DOI: S0100-7203(12)03400402 - volume 34 - Abril 2012
Alfredo Dias de Oliveira Filho, Danielle Pires da Gama, Maria das Graças Leopardi, Julia Maria Gonçalves Dias, Divaldo Pereira de Lyra Júnior, Sabrina Joany Felizardo Neves
Introdução
Embora a gravidez seja considerada um estado fisiológico normal, a maioria das gestantes utiliza ao menos um medicamento, excluindo-se vitaminas ou suplementos minerais1. No entanto, a utilização de medicamentos durante a gravidez e a lactação tem sido um tema relativamente pouco estudado, assim como os riscos e as experiências com novos fármacos2. Como consequência, os prescritores costumam adotar condutas mais conservadoras, utilizando medicamentos mais antigos, os quais se dispõe maior quantidade de informações3. Soma-se a essa realidade o fato de que as gestantes, geralmente, hesitam em fazer uso de medicamentos, o que faz da não adesão - extensível a medicamentos que reconhecidamente não causam danos - uma possibilidade a ser atentamente considerada pelos prescritores4.
A adesão terapêutica, definida como o grau de comprometimento que um paciente tem em utilizar o tratamento medicamentoso prescrito pelo médico, tem sido investigada principalmente em condições crônicas, sendo, até o presente, pouco estudada em gestantes5. Entre os fatores que podem influenciar esse comportamento encontram-se: idade, gênero, etnia, depressão, custo do tratamento, complexidade do regime terapêutico, falta de conhecimento sobre a doença ou condição clínica e seu tratamento, efeitos colaterais, entre outros6,7. Entre 20-50% dos pacientes não tomam seus medicamentos de acordo com a prescrição8,9. Desse modo, uma vez que a prescrição seja considerada necessária, observa-se uma potencial perda de oportunidade para garantir a saúde da paciente e um desperdício de recursos10.
O presente estudo teve como objetivo avaliar a taxa de adesão durante a gestação em amostra de mulheres brasileiras e sua associação com possíveis fatores sociodemográficos.
Métodos
Foi realizado um estudo transversal no serviço de obstetrícia do Hospital Universitário Professor Alberto Antunes - HUPAA. O serviço é dotado de 30 leitos de obstetrícia clínica e 30 leitos de obstetrícia cirúrgica e atende, em média, 140 partos por mês, a maioria de pacientes provenientes de Maceió e região metropolitana. A população de referência foi constituída por todas as puérperas com 18 anos ou mais, atendidas entre os meses de agosto e novembro de 2010, com idade gestacional superior a 22 semanas e peso do feto igual ou maior que 500 g, não sendo considerada a presença de feto vivo ou morto. Foram excluídas puérperas em uso de sedativos e ou outros medicamentos capazes de alterar seu estado de consciência, ou que apresentassem dificuldades de se comunicar.
O recrutamento ocorreu por meio de convite verbal a pacientes internadas na enfermaria de puerpério, a partir de três horas após o parto normal ou seis horas após o parto cesáreo. As puérperas foram convidadas a participar da pesquisa pelos pesquisadores por meio de entrevista face a face, com uso de dois questionários estruturados.
O primeiro instrumento foi elaborado especificamente para essa pesquisa e previamente validado em estudo piloto contendo perguntas abertas e fechadas sobre características sociodemográficas (idade, procedência, estado civil, grau de escolaridade, ocupação e renda), antecedentes obstétricos e de concepção (número de gestações anteriores, uso e tipo de método contraceptivo), assistência pré-natal e uso de medicamentos prescritos e não prescritos durante a gravidez (presença, número de medicamentos e indicação de uso). O segundo instrumento foi a escala de adesão terapêutica de Morisky - MMAS-4, um dos principais métodos de determinação da adesão terapêutica11,12. A MMAS-4 é composta por quatro perguntas que objetivam avaliar o comportamento do paciente em relação à utilização de tratamentos prescritos: 1) "Você, alguma vez, esquece de tomar o seu remédio?"; 2) "Você, às vezes, é descuidado quanto ao horário de tomar o seu remédio?"; 3) "Quando você se sente bem, algumas vezes deixa de tomar seu remédio?"; 4) "Quando você se sente mal com o remédio, às vezes, deixa de tomá-lo?". Todas as questões se referiram à utilização de medicamentos durante os últimos 30 dias. Foram considerados aderentes os pacientes que responderam negativamente às quatro perguntas. O comportamento não aderente foi classificado, de acordo com a literatura, em: intencional, observado quando o paciente toma a decisão de parar de usar o medicamento por ter percebido alguma reação adversa ou sentir-se bem em relação ao seu problema de saúde; não intencional, quando o paciente esquece ou é descuidado no horário de tomar os medicamentos; ou misto, quando apresenta os dois tipos de comportamento11,12. As entrevistas foram conduzidas por um investigador previamente treinado para a execução do estudo.
