DOI: S0100-7203(12)03401108 - volume 34 - Novembro 2012
Luciana Azôr Dib, Michele Gomes da Broi, Maria Cristina Picinato Medeiros de Araújo, Roberta Cristina Giorgenon, Rui Alberto Ferriani, Paula Andrea de Albuquerque Sales Navarro
Introdução
A qualidade oocitária depende da adequada aquisição de maturação citoplasmática e nuclear, sendo a última dependente da presença de um fuso celular normal. O fuso celular oocitário é uma estrutura extremamente sensível à ação de diversos fatores, tais como o envelhecimento, as mudanças térmicas, o suporte insuficiente de oxigênio durante o tempo de cultura, a manipulação oocitária, entre outros1-4. Alterações ao fuso meiótico podem gerar alteração no complemento cromossômico, induzindo um estado de aneuploidia por não disjunção, junção desbalanceada ou disjunção prematura das cromátides e perda de cromossomos, o que compromete o desenvolvimento embrionário5-8.
O fuso meiótico pode ser visualizado por meio da microscopia confocal (MC) de elevado desempenho, que oferece informações detalhadas das estruturas microtubulares e dos cromossomos, sendo considerada a metodologia de padrão-ouro para avaliação desta estrutura celular9-11. Entretanto, esta metodologia requer a fixação dos oócitos, o que inviabiliza sua utilização subsequente nos procedimentos de reprodução assistida (RA).
Considerando a relevância de se avaliar as qualidades oocitária e embrionária com a finalidade de se aperfeiçoar os resultados dos procedimentos de RA, cada vez mais têm sido estudadas e empregadas metodologias com esta finalidade. Atualmente, um dos métodos não invasivos mais estudados é a microscopia de polarização (MP)12-14, que permite a análise de estruturas birrefringentes, como o fuso celular oocitário e a zona pelúcida sem a necessidade de fixação do oócito, não comprometendo os resultados de injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI)12,13,15,16.
Discute-se a aplicabilidade clínica da MP como preditora da qualidade oocitária e dos resultados da ICSI em humanos12,13,15,16, pois a mesma potencialmente permitiria a avaliação do estágio de maturação nuclear oocitário17 e a visualização ou não desta estrutura celular. Todavia, apesar de alguns estudos sugerirem que a visualização do fuso meiótico pela MP possa ser utilizada como preditora indireta dos resultados da ICSI14,18-23, não há consenso na literatura sobre sua aplicabilidade clínica24.
Estudos experimentais, utilizando camundongos, evidenciaram adequada capacidade preditora desta metodologia para identificação de anomalias meióticas oocitárias25,26. Todavia, o fuso celular humano apresenta especificidades próprias, sendo necessários estudos para comparar a acurácia desta metodologia para a predição de normalidade do fuso e distribuição cromossômica. Devido à dificuldade em se conseguir oócitos humanos maturados in vivo que sejam doados para a pesquisa, não há, até o presente, estudos comparativos da concordância entre as técnicas de MP e MC na detecção de anomalias meióticas oocitárias. Existe apenas um estudo10 comparando essas duas técnicas, no qual foram analisados parâmetros quantitativos do fuso celular pela MP, comparando-os com a análise da morfologia do fuso meiótico e da distribuição cromossômica pela MC. Além de ter avaliado apenas um dos dois sistemas disponíveis comercialmente, este estudo não apresentou dados relativos à avaliação de parâmetros quantitativos do fuso (visualização ou não da estrutura) pela MP e sua acurácia na predição das anormalidades meióticas oocitárias, permanecendo esta lacuna no conhecimento.
Devido à importância de serem identificadas metodologias não invasivas capazes de predizer a qualidade oocitária em procedimentos de RA e a escassez de dados na literatura sobre a capacidade da MP de identificação de anomalias meióticas em oócitos humanos, foi proposta a realização do presente estudo. Objetivou-se comparar a concordância entre as técnicas MP e MC na avaliação do fuso meiótico de oócitos humanos maturados in vivo, avaliando a percentagem de oócitos com fuso celular visível e não visível à MP com normalidade e anormalidade meióticas à MC.
Métodos
Foi realizado um estudo prospectivo de junho de 2009 a maio de 2011, no Setor de Reprodução Humana do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Pesquisa. Todos os casais submetidos à indução da ovulação para a realização de ICSI, que preencheram os critérios de inclusão e manifestaram o desejo de participar do projeto, assinaram o termo de consentimento após esclarecimentos sobre o estudo.
