DOI: 10.1590/S0100-72032011000400004 - volume 33 - Abril 2011
Juliana Barroso Zimmermmann, Hugo Silva Neves, Paula Beck de Souza, Dulciana Maria Ferreira Pena, Monique Policiano Pereira, Tatiana dos Reis Nunes, Patrícia Landim Oliveira
Introdução
Com a evolução da epidemia de AIDS nas últimas décadas, houve expressivo número de casos entre heterossexuais, resultando no aumento da incidência entre as mulheres. A heterossexualização ou feminização acelerou a disseminação geográfica do vírus da imunodeficiência humana (HIV) em todo o território nacional, determinando também o aumento de crianças infectadas pela transmissão materno-infantil (TMI)1-3. A TMI pode acontecer na gestação, no parto e também na amamentação, mas 65% dos casos ocorrem no parto e a carga viral materna é um fator de risco determinante na transmissão1-3. O feto pode infectar-se pelo contato direto do sangue ou da secreção cérvico-vaginal materna através da pele, exposição traqueobrônquica ou pelo aleitamento materno4.
Apesar das intervenções preconizadas determinarem grande impacto na redução da transmissão vertical, a cobertura das ações recomendadas ainda é baixa, pois existem falhas no processo de detecção, seja pela ausência ou início tardio do acompanhamento pré-natal, pelo atendimento pré-natal sem a realização do teste anti-HIV ou até mesmo com realização de teste, mas sem o resultado em tempo hábil para a avaliação5-6.
A abordagem da infecção pelo HIV em gestantes deve ser realizada a partir do conhecimento do seu status sorológico. Atualmente, de acordo com as Diretrizes do Ministério da Saúde, utiliza-se anti-retrovirais (ARV) em esquema tríplice no pré-natal e zidovudina (AZT) parenteral no momento do parto. Recomenda-se a via de parto de acordo com a viremia plasmática, suprimindo a lactação do recém-nascido, que recebe formulação láctea e AZT oral. Quando todas as recomendações são seguidas, a transmissão vertical é de 1 a 2%7-8. Após 34 semanas, se a carga viral materna for menor que 1.000 cópias/mL, a paciente poderá evoluir para parto vaginal. Nos casos os quais se desconhece a carga viral ou em pacientes com carga viral maior, faz-se a cesariana eletiva com 38 semanas de gestação. Com a realização destas medidas, muitos serviços não identificaram casos de TMI nos últimos anos9-12. Baseado no exposto, este estudo objetivou verificar a frequência de testes anti-HIV realizados no pré-natal, de testes rápidos solicitados no momento da resolução do parto bem como a avaliação da implantação das diretrizes do Ministério da Saúde na prática das emergências obstétricas.
Métodos
Trata-se de uma pesquisa de corte transversal na qual foram estudadas pacientes admitidas para parto no Serviço de Obstetrícia da Universidade Federal de Juiz de Fora, Maternidade Therezinha de Jesus, no período de janeiro a julho de 2010. A maternidade pública é referência na cidade e região para o atendimento de pacientes vinculadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), de baixo ou alto risco obstétrico.
Foram incluídas 711 pacientes internadas para resolução da gravidez e que permitiram que seus dados clínicos fossem avaliados. Foram excluídas as pacientes internadas por outras causas que não o parto (infecção urinária, inibição de trabalho de parto prematuro, controle pressórico), as que, embora tenham evoluído para parto, tiveram como causa da internação o controle clínico, as que não permitiram que seus dados clínicos fossem incluídos no estudo e as pacientes que não permitiram que o teste rápido para o HIV fosse realizado. Todas as participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e o estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da Maternidade Therezinha de Jesus/UFJF.
O começo da pesquisa deu-se com a avaliação inicial, como identificação dos motivadores da consulta na emergência e verificação de dados obstétricos (idade gestacional, número de gestações e partos, identificação de intercorrências clínicas e de patologias de base). A seguir procedeu-se o exame físico com avaliação de dados clínicos (hidratação e coloração das mucosas, medida da pressão arterial, edema) e obstétricos (medida da altura uterina, ausculta dos batimentos cardíaco-fetais, dilatação e apagamento do colo uterino, apresentação e bolsa das águas). Finalmente, avaliaram-se os exames complementares priorizando-se, para o estudo, o teste para a detecção de anticorpos anti-HIV. Quando o teste não foi realizado no pré-natal ou sua execução ocorreu no primeiro trimestre, a paciente era submetida ao teste rápido (após orientação e concordância), conforme protocolo do serviço. O teste rápido tem sensibilidade de 100% e especificidade de 99,98% para os anticorpos do HIV. Trata-se de um teste imunocromático de leitura visual para a detecção qualitativa de anticorpos do HIV-1 e HIV-2, utilizando-se amostra de sangue periférico. O teste é de execução rápida, com sangue proveniente da ponta dos dedos. Quando positiva, a amostra sanguínea era encaminhada para a detecção padrão, utilizando-se os testes ELISA e Western Blot, conforme normas do Ministério da Saúde13.
As informações obtidas a partir dos dados da anamnese, do exame físico e de exames complementares foram transcritas, por digitação para meio magnético, e processadas em computador por meio de recursos de processamento estatístico do software MS Access (2003), pelo qual foi criado um banco de dados específico para o trabalho. A avaliação estatística foi realizada com os softwares Epi Info, vc. 6.0 e o pacote estatístico SPSS. Inicialmente foram construídas as distribuições de frequência das variáveis examinadas e calculadas as taxas de prevalência indicadas para cada caso. Foram calculados as médias e desvios padrão (DP) de variáveis expressas em escala numérica. No teste de significância estatística das diferenças observadas na análise, utilizou-se o teste do χ2 e quando uma das frequências esperadas foi menor que cinco, utilizou-se o teste de Fisher. Foram incluídas no modelo de regressão logística todas as variáveis com valor p<0,25, denominadas modelo inicial. Em seguida, as variáveis não-significativas (valor p>0,05) foram retiradas uma a uma, segundo o maior valor p, considerando-se ainda a significância clínica. O nível de significância estatística adotado foi de 5%.
Resultados
As 711 pacientes participantes do estudo tinham média etária de 25,7 ±6,7 anos, sendo a idade máxima e mínima 44 e 12 anos, respectivamente. A média da idade gestacional no momento do atendimento foi de 38,4±6,7 semanas. Destas pacientes, 96,3% (n=685) tinham acompanhamento pré-natal, sendo que 11,1% (n=79) fizeram pré-natal na Maternidade Therezinha de Jesus/UFJF. A média de consultas no pré-natal foi de 6,8±2,8, mas 28,1% tiveram menos de 6 consultas. Dentre as complicações verificadas no pré-natal identificaram-se anemia (9,7%; n=69), diabetes (2,5%; n=18) e síndromes hipertensivas (6,2%; n=44), conforme a Tabela 1.
Após a internação, as pacientes foram acompanhadas no centro de parto. Do total, 71,3% (n=507) tiveram parto vaginal, 25,5% (n=181) cesariana, 3,2% (n=23) parto a fórcipe e 15pacientes (2,9%) foram admitidas em período expulsivo.
Em relação ao rastreio da infecção pelo HIV, 87,6% (n=623) realizaram o exame de HIV no pré-natal, mas 25,7% (n=183) tinham feito este teste há mais de seis meses da internação, em geral no primeiro trimestre de gravidez. O teste rápido para o HIV foi realizado em 52,6% (n=374) no momento da admissão (Figura 1).
Foram identificadas 10 pacientes com teste reativo (1,4%), sendo que 2 eram sabidamente soropositivas para o HIV e tinham sido apresentadas desta maneira no rastreio pré-natal. A carga viral foi realizada e estava indetectável com 36 semanas de gestação. As oito pacientes restantes foram identificadas pelo teste rápido, realizado na internação. As pacientes soropositivas para o HIV (n=10) foram internadas no centro de parto e realizaram-se cesariana em 60% (n=6) delas e parto vaginal em 40% (n=4). Três pacientes foram admitidas em período expulsivo. A profilaxia intraparto foi realizada em 70% (n=7) e a do recém-nascido, em todos os casos (n=10; 100%).
Para as pacientes sabidamente portadoras da infecção pelo HIV, anotaram-se os exames de carga viral e contagem de linfócitos TCD4±, quando disponíveis. Não foi possível calcular a média da contagem de linfócitos TCD4± e da carga viral considerando a realização dos testes em diferentes laboratórios.
A análise multivariada identificou que as pacientes que realizaram pré-natal em nosso serviço tiveram menor frequência de anemia (valor p=0,02), maior frequência de exames colpocitológicos realizados (valor p=0,03), maior número de consultas no pré-natal (valor p=0,02), maior rastreio para o HIV no pré-natal (valor p=0,01) e menor frequência de testes rápidos realizados na admissão (valor p=0,02).
Discussão
A frequência da infecção pelo HIV na população estudada foi de 1,4%. Estudo anterior realizado na Maternidade Therezinha de Jesus/UFJF aponta frequências de 0,5% a 4,0% entre os anos de 1999 e 2002, entretanto, nele foram avaliadas pacientes em regime de pré-natal e não na admissão hospitalar14.
A pesquisa atual selecionou pacientes atendidas no momento do parto, mas apenas duas foram diagnosticadas no pré-natal, apesar de 96,3% delas terem realizado controle pré-natal e 87,60% terem sido submetidas ao teste anti-HIV no pré-natal. O estudo sentinela parturiente verificou que as recomendações do Ministério da Saúde relativas à detecção precoce da infecção pelo HIV (isto é, início do pré-natal no primeiro trimestre, seis ou mais consultas, pedido do teste de HIV e conhecimento do resultado do teste antes do parto) foram realizadas em 27% dos casos, no Brasil, com variação de 10 a 42%15. Estes dados demonstram falhas na operacionalização das ações para a prevenção da transmissão vertical do HIV na rede pública de saúde. Embora a maioria das gestantes tenha sido testada para o HIV, muitas ainda chegam à época do parto sem terem realizado a sorologia, apontando uma lacuna na assistência básica pré-natal15,16. Esta pesquisa aponta que o problema atual, na região de Juiz de Fora, Minas Gerais, não parece ser a cobertura pré-natal, mas sim a sua qualidade, porque apesar da maioria das pacientes ser acompanhada em regime de pré-natal, 28,1% teve menos de seis consultas e 8 foram diagnosticadas com o teste rápido no momento da internação e não durante o pré-natal, mesmo a testagem tendo sido próxima a 90%.
A frequência de testes rápidos realizados foi elevada (52,6%). Os motivadores foram associados à não realização do teste no pré-natal, intervalo de tempo entre o teste e o parto maior que seis meses ou indisponibilidade do teste para avaliação. Acredita-se que a não detecção do HIV durante o pré-natal representa uma oportunidade perdida de prevenção da transmissão vertical e, por isso, o uso do teste rápido para a identificação de anticorpos anti-HIV no momento do parto deveria ser uma exceção17. Entretanto, esta prática vem se tornando uma rotina, já que a assistência pré-natal ainda não é considerada ideal. A partir de 2007, o Ministério da Saúde recomendou uma segunda testagem para o HIV no terceiro trimestre de gestação, principalmente para as gestantes avaliadas no primeiro trimestre. Acreditamos que este foi um dos motivos que incrementaram a realização dos testes rápidos, pois muitas pacientes não tinham a repetição do teste preconizada. Em outros casos, o resultado do exame não estava disponível com a paciente e nem anotado no cartão de pré-natal. Embora a testagem rápida funcione como uma última oportunidade de diagnóstico e possibilidade de utilização da profilaxia durante o parto, ela representa o fracasso parcial dos cuidados pré-natais da prevenção da TMI18.
Foram diagnosticadas dez pacientes com infecção pelo HIV, mas apenas duas haviam recebido a profilaxia durante o pré-natal, utilizando TARV em esquema tríplice. Estas adolescentes iniciaram pré-natal com dez semanas de gestação e foram abordadas conforme protocolo do Ministério da Saúde5. Recente avaliação da TMI em Belo Horizonte, Minas Gerais, verificou que 62,1% das mulheres soropositivas receberam a profilaxia com ARV na gestação. Além disso, apenas as mulheres soropositivas e que já utilizavam ARV iniciaram o pré-natal até a 16ª semana de gestação, o que sugere que as mulheres sabidamente soropositivas provavelmente têm sido orientadas pelos serviços de saúde quanto à importância do início precoce do pré-natal19.
O fato é que oito pacientes, por terem sido diagnosticadas com o teste rápido, não receberam a profilaxia no pré-natal, o que incrementa o problema da assistência às soropositivas. Estudo realizado em 4 centros americanos, com 1.542 gestantes HIV soropositivas verificou taxa de TMI de 20% quando não se utilizou AZT, de 10,4% quando se utilizou a monoterapia com AZT e de 1,2% quando se estabeleceu a HAART, o que demonstra que a profilaxia no pré-natal é determinante na redução da TMI20. Na África, avaliação com 115 pacientes soropositivas para o HIV que receberam Terapia antiretroviral de alta atividade (HAART), verificou coeficiente de TMI do HIV de 0%9. Por outro lado, no Brasil, estudo realizado com pacientes que desconheciam seu status sorológico para o HIV verificou que o teste rápido pode ser uma alternativa para a assistência à gestante e ao recém-nascido, já que permite a inclusão da profilaxia durante o parto, para o recém-nascido e a supressão da lactação21.