Foi constituído um banco de dados por meio do programa Epi-info, versão 6.04. Procedeu-se a dupla entrada e validação dos dados por meio do programa Validate. Para a comparação da distribuição das variáveis idade e paridade entre os grupos, foi utilizado Teste H de Kruskal-Wallis com os resultados expressos em média e desvio-padrão. Para a comparação da ocorrência das variáveis sociodemográficas (procedência, estado civil, escolaridade, ocupação e renda), antecedentes obstétricos (número de abortos anteriores) e assistência pré-natal (trimestre de início do pré-natal), entre os grupos, utilizou-se o Teste de Χ2 de Pearson e exato de Fisher, com valores expressos em porcentagem. O nível de significância (p) considerado foi de 0,05.
O estudo foi iniciado após a submissão e a aprovação do projeto junto ao Comitê de Ética em Pesquisa sob o nº 014679/2010-45. Os propósitos do estudo, sua metodologia e o compromisso de confidencialidade dos dados foram explicados aos indivíduos, os quais não receberam incentivo de qualquer espécie, no ato da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), conforme resolução n° 196/1996, do Consenho Nacional de Saúde (CNS).
Resultados
Durante o período do estudo, ocorreram 306 partos no local, dos quais 221 foram de pacientes consideradas elegíveis pelos critérios de inclusão. Ao todo, 135 pacientes foram convidadas a participar do estudo, cinco das quais se recusaram a prosseguir (taxa de recusa de 3,8%). Assim, foram entrevistadas 130 pacientes.
A média de idade das gestantes foi de 22,5 anos (DP=6,5), com idade mínima de 18 anos e máxima de 42 anos. A maioria das gestantes não possuía renda própria, não exercia atividade remunerada e possuía baixa escolaridade. A maior parte (55,4%) era proveniente de Maceió, as demais eram oriundas de outros municípios. A paridade média foi de 2,6 (DP=2,2) com amplitude de 01-12 filhos. Embora a maior parte das gestantes tenha recebido assistência pré-natal, apenas pouco mais da metade referiu ter iniciado no primeiro trimestre da gravidez (Tabela 1).
Ao menos um medicamento foi utilizado durante a gestação por 96,9% das pacientes. Foram reportados um total de 372 medicamentos com média de 2,8 medicamentos por paciente. Dentre esses, os principais foram os antianêmicos e medicamentos da classe dos analgésicos não opioides e anti-inflamatórios não esteroidais.
Quando perguntadas sobre os medicamentos utilizados durante a gestação, 8,4% das gestantes não souberam o nome do medicamento, recordando apenas sua indicação terapêutica. Os dois problemas de saúde mais referidos como motivadores do uso dos medicamentos foram infecção urinária e náuseas. Quanto ao número de medicamentos, 13,1% das pacientes utilizaram um único medicamento durante a gravidez, 71,6% fizeram uso de dois a quatro e 12,3% usaram cinco ou mais medicamentos diferentes.
De acordo com as recomendações da MMAS-411, apenas 19,2% das pacientes foram consideradas aderentes ao tratamento medicamentoso. O principal tipo de não aderência foi o misto, observado em mais de 60% das pacientes (Tabela 2).
Após a análise da relação entre as características sociodemográficas das pacientes e seu grau de adesão ao tratamento, observou-se que não houve associação significante da adesão com faixa etária, estado civil e procedência das pacientes. De forma contrária, fatores como a escolaridade, renda própria e ocupação influenciaram a adesão ao tratamento medicamentoso. A relação entre o número de medicamentos e o grau de adesão terapêutica não foi significativa (Tabela 3).
O número de partos também não demonstrou ser determinante na adesão, ao contrário do trimestre da gravidez em que foi iniciado o pré-natal. As pacientes que já haviam realizado aborto tiveram adesão menor que as que não sofreram aborto prévio.
Discussão
A prevalência do uso de pelo menos um medicamento durante a gestação observada no atual estudo se assemelha aos achados de estudos farmacoepidemiológicos realizados no Brasil, nos quais mais de 90% das pacientes utilizaram ao menos um medicamento durante a gestação13-15. Esse valor elevado pode ser explicado em parte pela ampla prescrição de vitaminas, suplementos minerais e antianêmicos, utilizados pela maioria das pacientes, tendência igualmente observada nos estudos acima. No entanto, no decorrer de uma década, a utilização desses medicamentos se tornou menos discutível e mais recomendada, o que poderia implicar em um aumento da adesão à terapia prescrita16. Tal hipótese, porém, ainda não foi testada, pois a investigação da adesão terapêutica durante a gestação é tema de estudos recentes, com foco no uso de sulfato ferroso e ácido fólico, limitando eventuais comparações com os achados do presente estudo17-20.
A maioria das pacientes (80,8%) revelou um comportamento não aderente ao tratamento medicamentoso. Dessas, apenas pouco mais de um terço disse não aderir ao tratamento por descuido ou esquecimento, o que indica a predominância de um comportamento refratário à utilização de medicamentos durante a gestação. Em um ensaio clínico randomizado sobre a adesão à suplementação de ferro, o grupo de gestantes que recebeu o tratamento na forma de comprimidos de liberação gástrica - com menor taxa de efeitos colaterais gastrointestinais - apresentou taxa de adesão de 62%, enquanto 42% das pacientes do grupo que recebeu comprimidos convencionais aderiu ao tratamento21. Outro estudo observou uma tendência declinante da adesão a 3 esquemas de suplementação durante a gestação, de acordo com a posologia utilizada durante 16 semanas: 92% para uma drágea semanal, 83% para duas drágeas por semana e 71% de aderentes entre as que usaram uma drágea por dia20.
A interrupção do tratamento - seja devido ao surgimento de reações adversas, seja porque o paciente acredita não precisar mais do medicamento - é um tipo de comportamento caracterizado como não adesão intencional; descuidos ou esquecimentos, por sua vez, caracterizam a não adesão não intencional12. Assim, intervenções que ajudem a lembrar o horário de tomar os medicamentos poderão ter benefícios na não adesão não intencional, mas terão pouca influência sobre a não adesão intencional. Para evitar esse tipo de comportamento das pacientes, deve-se, além de lhes prover a educação sobre o processo saúde-doença, investir no esclarecimento sobre as principais reações adversas dos tratamentos medicamentosos. Tal suporte ao automonitoramento da terapia pode reduzir o comportamento não aderente intencional durante a gestação22. Além disto, instrumentos de mensuração da adesão como o MMAS-4, podem ser utilizados como instrumentos de avaliação diagnóstica na prática clínica, por meio do qual um profissional de saúde - especialmente o prescritor - investiga a presença de um comportamento aderente intencional ou não intencional e provê orientação e aconselhamento ao paciente com base em seu comportamento.
A adesão ao tratamento medicamentoso foi menor em pacientes com maior escolaridade, aborto prévio e com ocupação remunerada. Uma hipótese para tais achados é a maior sensibilização dessas gestantes para os riscos do uso de medicamentos, seja por maior acesso à informação ou por experiências negativas durante gestações anteriores. A rotina de trabalho dessas pacientes poderia explicar, por sua vez, a dificuldade em estabelecer uma rotina de medicação, o que pode ser corroborado pelos resultados deste estudo, uma vez que o comportamento não aderente não intencional, associado ao comportamento não aderente intencional, foi observado em quase dois terços das pacientes. Embora o pequeno número de estudos realizados até o momento indique uma proporção de pacientes aderentes aquém do ideal, as causas da baixa adesão terapêutica durante a gestação não têm sido investigadas, o que ressalta a importância da utilização de métodos de determinação da adesão terapêutica capazes de identificar tais causas, a exemplo de alguns métodos de autorrelato19,21.
O início da assistência pré-natal no último trimestre da gestação também foi associado ao aumento da adesão. Nesse caso, deve-se distinguir entre o achado e a sua causa. Por um lado, uma maior adesão terapêutica é normalmente consequência de uma abordagem colaborativa entre médico e paciente, o que levaria a um aumento da adesão na medida em que o período de acompanhamento pré-natal fosse prolongado23. Por outro, instrumentos como o MMAS-4 se utilizam de questões sobre atitudes recentes do paciente em relação à medicação. Assim, pacientes que iniciaram o pré-natal de forma tardia, teriam, naturalmente, menos oportunidades de perder doses do que aquelas que iniciaram o pré-natal há mais tempo.
Entre os tratamentos mais utilizados, destacou-se a suplementação com sulfato ferroso, tanto em associação com vitaminas e minerais, quanto isoladamente, resultado semelhante ao encontrado em estudo realizado por Fonseca et al., no qual 91,8% das gestantes fizeram uso da suplementação de ferro13. Tal tendência encontra justificativa na elevada prevalência de anemia entre gestantes e pelo crescente e prioritário interesse dos órgãos governamentais e profissionais de saúde nos programas de suplementação24,25. A efetividade desses programas depende da utilização desses medicamentos pelas gestantes, sendo importante avaliar não apenas a adesão terapêutica, mas também se esta conduta realmente diminui o risco da deficiência de ferro e de anemia em gestantes. Além do sulfato ferroso, destaca-se a utilização do ácido fólico. O relato do seu uso por gestantes é comum, variando de acordo com as diferentes regiões do país, Guerra et al., observaram sua utilização em 12,9% das gestantes, em pesquisa realizada na cidade de Natal, em contraste com a sua utilização por quase dois terços das gestantes no presente estudo14.
No entanto, os resultados aqui analisados devem ser entendidos à luz das limitações do estudo entre as quais foram incluídos o viés de memória das entrevistadas e as naturais restrições na generalização dos resultados para toda a população de interesse, devido não apenas ao tamanho amostral, mas também às características das pacientes estudadas. De modo semelhante, fatores de confusão não identificados e vieses de resposta não podem ser descartados, uma vez que a diferença sistemática entre uma resposta verdadeira e aquela obtida é comum aos métodos de autorrelato e pode ainda estar relacionada à maneira de se fazer a pergunta ou até à maneira de entender a resposta. Esses últimos aspectos, no entanto, foram considerados preventivamente por meio de treinamento e da utilização de um único entrevistador.
A escolha de um método de autorrelato amplamente utilizado teve como propósito não apenas reafirmar a viabilidade de instrumentos de fácil aplicação e baixo custo nos esforços para dimensionar o problema da não adesão, mas também investigar as suas causas, uma vez que ainda são escassas e baseadas em empirismo as informações compiladas até o presente para o desenvolvimento de métodos de otimização da adesão entre pacientes gestantes.
O reduzido número de estudos sobre a adesão terapêutica durante a gestação limita a comparação de achados, no entanto, os baixos níveis de adesão aqui observados indicam uma necessidade de aprofundamento no tema. A realização de outros estudos que permitam dimensionar o impacto da não adesão durante a gestação e suas causas, a investigação aprofundada de fatores socioeconômicos, bem como a relação entre a adesão terapêutica e o acompanhamento pré-natal, pode esclarecer vários aspectos que atualmente comprometem ou otimizam a efetividade de diversos tratamentos prescritos durante a gestação. Nesse sentido, novos estudos envolvendo populações distintas e considerando a relação entre a adesão e os desfechos clínicos perinatais vêm sendo desenvolvidos pelos autores deste estudo.
Recebido: 04/10/2011
Aceito com modificações: 01/12/2012
Trabalho realizado na Universidade Federal de Alagoas - UFAL - Maceió (AL), Brasil.
Conflito de interesses: não há.