Ao longo dos 24 meses de duração do estudo, 23 pacientes preencheram os critérios de inclusão e manifestaram o desejo de participar, mediante a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Foram incluídas pacientes inférteis com idade menor ou igual a 38 anos, que apresentaram mais de sete oócitos maduros captados após estimulação ovariana com gonadotrofinas.
O bloqueio hipofisário foi iniciado utilizando agonista do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRHa) dez dias antes da realização da ultrassonografia transvaginal basal (protocolo longo), por meio da administração de acetato de Leuprolide (Lupron®, Abott, Brasil). As pacientes receberam 100 a 300 UI por dia de FSH recombinante - FSHr (Gonal-F®, Serono, Brasil; Puregon®, Organon, Brasil), nos primeiros seis dias da indução. Quando pelo menos dois folículos atingiram 18 mm de diâmetro médio administrou-se gonadotrofina coriônica humana (hCG) recombinante (Ovidrel®, Serono, Brasil). A captação dos oócitos foi realizada entre 34 a 36 horas após a administração do hCG recombinante.
Todo o material aspirado durante a captação dos oócitos foi analisado para a identificação e o isolamento dos complexos oócito-cumulus. Após a conclusão do desnudamento oocitário, realizou-se a identificação do grau de maturidade dos oócitos, sob visualização ao microscópio de luz. Os oócitos imaturos (em estágio de vesícula germinativa ou metáfase I) foram descartados, já os maduros (caracterizados morfologicamente pela presença de um corpúsculo polar - CP extruído) foram incubados por mais uma hora (após o desnudamento oocitário) para, então, serem avaliados pelo OCTAX ICSI GuardTM System (Medical Technology Vertriebs-GmbH, Altdorf, Alemanha). Sete oócitos maduros foram injetados (submetidos à ICSI) seguindo a rotina assistencial do serviço, e os demais foram doados para o presente estudo.
Visualização do fuso meiótico por meio da microscopia de polarização
Os fusos celulares dos oócitos com extrusão do primeiro CP foram avaliados usando um microscópio invertido, equipado com uma câmera de vídeo e com o hardware do MP, o qual consiste de cristais elétricos e de um controlador eletro-óptico (OCTAX ICSI GuardTM System, Medical Technology Vertriebs-GmbH, Altdorf, Alemanha). Os grupos de cristais elétricos são controlados pelo computador por meio do software OCTAX EyeWareTM (Universal Imaging Corp., Boston, MA, EUA). Utilizou-se um número máximo de sete oócitos em cada placa, sendo o tempo necessário para analisar o fuso celular pela MP e realizar a ICSI inferior ou igual a sete minutos.
Para controlar os vieses metodológicos relativos a não visualização do fuso secundária à realização do desnudamento celular e ao envelhecimento oocitário, padronizou-se que o desnudamento fosse realizado de duas a três horas após a captação oocitária e, após o mesmo, os oócitos eram recolocados nas placas de cultivo previamente equilibradas na incubadora, por mais uma hora, para somente depois serem submetidos ao imageamento e à ICSI.
Os oócitos com primeiro CP foram analisados pela MP e caracterizados quanto ao estágio de maturação nuclear (telófase I ou metáfase II) e presença ou não de fuso celular visível. Foram considerados em telófase I, os oócitos que apresentavam fuso celular alongado, perpendicular à membrana oocitária, estendendo-se até o primeiro CP. Os fusos celulares em metáfase II foram caracterizados pela presença de fibras birrefringentes distribuídas radialmente, com a forma de barril e orientadas paralelamente à membrana cortical (Figura 1A). Como os cromossomos são minimamente birrefringentes, não são adequadamente analisáveis por meio desta metodologia.
Microscopia de imunofluorescência para visualização do fuso meiótico e distribuição cromossômica
Os oócitos maduros doados para a pesquisa foram fixados e corados para microscopia de fluorescência, conforme previamente descrito17,18,27.