Quando se avaliou a via de parto, verificou-se que seis pacientes foram internadas para cesariana, seguindo normas técnicas do Ministério da Saúde, considerando a idade gestacional e a disponibilidade da carga viral no momento do parto4,5. As quatro pacientes restantes evoluíram para parto vaginal, sendo que três delas foram admitidas em período expulsivo. Estas gestantes não receberam a profilaxia no pré-natal e nem intraparto. Sabe-se que a maioria das transmissões verticais do HIV ocorre durante ou próximo ao período intraparto e as intervenções obstétricas, como o parto cesariano, reduzem essas taxas. Por isso, as pacientes soropositivas devem ser orientadas sobre o momento ideal de interrupção da gravidez, especialmente aquelas cujos resultados da carga viral estão elevados ou indisponíveis4,20.
Todos os recém-nascidos receberam a profilaxia com AZT oral e orientação para a supressão da lactação. Entretanto, não são raros os estudos realizados no Brasil que identificaram falhas nessa assistência, já que muitas mães soropositivas para o HIV ainda amamentam seus filhos habitualmente. No Maranhão, verificou-se que a amamentação ainda acontece (n=56; 70%) e variou de 1 mês até mais de 12 meses. Em 19 casos (33,7%) a manutenção do aleitamento foi superior a 12 meses2. Embora diversos estudos tenham demonstrado que o aleitamento materno pode ser associado à transmissão vertical do HIV, incrementando um risco adicional de transmissão entre 7 e 22%, ela ainda é uma realidade. Estima-se que ocorram 8,9 transmissões para cada 100 crianças em um ano de aleitamento21-24.
Apesar das medidas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, ainda existem falhas na abordagem destas pacientes. Um estudo revelou que 24% das gestantes não receberam profilaxia na gestação e 7,6% dos bebês não foram medicados com o AZT oral, o que determinou coeficiente de TMI de 5,6%, apesar da disponibilidade dos insumos25. Outra pesquisa avaliou a TMI em 26 crianças nascidas de gestantes HIV soropositivas e a transmissão ocorreu em três casos cuja profilaxia ARV não foi realizada e a amamentação mantida4.
Outro problema na assistência está na distribuição da formulação láctea. No Ceará, 20,6% das mães entrevistadas não receberam o produto quando tiveram alta hospitalar26. Além disso, o uso de leite artificial deve ser acompanhado por uma equipe que proporcione informação à mãe no preparo da fórmula infantil e avalie a criança, conforme normas do Ministério da Saúde. Caso contrário, poderá ocasionar diarreia, desnutrição e outras afecções, especialmente em regiões desprovidas de água potável19,26.
Quando as pacientes foram comparadas de acordo com a origem do pré-natal, verificou-se que as que frequentaram o pré-natal na Maternidade Therezinha de Jesus/UFJF estavam menos anêmicas, foram submetidas a rastreio no pré-natal para o HIV e a exame colpocitológico com maior frequênciafizeram menos testes rápidos na admissão do parto e tiveram maior número de consultas no pré-natal. Estes dados evidenciam que um sistema de rotina eficiente, profissional médico dedicado e com instrumental para a execução dos procedimentos necessários é elemento indispensável na assistência às adolescentes em questão27.
Considerando a grande extensão do país, bem como as diferenças sociais e econômicas das regiões, a assistência à gestante soropositiva para o HIV é questionável. Embora, em algumas regiões a TMI seja praticamente zero, em outras ela ainda preocupa. O rastreio inadequado, sem a repetição do teste no último trimestre, a falta de resultados disponíveis no momento do parto e o não agendamento das cesarianas em caráter eletivo são elementos que facilitam a TMI. Todos estes problemas seriam neutralizados com um pré-natal eficiente, iniciado precocemente, com oferecimento do teste no primeiro e terceiro trimestres, utilização da profilaxia ARV na gestação e parto e, a seguir, no recém-nascido, bem como acompanhamento e orientação sobre a formulação láctea. Entretanto, ainda se assiste na emergência pacientes em trabalho de parto, sem qualquer conhecimento de seu status sorológico, com cartão de pré-natal incompleto19-22. Durante muito tempo, o Ministério da Saúde se preocupou com a cobertura do pré-natal. Na região de Juiz de Fora, Minas Gerais, o momento atual é de se preocupar com a qualidade do pré-natal oferecido.