DOI: S0100-7203(12)03400605 - volume 34 - Junho 2012
Didier Silveira Castellano Filho, José Otávio do Amaral Correa, Plínio dos Santos Ramos, Pablo Nascimento Oliveira, Beatriz Julião Vieira Aarestrup, Fernando Monteiro Aarestrup
Introdução
A prevalência do sobrepeso e da obesidade vem aumentando significativamente nas últimas décadas, tanto em países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento, tornando-se um dos grandes problemas de saúde pública na atualidade1. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), existem, no mundo, atualmente, cerca de 1,5 bilhão de adultos com idade superior ou igual a 20 anos acima do peso. Destes, mais de 200 milhões de homens e quase 300 milhões de mulheres são considerados obesos2. Como parte natural dessa epidemia mundial, o número de mulheres em idade reprodutiva com excesso de peso também vem aumentando3.
A deposição excessiva de gordura na região abdominal, obesidade abdominal (OA) está associada a um risco aumentado de eventos coronarianos, diabetes mellitus tipo 2 e hipertensão arterial sistêmica, em ambos os sexos e em diferentes etnias4-5. A medida antropométrica mais utilizada para o diagnóstico da OA é a circunferência abdominal (CA)2,6 ou circunferência da cintura.
A obesidade na gravidez está relacionada com resultados adversos e com risco gestacional aumentado para pré-eclâmpsia, diabetes mellitus gestacional (DMG), cesariana, macrossomia, defeitos do tubo neural, tromboembolismo, hemorragia pós-parto e infecção puerperal1,7. Atualmente, cerca de 20% das gestantes iniciam a gravidez com um índice de massa corpórea (IMC) que as define como obesas7. Na obesidade, existe uma correlação entre a quantidade de gordura corporal e os níveis séricos de leptina, uma adipocitocina sintetizada no adipócito, principalmente no visceral8.
A leptina, que, na gestação, também é produzida pela placenta9, desempenha um importante papel na regulação do metabolismo energético materno e na instalação da resistência à insulina fisiológica10. Níveis séricos de leptina mais elevados do que os encontrados na gestação normal, têm sido relacionados ao DMG, com a pré-eclâmpsia e com o crescimento intrauterino restrito, sendo essa elevação proporcional ao grau de severidade da doença11,12.
A correlação entre o IMC e os níveis séricos de leptina durante o período gestacional é bem conhecida13,14, entretanto, o mesmo não se dá entre a medida da CA e os níveis de leptina na gestação. A avaliação da OA por meio da medida da CA é, frequentemente, utilizada, fora da gravidez, como um fator de risco para diabetes e doenças cardiovasculares15. Na gravidez, no entanto, a CA não está, como o IMC e o ganho de peso, incluída na rotina da avaliação antropométrica pré-natal16 e não tem sido utilizada na prática clínica para prever risco gestacional, provavelmente, pela grande interferência do aumento do volume uterino17.
Sabendo-se que na gestação normal11 e na obesidade18 ocorre um aumento dos níveis séricos de leptina e considerando-se a hipótese de que a OA na gestação implicaria, provavelmente, em uma liberação mais elevada de citocinas pró-inflamatórias na circulação materna e, possívelmente, tornando essa gestante mais exposta ao risco de eventos adversos na gravidez, o presente estudo foi elaborado, o qual avaliou a possível correlação entre a medida da CA materna realizada antes da 12ª semana de gestação e a média dos níveis séricos de leptina durante a gravidez, bem como, comparou os níveis séricos de leptina entre dois grupos de gestantes: com OA (CA>88 cm) e sem OA (CA<88 cm), diagnosticada no início da gestação.
Métodos
Amostra
Foi realizado um estudo observacional longitudinal prospectivo em um Hospital e Maternidade de ensino com atendimento voltado 100% para o usuário do Sistema Único de Saúde (100% SUS), entre setembro de 2010 e junho de 2011. Foram recrutadas, inicialmente, 69 gestantes, matriculadas no pré-natal de risco habitual da instituição, sendo que, 40 delas concluíram o pré-natal e 29 foram excluídas durante o estudo por motivos diversos, tais como, abandono voluntário do acompanhamento pré-natal na instituição (n=11), retirada do consentimento para participar da pesquisa conforme Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde (n=3), encaminhamento ao pré-natal de alto risco (n=7), parto pré-termo (n=4) e aborto espontâneo (n=4). Foram considerados critérios de inclusão: idade superior ou igual a 20 anos, idade gestacional menor que 12 semanas no início do pré-natal, confirmada pela ultrassonografia, gestação única. Foram considerados critérios de exclusão: hipertensão arterial, diabetes tipo 1 ou 2, drogadição, tabagismo e doenças crônicas como reumatopatias, nefropatias, cardiopatias, pneumopatias ou neoplasia maligna. Para se comparar a média dos níveis séricos de leptina com a medida da CA e com as características demográficas e clínico-obstétricas da amostra, ela foi dividida, segundo os critérios do National Cholesterol Education Program Adult Treatment Panel NCEP ATP III6, em dois grupos, de acordo com a medida da CA aferida antes da 12ª semana de gestação: Grupo sem OA - sem obesidade abdominal (CA<88 cm) e Grupo com OA - com obesidade abdominal (CA>88 cm).
Todas as voluntárias leram e assinaram, na consulta inicial, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, sob Parecer nº 0240/2010.
Protocolo do estudo
As gestantes foram acompanhadas no pré-natal de baixo risco, conforme protocolo do Ministério da Saúde16, totalizando, no mínimo, seis consultas ao final do período. Além das consultas e dos exames complementares regulares de rotina, as 40 gestantes incluídas na pesquisa foram submetidas à medida da CA antes da 12ª semana de gestação e à dosagem dos níveis de leptina em 3 momentos do estudo: entre a 9ª e a 12ª, a 25ª e a 28ª e entre a 34ª e a 37ª semanas de gestação.
O peso foi medido em quilogramas, com variação de 100 gramas, aferido por balança eletrônica Filizola, modelo Personal Line 200 (Filizola S.A. Pesagem e Automação, São Paulo, SP, Brasil), após a sua calibragem.
A altura foi medida em metros, usando duas casas decimais após a vírgula, atendendo às seguintes etapas: posicionamento da paciente de costas para o instrumento de medida, recomendando que encostasse os calcanhares na borda da plataforma da balança e permanecesse de pé, olhando para a frente, com a cabeça ereta.
O peso pré-gestacional foi obtido por meio de informação fornecida pela paciente na primeira consulta de pré-natal. O IMC pré-gestacional foi calculado considerando o peso pré-gestacional em quilogramas, dividido pela altura em metros (kg/m2). Para se avaliar o percentual de gestantes obesas e não obesas portadoras de OA, a amostra foi dividida, segundo os critérios da OMS19, em dois grupos, de acordo com o cálculo do IMC pré-gestacional: Grupo Ob (gestantes obesas - IMC<30) e Grupo NOb (gestantes não obesas - IMC<30).
A CA foi medida segundo as recomendações do Centers for Disease Control and Prevention20,21, somente na primeira consulta de pré-natal, antes da 12ª semana de gestação. Com a paciente em posição ereta, a extremidade da última costela foi localizada e marcada com a ponta de uma caneta. A crista ilíaca foi, então, palpada na linha média axilar e também marcada. Uma fita métrica flexível, inextensível, de 200 cm de comprimento, com precisão de uma casa decimal, foi, então, posicionada horizontalmente na linha média entre a extremidade da última costela e a crista ilíaca e mantida de forma que permanecesse na posição ao redor do abdome sobre o nível da cicatriz umbilical, para que fosse procedida a leitura da CA, no milímetro mais próximo. A medida foi realizada durante a expiração.
Avaliação dos níveis séricos de leptina
Nas visitas de pré-natal realizadas entre a 9ª e a 12ª, a 25ª e a 28ª e entre a 34ª e a 37ª semanas de gestação, foi obtido soro materno identificado em tubos criogênicos (CRAL, SP, Brasil), em triplicata, com 2 mL cada, e armazenado em Freezer Thermo Scientific modelo 902 (Thermo Eletric Scientific, Winchester, Ex, USA) a -80º C para análise posterior. A dosagem sérica de leptina em (ng/mL) foi realizada pelo método ensaio imunoenzimático (ELISA), utilizando-se o Human Leptin Elisa Kit KAC2281 (Invitrogen Corporation, Carlsbad, CA, USA) seguindo as recomendações do fabricante. O limite de sensibilidade para o ensaio é de 3,5 pg/mL. O coeficiente de variação interensaio é de 3,9% a 150,6 pg/mL e 5,3% a 240,7 pg/mL. As leituras foram feitas em leitor ELISA Microplate Reader - Expert Plus (Asys Hitech, Eugendorf, Áustria) a 450 nm.
A média dos níveis séricos de leptina foi obtida por meio da média aritmética das três medidas realizadas entre a 9ª e a 12ª, a 25ª e a 28ª e entre a 34ª e a 37ª semanas de gestação.
Análise estatística
Inicialmente, foi testada a normalidade dos dados para a determinação da utilização de testes não paramétricos. Os dados descritivos da amostra foram apresentados como média ± desvio padrão. Foram utilizados o teste de Mann-Whitney e o teste χ2 para se verificar diferenças entre os grupos. Os resultados inferenciais foram apresentados como média ± erro padrão. Para ser verificada a associação entre a medida da CA e a média dos níveis séricos de leptina durante a gestação, foi utilizada a correlação de Pearson. Em adendo, utilizou-se o teste de Mann-Whitney para se comparar a média dos níveis séricos de leptina entre os dois grupos investigados com a medida da CA e com as características demográficas e clínico-obstétricas da amostra. Todas as análises estatísticas foram realizadas utilizando GraphPad Prism 5.0 (GraphPad software, Inc., La Jolla, CA, USA). Foi adotado como nível de significância o valor de p<0,05.
Resultados
A descrição das características demográficas e clínico-obstétricas da amostra nos Grupos de pacientes com e sem OA, estão descritas na Tabela 1. Não houve diferença entre os dois grupos em relação à idade, à altura, à paridade e à história prévia de PE e de DMG em gestação anterior. A média do peso (74,4±1,0 kg versus 55,6±5,9 kg) e do IMC (28,9±4,1 versus 21,1±2,4) das pacientes com OA foi significativamente maior que naquelas sem OA (p=0,001) (Tabela 1).
Ao ser estudado o percentual de gestantes obesas e não obesas da amostra, observou-se que 29% das não obesas apresentaram OA (CA>88 cm) antes da 12ª semana. Na Figura 1, observou-se que a média dos níveis séricos de leptina no Grupo das gestantes com OA (41,9±3,5 ng/mL) identificada antes da 12ª semana de gestação foi significativamente superior ao Grupo das pacientes sem OA (23,6±2,7 ng/mL) (p<0,0002).
Uma correlação positiva foi obtida entre a média dos níveis séricos de leptina durante a gravidez e a medida da CA aferida antes da 12ª semana de gestação (r=0,7; p<0,0001) (Figura 2).
Discussão
O presente estudo contribui com o corpo de conhecimento disponível no tópico de avaliação da obesidade no início da gravidez e sua associação com níveis séricos de leptina. Ultimamente, os temas obesidade e leptina vêm sendo alvo de muitos estudos22-24, mas ainda existe uma importante lacuna no conhecimento a respeito do comportamento desse hormônio, em mulheres com OA, durante o período gestacional. Do ponto de vista metodológico, este estudo apresenta um controle adequado de muitas das variáveis intervenientes, como, por exemplo, o acompanhamento de todas as voluntárias por um único avaliador, o que minimiza sobremaneira as possíveis variações existentes na coleta de dados.
Os Grupos com e sem OA, comparados neste estudo, são bastante homogêneos em relação às características demográficas e clínico-obstétricas, como é possível observar na Tabela 1, sendo que, as diferenças encontradas estão diretamente relacionadas às características antropométricas dos dois grupos, fato este já esperado.
Neste estudo, verificou-se existir uma importante associação entre os níveis séricos de leptina e a medida da CA avaliada em gestantes antes da 12ª semana de gestação. A maioria dos estudos publicados relacionando os níveis séricos de leptina com a CA, na avaliação da OA, foram realizados para o estudo da síndrome metabólica e da obesidade em populações de crianças, adolescentes e adultos com determinadas características clínicas ou enfermidades associadas23-25. A associação entre a leptina e a OA, em mulheres grávidas, permanece ainda pouco explorada. Esteghamati et al. 23, estudando a síndrome metabólica em sujeitos obesos e não obesos, encontraram uma correlação positiva entre os níveis séricos de leptina e a medida da CA em homens e mulheres com obesidade visceral, independente do IMC encontrado. Gupta et al. 25 encontraram valores significantemente superiores de leptina sérica e de CA em mulheres com síndrome metabólica em relação àquelas sem síndrome metabólica, demonstrando uma associação entre os níveis séricos de leptina e os fatores de risco metabólicos em mulheres adultas. Analisando-se a relação entre a leptina circulante e a SM em um grupo com 269 mulheres e 688 homens, encontraram uma correlação positiva entre os níveis séricos de leptina e a medida da CA e os outros critérios de SM, em ambos os sexos, concluindo, ainda, que os níveis séricos de leptina elevados constituem um fator preditivo para síndrome metabólica em homens e mulheres24.
Outras evidências indicam que a elevação dos níveis séricos de leptina está associada à obesidade na gravidez13,26,27. Sabe-se, também, que níveis séricos mais elevados dessa adipocitocina são relacionados a complicações obstétricas, tais como a pré-eclâmpsia, o crescimento intrauterino restrito e o DMG11. Soma-se a estes fatos que o aumento da CA também tem sido identificado como fator preditivo para desfechos gestacionais desfavoráveis28. A relevância dos presentes achados se deve ao fato de que com uma simples medida da CA realizada no início da gestação, é possível predizer os níveis séricos médios de leptina durante todo o período gestacional. A medida da CA na gestação é simples de ser realizada e apresenta baixo custo, todavia, ainda não faz parte da rotina dos exames antropométricos realizados no pré-natal16. O motivo principal de a CA ainda não ter sido incluída na propedêutica pré-natal pode estar relacionada ao aumento do volume uterino, que inclui o miométrio, o feto, a massa placentária e o líquido amniótico, o que pode influenciar na acurácia do método28. No presente estudo, optou-se por realizar a medida da CA antes da 12ª semana de gestação, momento em que o útero ainda não interfere nos resultados da medida, pois se situa abaixo do púbis, dentro da pelve materna17.
O presente estudo verificou, ainda, que 29% das gestantes não obesas apresentaram CA>88 cm, portanto, eram portadoras de OA no início da gestação, mesmo não sendo consideradas obesas pelos critérios da OMS19. Esses dados demonstram que a OA no início da gestação não acontece somente em mulheres consideradas obesas, destacando ainda mais a importância de se valorizar essa medida na avaliação pré-natal.
Outra informação importante encontrada no resultados é que, ao se dividir a amostra em dois grupos, com e sem OA, de acordo com CA no início da gestação, foram encontrados valores médios séricos de leptina mais elevados no Grupo Com OA. Esses achados confirmam o observado por outros autores, que avaliaram os níveis de leptina e CA em outros grupos populacionais. Os níveis de leptina aumentam de forma linear com o IMC e a CA em cinco grupos divididos de acordo com o IMC, existindo uma correlação positiva entre essas variáveis29. O mesmo fenômeno foi verificado em uma amostra feminina encontrando, também, uma relação positiva direta entre eles, comparando três grupos divididos de
acordo com o IMC30.
Uma limitação encontrada no presente estudo é que o IMC pré-gestacional foi calculado utilizando o relato da própria gestante na primeira consulta de pré-natal, sendo essa informação subjetiva, sujeita a erro. Outra limitação deste trabalho se refere ao tamanho da amostra, que pode reduzir a validade externa do presente estudo.
Concluindo, a CA medida antes da 12ª semana de gestação é um método válido e simples para se predizer os níveis séricos de leptina durante todo o período gestacional. Gestantes com OA diagnosticadas antes da 12ª semana apresentam níveis médios de leptina sérica, durante a gravidez, superiores àquelas sem OA. Os presentes dados sugerem que essa medida pode ser útil na avaliação antropométrica pré-natal, contribuindo para previsão precoce de risco gestacional.
Recebido 09/04/2012
Aceito com modificações 18/05/2012
Trabalho realizado no Departamento de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital Therezinha de Jesus da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora - Suprema - Juiz de Fora (MG), Brasil.