Para maior acurácia das análises, os oócitos em metáfase II foram subdivididos em analisáveis, quando se apresentavam em visão lateral ou sagital, possibilitando uma avaliação global do fuso meiótico; e não analisáveis, quando se apresentavam em visão polar, impossibilitando a avaliação global do fuso, apenas da disposição cromossômica28,29. Na avaliação por imunofluorescência, o fuso meiótico foi considerado normal quando apresentava a forma de barril e estava disposto em posição centrípeta em relação ao CP (Figura 1B). Os cromossomos apresentavam distribuição normal quando estavam reunidos na placa metafásica e bem alinhados no equador do fuso celular oocitário (Figura 1B). Eram considerados anormais quando se encontravam dispersos, desalinhados ou fragmentados, ou quando havia cromatina feminina aglomerada com microtúbulos interfásicos. Os oócitos em metáfase II foram considerados normais quando apresentavam um fuso meiótico em forma de barril, com cromossomos alinhados na placa metafásica e um CP (Figura 1B); e anormais, quando apresentavam fuso e/ou configuração cromossômica alterados.
O fuso celular foi considerado em telófase I quando estava alongado, perpendicular à membrana plasmática oocitária e com cromossomos distribuídos na sua porção terminal.
Análise estatística
Inicialmente, realizou-se uma descrição da amostra, sendo as variáveis qualitativas apresentadas como frequências absolutas e relativas.
Para comparação dos métodos de avaliação do fuso meiótico oocitário (MP e MC), considerando a análise pela MC como padrão-ouro, utilizou-se o teste de concordância de Kappa: <0,0, ruim; 0,21 - 0,40, sofrível; 0,41 - 0,60, regular; 0,61 - 0,80, boa; 0,81 - 0,99, ótima e >1,00, perfeita. Foram também apresentados os intervalos de confiança de 95% (IC95%) para cada variável analisada: oócitos sem fuso celular visível à MP e com normalidade meiótica pela análise pela MC; com fuso celular visível à MP e com normalidade meiótica pela análise pela MC; sem fuso celular visível à MC e com anormalidade meiótica pela análise pela MC; e com fuso celular visível à MC e com anormalidade meiótica pela análise pela MC.
Resultados
Foram analisados 73 oócitos frescos, oriundos de 23 pacientes. A análise pela MP evidenciou três oócitos em telófase I (4,3%) e 70 em metáfase II (95,7%), sendo 54 com o fuso celular visível (77,1%) e 16 sem (22,9%). A análise com MC evidenciou seis oócitos em telófase I (8,2%) e 67 em metáfase II (91,8%). Dos 67 oócitos em metáfase II, 47 foram fixados em visão sagital (70,1%), sendo considerados analisáveis no presente estudo, 4 apresentaram fuso celular não visível (6%) e 16 foram fixados em visão polar (23,9%), sendo considerados não analisáveis. Todos os oócitos que estavam em telófase I foram fixados em visão sagital e apresentaram análise confocal normal. Dos 47 oócitos em metáfase II analisáveis, 28 apresentaram fuso e distribuição cromossômica anormais (59,6%) e 19 apresentaram normalidade meiótica (40,4%).
Dos 16 oócitos com fuso celular não visível à polarização, dois deles também apresentaram fuso negativo à análise confocal, três estavam em visão polar, dois em telófase I e nove em visão sagital. Dos 54 oócitos com fuso celular visível à polarização, dois oócitos apresentaram fuso negativo à análise confocal, 13 estavam em visão polar, um estava em telófase I e 38 em visão sagital.
Observou-se que 72,7% (8/11) dos oócitos em metáfase II com fuso celular não visível à polarização apresentaram anormalidades meióticas à análise confocal (IC 46,4 - 99,1) e 55,6% (20/36) dos oócitos em metáfase II com fuso celular visível à polarização apresentaram-se como oócitos anormais à análise confocal (IC 39,3 - 71,8). Somente 27,3% (3/11) dos oócitos em metáfase II com fuso celular não visível à polarização apresentaram normalidades meióticas à análise confocal (IC 0,01 - 53,6). Dos oócitos em metáfase II com fuso celular visível à polarização, 44,4% (16/36) apresentaram-se como oócitos normais à análise confocal (IC 28,2 - 60,7). A concordância entre os métodos foi de apenas 51,1% (Kappa: 0,11; IC95% -0,0958 - 0,319). Para esta análise foram descartados os oócitos em telófase I (n=6), aqueles com fuso negativo à imunofluorescência (n=4) e que foram fixados em visão polar (n=16), como observado na Tabela 1.
Discussão
Com a crescente demanda de pacientes inférteis à procura de serviços de reprodução humana, cada vez mais aumenta o interesse na aplicabilidade e segurança dos métodos não invasivos para avaliação da qualidade oocitária, importante determinante da qualidade embrionária, visando aumentar a segurança e a eficiência dos procedimentos de RA.
