha, Josiane Montanho Mariño, Cristina Maria Borborema do Santos
Introdução
Os herpesvírus formam um grupo de vírus de genoma grande, sendo alguns deles patogênicos em seres humanos. Todos os herpesvírus estudados apresentam uma marcante característica comum: o estabelecimento de um período de latência após uma fase de replicação lítica ativa. Durante o ciclo infeccioso, a maioria dos genes virais é expressa resultando em uma grande disseminação viral. Em contraste, a expressão gênica viral é largamente reprimida durante a fase de latência, e partículas virais não são formadas. Dentre os herpesvírus patogênicos em humanos, o Citomegalovírus Humano (HCMV) e o Herpesvírus Simples tipo 2 (HSV-2) são dois importantes vírus transmissíveis por via sexual1-4.
O herpes genital pode ser causado pelos HSV-1 e HSV-2, porém a infecção pelo HSV-2 é mais comum, mais grave e mais propensa às recorrências. A transmissão sexual do HSV-2 depende de contato íntimo entre um indivíduo susceptível e um indivíduo excretando vírus ativamente. O vírus deve entrar em contato com as superfícies mucosas para que a infecção seja iniciada. Após a infecção, o vírus replica-se na região genital, perigenital ou anal, colonizando o gânglio sacral. A seguir, os vírus migram pelos axônios até os gânglios sensitivos regionais (neurovirulência), onde permanecem em latência, em uma forma não infecciosa, em equilíbrio com a célula hospedeira, porém, com reativação periódica e liberação do vírus infeccioso3,5,6.
Uma grave consequência da infecção por HSV-2 é a transmissão para o feto ou recém-nascido. A infecção fetal intrauterina ocorre como consequência de infecções transplacentárias ou infecção ascendente e acontece em cerca de 10% dos casos. A forma mais comum de infecção, todavia, é o contato do recém-nascido, durante o parto, com secreções maternas infectadas, ocorrendo em 75 a 80% dos casos5,7,8.
O outro importante herpesvírus que pode ser transmitido por via sexual (embora não exclusivamente) é o Citomegalovírus Humano (HCMV). O HCMV é um clássico agente de infecção oportunista, que pode causar severa doença na ausência de uma efetiva resposta imune, de forma que sua importância tem sido cada vez mais apercebida em razão dos recentes tratamentos imunossupressores (por exemplo, na quimioterapia do câncer e no transplante de órgãos), bem como por causa da epidemia de AIDS no mundo. O HCMV estabelece uma infecção latente com episódios de reativação durante os quais é excretado na saliva, urina, secreção cervical, esperma e leite materno9-12. A transmissão vertical do HCMV da mãe para o feto ou recém-nascido é comum e desempenha um papel importante na manutenção da infecção na população. Nesses casos, o HCMV pode ser transmitido de três formas: transplacentária, intraparto ou por meio do leite materno, e essa infecção pode ser causa de malformação congênita, atraso psicomotor e surdez3,10,13,14.
O objetivo deste trabalho foi determinar a frequência do HCMV e do HSV-2 em espécime cervical por meio de Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) em tempo real e relacionar esses dados de infecção com características sociodemográficas, história clínica e informações a respeito do comportamento sexual de uma população feminina atendida em uma unidade primária da Estratégia Saúde da Família (ESF).
Métodos
Este é um estudo de corte transversal, desenvolvido no município de Coari, estado do Amazonas, Brasil, com mulheres atendidas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) do referido município, assistidas pela Estratégia de Saúde da Família. Os critérios de inclusão foram: mulheres sexualmente ativas, acima de 18 anos, que apresentassem queixas clínicas ou não, quer estivessem grávidas ou não. Os critérios de exclusão foram: mulheres histerectomizadas e mulheres submetidas a tratamento recente (últimos três meses) para infecções genitais, quer por via sistêmica quer tópica.
Foram incluídas 361 mulheres nesta pesquisa. Para o cálculo amostral, considerou-se a prevalência de 42% de doenças sexualmente transmissíveis (DST) em geral no Brasil15, com margem de erro de 5% e confiança de 95%. As mulheres foram registradas sequencialmente nesta pesquisa de acordo com demanda espontânea. Todas as participantes do estudo foram esclarecidas quanto à importância dele e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Esta pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
As mulheres foram entrevistadas, respondendo a um questionário-padrão contendo perguntas estruturadas e não estruturadas sobre as principais informações clínicas, socioeconômicas e comportamentais. Todas as mulheres foram submetidas a consulta e exame físico, incluindo exame pélvico, pelo(a) enfermeiro(a) responsável por esse procedimento na UBS.
As amostras foram coletadas com o auxílio de espéculo vaginal, utilizando-se escova endocervical (citobrush). Foram acondicionadas em microtubos de 1,5 mL contendo 400 µL de tampão TRIS-EDTA (TRIS-HCl 10 mM e EDTA 1 mM pH 8,0), colocadas imediatamente no gelo e depois armazenadas em freezer a -20ºC no Instituto de Saúde e Biotecnologia da UFAM, em Coari, Amazonas; posteriormente, foram transportadas em gelo para o Laboratório de Diagnóstico Molecular da UFAM em Manaus, Amazonas, Brasil.
Depois de descongeladas à temperatura ambiente, as amostras foram submetidas ao processo de extração de DNA. Acrescentou-se 400 µL de tampão proteolítico TPK (TE [TRIS HCl 50 mM + EDTA 50 mM pH=8,0], Tween 20% e Proteinase K 10 mg/mL) e incubou-se por 60 minutos a 56°C e por 10 minutos a 95˚C em banho seco. A seguir, o DNA foi extraído pelo método fenol/clorofórmio, precipitado com etanol absoluto e ressuspenso em 50 µL de água ultrapura (pH 7,6)16.
A detecção do HSV-2 foi realizada por meio da PCR em tempo real, com um ensaio do tipo TaqMan. Foi utilizado o master mix TaqMan® Environmental Master Mix 2.0 da Applied Biosystems. Os iniciadores e sondas utilizados foram descritos por Corey et al. (2005)17. Nesse sistema, os iniciadores HSV-F e HSV-R amplificam ambos os HSV-1 e HSV-2 com igual eficiência, e para discriminação entre os tipos foi usada a sonda específica para o HSV-2 marcada com FAM. A reação teve um volume final de 20 µL, que continha os seguintes reagentes: 0,5 µL de HSV-F 10 pmol, 0,5 µL de HSV-R 10 pmol, 0,5 µL de sonda 10 pmol, 10 µL de master mix (2X), 4 µL DNA e 4,5 µL de água.
Para detecção do HCMV, foi utilizada também a PCR em tempo real. Para isso, foi utilizado um ensaio pronto do tipo presença/ausência da Applied Biosystems, o Taqman® Gene Expression Assay Pa03453400_s1. Nesse ensaio, os iniciadores e a sonda já vêm misturados nas seguintes concentrações: iniciadores a 900 nM e a sonda a 250 nM, e o fluorófogo presente na sonda é o FAM. Também foi utilizado o master mix TaqMan Environmental Master Mix 2.0, da Applied Biosystems. A reação teve um volume final de 20 µL, que continha 10 µL de master mix 2X, 1 µL do Assay Pa 03453400_s1 (20X), 4 µL de DNA e 5 µL de água.
As amostras foram distribuídas em placa apropriada para leitura óptica (MicroAmp Fast Optical 48-Well Reaction Plate) da Applied Biosystems. A placa foi levada ao aparelho de PCR em tempo real Step OneTM Real Time PCR Systems, da Applied Biosystems. As condições de termociclagem foram: 5 minutos a 95ºC e 40 ciclos de 95ºC por 15 segundos e 60ºC por 60 segundos. Ao final da reação, o resultado foi obtido a partir do programa Step OneTM Software v2.0. As amostras foram consideradas positivas se o Cycle Threshold (CT) foi até 37.
Os dados foram inicialmente tabulados e geraram bancos de dados que foram analisados pelo software Epi-Info 3.5.3 para Windows (programa desenvolvido e distribuído gratuitamente pelo Center of Disease Control and Prevention (CDC)). Na análise das variáveis quantitativas, quando os dados apresentavam distribuição normal, foi calculada a média e o desvio-padrão (DP), e na rejeição da hipótese de normalidade, o teste não paramétrico de Mann-Whitney. Na análise das variáveis categóricas, foram calculadas as frequências absolutas simples e relativas e, em alguns casos, o Intervalo de Confiança ao nível de 95%. Na análise dos dados categóricos, foi calculado o teste do qui-quadrado de Pearson, e na impossibilidade da aplicação do teste de Pearson foi aplicado o teste exato de Fisher. O nível de significância fixado na aplicação dos testes foi de 5%.
Resultados
Todas as amostras foram positivas na PCR para detecção do DNA genômico humano. Foi encontrado DNA de HCMV em 30 mulheres (8,3%; IC95% 5,8 - 11,8) e DNA de HSV-2 em 2 mulheres (0,6%; IC95% 0,1 - 2,2).
No nosso estudo, encontramos mulheres jovens infectadas pelo HCMV. A média das idades das mulheres infectadas foi bem abaixo da média das mulheres não infectadas (32,3±14,0 e 36,8±13,3 anos, respectivamente), porém essa diferença não foi estatisticamente significante (p=0,078). Uma das mulheres infectadas relatou ser portadora do HIV. O grupo de mulheres solteiras/divorciadas/viúvas apresentou maior prevalência (9,8%) em relação às casadas/união estável (7,9%), e o grupo de mulheres que relatou ter tido mais de 10 parceiros sexuais ao longo da vida apresentou também maior prevalência (10,7%) em relação aos grupos que relataram 1 a 5 parceiros (8,5%) e entre 6 e 10 (6,1%). Foi encontrada prevalência maior entre as mulheres que afirmaram uso não frequente do preservativo com parceiros fixos (12,9%) em relação às que não usavam (8,3%), mas, em relação aos parceiros eventuais, foi maior a prevalência entre mulheres que relataram uso inconsistente do preservativo (14,3%) em relação às que disseram usar "sempre" (8,0%). Entretanto, não houve diferença significativa entre os grupos nas quatro situações citadas. Associações significativas entre a infecção pelo HCMV e outras variáveis estudadas também não foram encontradas (Tabela 1).
Discussão
A associação entre o HSV-2, um patógeno que causa formação de úlceras, e a infecção pelo HIV tem aumentado o interesse sobre a epidemiologia do HSV-2. Já o crescente interesse pelo HCMV está relacionado principalmente à sua característica oportunística em pessoas imunodeprimidas, como pacientes com HIV, e as submetidas a tratamentos imunossupressores, como os transplantados, situação cada vez mais frequente12,18.
Considera-se que mais de 70% das infecções por HSV-2 não sejam conhecidas. Portanto, estudos epidemiológicos são importantes para o entendimento do padrão de distribuição da infecção dentro das populações18,19. O método diagnóstico mais usado nos estudos epidemiológicos é a sorologia. Estudos mais antigos usavam a combinação do ELISA (para detectar anticorpo anti-HSV) e Western blot (para discriminar entre HSV-1 e HSV-2)5,20,21, enquanto só mais recentemente os testes de ELISA discriminaram entre anticorpos anti-HSV-1 e anti-HSV-218,19,22. Nos estudos brasileiros, as soroprevalências para o HSV-2 tanto por ELISA quanto pela combinação de ELISA com Western blot em mulheres (gestantes, HIV-positivas, estudantes universitárias, etc.) variam entre 7,3 e 50,7%5,18-22.
Em nosso estudo, encontramos DNA do HSV-2 em apenas duas mulheres utilizando raspado cervical como amostra. A detecção viral nesse tipo de amostra para fim de estudo epidemiológico é limitada, uma vez que o HSV-2 apresenta latência no gânglio sacral (neurolatência) e não está presente nos tecidos epiteliais e conjuntivos a não ser nas fases de reativações5,6. Outras utilidades podem ser citadas para a detecção do vírus em amostra cervical, por exemplo, avaliar se uma parturiente previamente diagnosticada como portadora da infecção está em fase de reativação assintomática. Nesse caso, seria indicado um parto cesariano para evitar a ocorrência de herpes neonatal decorrente de contaminação no canal do parto. Outra importante utilidade desse teste é a avaliação da presença de DNA viral em úlceras genitais a fim de determinar a etiologia diante de outras doenças formadoras de úlceras5,23,24.
Provavelmente, as duas mulheres positivas para HSV-2 neste estudo desconheciam ser portadoras do vírus, pois nenhuma delas relatou história prévia dessa infecção, sugerindo-se que estavam em fase de reativação assintomática. Outros estudos como os de Corey et al.17 e Dinc et al.23, comparando a sorologia com a detecção do HSV-2 por técnica molecular em amostras cervicais e/ou úlceras, são necessários para que se possa ter mais segurança em relação à aplicabilidade desse ensaio.
O HCMV é transmitido pelo contato direto com fluidos corporais de pessoas excretando o vírus. Uma diferença marcante em relação ao HSV-2 é que, após a aquisição inicial, o HCMV é excretado em altos títulos na urina, saliva, lágrima, sêmen e secreções cervicais por meses ou anos, ao passo que o HSV-2 é excretado apenas localmente e em um curto intervalo de tempo, tanto durante a infecção inicial quanto nas reativações3,10. Essa característica da biologia viral faz do tipo de amostra analisada nesta pesquisa, amostra cervical colhida com citobrush, portanto contendo tanto fluido quanto células cervicais, uma amostra mais adequada para detecção do HCMV em relação à detecção do HSV-2.
Foram encontradas 30 mulheres com a presença do HCMV na secreção cervical. A detecção desse vírus em fluidos corporais teria uma indicação muito importante relacionada ao diagnóstico de infecção congênita ou perinatal em urina de recém-nascidos, proporcionando a intervenção com recursos terapêuticos que podem minimizar a gravidade dos casos e, no caso das infecções congênitas, possibilitando diminuir a intensidade das sequelas25. A detecção na secreção cervical diagnosticaria a mulher excretando ativamente o vírus, porém não discriminaria entre infecção primária e reativação, o que poderia ser feito em um acompanhamento de soroconversão durante a gestação26. No entanto, o rastreamento dessa infecção durante a gravidez é discutido há vários anos, sem consenso estabelecido13.
Das cinco mulheres que estavam grávidas em nosso estudo, uma delas apresentou-se positiva para a infecção pelo HCMV. Entre as mulheres grávidas, a infecção por esse vírus é frequentemente uma séria ameaça ao feto. Perda auditiva e severo dano neurológico são as principais manifestações da infecção congênita, e menos frequentemente ocorre morte fetal ou neonatal. Essa mulher pode estar em infecção primária ou em reativação da infecção e tanto uma como outra situação são quase sempre assintomáticas e favorecem a disseminação viral horizontal e vertical10,27. Uma vez que essa paciente está excretando o vírus ativamente, transmissão congênita ou perinatal pode ocorrer.
As infecções assintomáticas são predominantes na população, e em nossa amostra não foi diferente. Todas as 30 mulheres infectadas pelo HCMV desconheciam a sua infecção, pois nenhuma delas relatou história prévia. A despeito da alta prevalência mundial, as infecções pelo HCMV são geralmente assintomáticas na população, exceto em recém-nascidos de mães infectadas e em pacientes imunodeprimidos, como citado, nos quais o HCMV afeta muitos órgãos12. Eliminar ou reduzir a morbidade associada com a infecção pelo HCMV durante a gravidez seria o foco do rastreamento sorológico durante essa fase.
Neste estudo, duas mulheres disseram-se conhecedoras da sua condição de soropositividade para o HIV, e uma delas apresentou infecção pelo HCMV. A infecção pelo HCMV é muito preocupante em pessoas com quadros de imunodeficiência, pois este é um vírus oportunista, que causa severos quadros de pneumonite, lesões gastrointestinais, hepatite, retinite, pancreatite, miocardite e, às vezes, encefalite, além de maior propensão a outras infecções oportunistas fúngicas e bacterianas11,12. Nesses pacientes, somente a detecção com PCR não necessariamente correlaciona-se com doença ativa, porque os vírus que se encontram em estado latente também podem ser amplificados. A PCR em tempo real, portanto, também tem sido utilizada para detecção e quantificação de carga viral. Um ensaio quantitativo de infecção pelo HCMV é uma ferramenta importante, pois a análise da carga viral no sangue é um importante fator preditivo de infecção e aparecimento de doenças em pacientes HIV-positivos28,29.
Assim, este estudo chama a atenção para a prevalência encontrada de HCMV em amostra cervical de mulheres em exame ginecológico de rotina. Tal prevalência serve de alerta para o não relaxamento da solicitação da sorologia para esse vírus durante a gestação e para a verificação mais detalhada da condição de portador em pacientes imunodeprimidos.
Recebido 22/05/2012
Aceito com modificações 02/10/2012
Conflito de interesse: não há.
Trabalho realizado no Programa de Pós-graduação em Biotecnologia da Universidade Federal do Amazonas - UFAM - Manaus (AM), Brasil.