Um dos principais métodos não invasivos destinados à avaliação da qualidade oocitária por meio da análise do fuso celular é a MP, que possibilita a visualização de estruturas birrefringentes em células vivas, sem a necessidade de fixação ou coloração, permitindo a utilização dos oócitos analisados por esta metodologia nos procedimentos de RA13,15,18,25,30,31. A análise oocitária por esta metodologia poderia ser útil na triagem de possíveis anormalidades, não só do fuso celular, como, indiretamente, do alinhamento cromossômico, uma vez que, na grande maioria das vezes, estas duas alterações estão associadas26,32. Alguns estudos13,23 evidenciaram aumento significativo na taxa de fertilização, de clivagem e de embriões de boa qualidade no terceiro dia de desenvolvimento de oócitos com fuso celular visível, quando comparados àqueles sem fuso celular visível à polarização23. Isso sugere que a visualização do fuso meiótico oocitário poderia ser um bom preditor de fertilização pós-ICSI18-22,33 e da qualidade embrionária14,18-23. Entretanto, alguns estudos na literatura não confirmaram essa correlação, tornando questionável sua utilização rotineira para a seleção oocitária19,31,33. Como até o presente não havia estudos avaliando a concordância entre esta metodologia não invasiva e a MC na predição de anomalias meióticas oocitárias em humanos, o presente estudo foi realizado.
No presente estudo, observou-se que 72,7% dos oócitos com fuso celular não visível à polarização apresentaram anormalidades meióticas à análise confocal, sugerindo que isso está relacionado a maior probabilidade de anormalidade meiótica oocitária, como previamente sugerido por alguns estudos. Todavia, 55,6% dos oócitos com fuso celular visível à polarização apresentaram-se como oócitos anormais à análise confocal e somente 44,4% dos oócitos com fuso celular visível à polarização apresentaram-se com fuso e distribuição normal à análise confocal. A concordância entre os métodos foi de apenas 51,1%, evidenciando que a visualização do fuso celular à MP não é uma boa preditora de normalidade meiótica oocitária, tornando questionável a aplicabilidade desta metodologia na predição não invasiva da qualidade oocitária. Estes achados são concordantes com os apresentados por Coticchio et al.10, os quais, ao analisarem oócitos maturados in vivo (frescos e após descongelamento) pelo Polscope, o outro sistema de polarização disponibilizado comercialmente, evidenciaram não haver consistência entre a análise pela metodologia não invasiva e a confocal, sugerindo que esta metodologia apresentou limitado valor preditivo do grau de normalidade do fuso meiótico oocitário. Todavia, no mesmo estudo10, as variáveis analisadas para a comparação das técnicas foram distintas das do presente estudo. Foram comparados os valores de birrefringência do fuso pela análise ao Polscope entre quatro diferentes configurações de microtúbulos (análise de parâmetros quantitativos e não qualitativos) e distribuição cromossômica, definidas pela análise confocal, além das medidas do eixo longitudinal do fuso avaliadas pelas duas metodologias.
Vale a pena ressaltar que a utilização da MP na prática clínica prevê a necessidade de aquisição do equipamento e de softwares, a utilização de placas com fundo de vidro, cujo custo é significativamente maior que o das placas de plástico habitualmente utilizadas para a realização da ICSI, além do treinamento e gasto adicional de tempo pelos embriologistas, o que, aliado à baixa concordância entre esta técnica e a MC na identificação das anormalidades meióticas em oócitos humanos, evidenciada no presente estudo, faz questionar se a utilização desta metodologia na rotina das clínicas de RA é realmente custo-efetiva, o que precisa ser mais bem definido por estudos com maiores casuísticas e metodologias pertinentes.
Pode-se concluir que a visualização do fuso da MP não é uma boa preditora na detecção de normalidade meiótica oocitária quando comparada à MC de elevado desempenho. A pequena porcentagem de oócitos com fuso visível à polarização e normais à análise confocal torna questionável a utilidade desta metodologia como ferramenta para a seleção não invasiva oocitária para os procedimentos de RA.
Agradecimentos
Aos funcionários do Laboratório de Reprodução Assistida do Hospital das Clínicas, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (2008/58197-6) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (474858/2009-0).
Recebido 20/06/2012
Aceito com modificações 25/09/2012
Conflito de interesses: não há.
Trabalho realizado no Setor de Reprodução Humana, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil.