DOI: 10.1590/S0100-72032011000100007 - volume 33 - Janeiro 2011
Allex Jardim da Fonseca, Anderson Cesar Dalla-Benetta, Leonardo Pires Ferreira, Cibelli Roldan Navarro Martins, Cynthia Dantas Macedo Lins
Introdução
Aproximadamente 2% dos casos de câncer de colo de útero (CCU) ocorrem em mulheres grávidas. Metade desses casos é descoberta no puerpério; 30% durante o parto; e apenas 20% no período pré-natal1. Isso torna o CCU uma das malignidades mais comuns durante a gestação (assim como o câncer de mama), com incidência estimada de aproximadamente 1 caso por 1.000 a 2.500 nascidos vivos2-4.
Mais comumente, o CCU se manifesta em estádios precoces durante a gravidez. Em estudo que revisou 494 casos de CCU em gestantes, 83,9% dos casos foram estadiados como I e 11,8% como II (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia FIGO)5. A detecção do câncer em estágios iniciais é três vezes mais frequente em mulheres grávidas quando comparadas às não grávidas, provavelmente devido ao rastreio citológico pré-natal rotineiro e à dificuldade que mulheres com câncer localmente avançado podem enfrentar para engravidar.
Apesar de estudos retrospectivos não revelarem diferença no prognóstico de pacientes com CCU grávidas em comparação às não grávidas, os dados são limitados, especialmente quanto ao seguimento de longo prazo6. Alguns autores têm publicado resultados de atrasos deliberados para o tratamento radical (cirurgia com ou sem tratamento adjuvante e radioquimioterapia) com o intuito de se alcançar a maturidade fetal7-10. A maioria dos relatos de casos consiste de pacientes com lesão no estádio I, com média de atraso programado para o tratamento de 12 semanas (1 a 32 semanas). Na maioria dos casos relatados, observou-se alguma progressão tumoral durante o atraso, porém, com prognóstico materno-fetal satisfatório7-10. Entretanto, raros casos dessa abordagem foram relatados em pacientes com doença localmente avançada, além da recomendação de se evitar o atraso no tratamento para pacientes com tumor maior que 4 cm ou com linfonodos positivos10. Nesses casos, a avaliação linfonodal pode ser realizada por via laparoscópica11.
A dificuldade de fazer predições sobre o prognóstico gera incertezas para pacientes e médicos. Nesse sentido, o manejo dessas pacientes ainda é um desafio para as equipes médicas em virtude da inexistência de estudos randomizados abordando o assunto. Em geral, as condutas são baseadas em evidências de estudos de mulheres não grávidas. O objetivo deste trabalho foi rever as estratégias de tratamento de pacientes grávidas portadoras de CCU, especialmente o papel da quimioterapia neoadjuvante para controlar a doença neoplásica enquanto se aguarda a maturidade fetal, assim como sua segurança para a paciente e para o concepto, além de adicionar um novo caso à literatura mundial.
Relato de caso
Mulher negra de 30 anos, grávida de 24 semanas, foi encaminhada ao serviço devido a sangramento vaginal. O exame especular evidenciou lesão tumoral infiltrando o colo de útero superiormente, friável e sangrante, e o exame físico revelou que a massa acometia parcialmente o paramétrio bilateralmente. O fundo do útero era palpável a 22 cm do púbis, e os batimentos cardíacos fetais eram de 120 bpm. Uma biópsia cervical foi realizada revelando carcinoma de células escamosas moderadamente diferenciado. O exame de ressonância magnética do abdômen total revelou lesão cervical de 3 x 4 cm acometendo o paramétrio bilateralmente, sem sinais de dilatação de vias urinárias, lesões a distância ou linfonodomegalia locorregional. Cistoscopia e retosigmoidoscopoia descartaram invasão de bexiga e reto. A radiografia de tórax foi normal. O câncer da paciente foi estadiado como IIB FIGO. A paciente era nulípara e rejeitou a interrupção da gravidez. Após um meticuloso esclarecimento das opções e dos riscos relacionados, a paciente, juntamente com a equipe médica, decidiu iniciar quimioterapia neoadjuvante com cisplatina 75 mg/m2 e vincristina 1 mg/m2 a cada 21 dias, com programação de parto cirúrgico concomitante à cirurgia radical. Os exames laboratoriais pré e pós-tratamento estão ilustrados na Tabela 1.
Quatro ciclos de quimioterapia foram administrados nas semanas 25, 28, 31 e 34. O tratamento foi bem tolerado, sem toxicidades relevantes ou atrasos. Após o primeiro ciclo, a paciente relatou cessação do sangramento vaginal e das dores pélvicas. Na 28ª semana, a paciente foi submetida à ultrassonografia obstétrica com dopplerfluxometria, com resultados normais. Não havia sinais de restrição de crescimento intrauterino, o índice de líquido amniótico era compatível com a idade gestacional e a placenta estava localizada na região fúndica. Após o terceiro ciclo, a avaliação ginecológica revelou resposta clínica completa.
A cirurgia foi programada para a 38ª semana de gestação. Três dias antes, na 37ª semana + 4 dias, a paciente foi admitida em trabalho de parto com 7 cm de dilatação do cérvix. A equipe de obstetrícia optou por monitorização fetal e prosseguimento do parto vaginal. Após três horas, a paciente deu à luz um recém-nascido do sexo masculino, sem intercorrências, com Índice Apgar de 1º e 5º minutos de 8 e 9, respectivamente, pesando 2.450 g (abaixo do percentil 10 de peso fetal estimado para a idade gestacional). Não foi evidenciado sangramento anormal no puerpério. Três dias depois, a paciente foi submetida à histerectomia radical com linfadenectomia pélvica e paraaórtica, também sem intercorrências. A mãe e o recém-nascido receberam alta no quinto dia de pós-operatório, ambos em excelentes condições gerais. A análise histopatológica revelou carcinoma escamoso moderadamente diferenciado restrito ao colo uterino, com 11 mm de invasão e 20 mm de diâmetro. Os paramétrios e a cúpula vaginal foram livres de neoplasia. As margens cirúrgicas foram livres e não se evidenciou envolvimento linfonodal. Não foi indicado nenhum outro tratamento adjuvante. O seguimento da paciente realizou-se com consultas clínicas trimestrais no serviço de Oncologia, associado a exame especular e citológico vaginal, ultrassonografia abdominal total e radiografia de tórax. Após seguimento de 12 meses, a mãe não apresentou nenhuma evidência da doença neoplásica e a criança apresentou desenvolvimento normal.
Discussão
Em mulheres não grávidas, o uso de quimioterapia neoadjuvante para o CCU tem sido associado à conversão da doença localmente avançada e inoperável em doença operável, além de poder controlar micrometástases em sítios distantes, bem como em linfonodos locorregionais. Dois estudos fase III em pacientes não grávidas com CCU localmente avançado revelaram benefício de sobrevida global para o grupo tratado com quimioterapia neoadjuvante, seguida de histerectomia radical, quando comparado à cirurgia isolada, à radioterapia isolada e à quimioterapia combinada com a radioterapia12,13.
Encorajados por esses resultados, alguns autores relataram suas experiências com o uso de quimioterapia neoadjuvante para o tratamento de mulheres grávidas, portadoras de CCU, com o intuito de atingir regressão tumoral ou estabilização enquanto se aguarda a viabilidade fetal. Até a presente data, encontramos dados disponíveis de 16 casos na literatura mundial14-26. A análise destes e do presente caso, encontra-se na Tabela 2. Observamos que 13 das 16 pacientes grávidas tratadas com quimioterapia neoadjuvante apresentavam neoplasia do tipo histológico, carcinoma de células escamosas (76,4%), e foram estadiadas como I ou II FIGO (47% e 41,1%, respectivamente). Em média, três ciclos de quimioterapia foram administrados durante a gravidez. A cisplatina foi o quimioterápico mais utilizado (16 casos), comumente associado à vincristina ou paclitaxel.
A quimioterapia neoadjuvante foi eficaz em todos os casos para permitir a evolução da gravidez até a viabilidade fetal, e não foram relatadas complicações graves nos recém-nascidos. Revelou-se também eficiente para reduzir ou estabilizar a neoplasia em todos os casos durante a gravidez, com exceção de um. O tratamento definitivo realizado em 12 das 17 pacientes (70,5%) foi baseado em histerectomia radical concomitante ao parto cirúrgico, e em radioquimioterapia para três das pacientes (17,6%). Uma delas recusou o tratamento definitivo, e a paciente do nosso caso foi tratada com histerectomia radical após parto normal. Onze das 17 pacientes (64,7%) encontravam-se sem evidência da doença até o momento da publicação dos relatos. Uma paciente teve a gravidez interrompida na sexta semana de quimioterapia (28ª semana de gestação) devido à doença hipertensiva específica da gravidez (pré-eclâmpsia grave).
Estudos documentaram o risco teratogênico da quimioterapia isolada (7 a 17%) ou em combinação (até 25%) quando aplicada no primeiro trimestre da gestação27,28. Entretanto, o risco de complicações fetais ao nascimento quando a quimioterapia foi administrada no segundo ou terceiro semestre, revelou-se similar ao da população de grávidas em geral (1 a 2%). O quimioterápico com maior atividade para o CCU é a cisplatina. Essa droga vem se mostrando segura quando administrada durante a gravidez, pois menos de um terço da dose atravessa a placenta. A concentração da cisplatina nos vasos do cordão umbilical corresponde a 30% da concentração da droga no soro materno, e no líquido amniótico corresponde a aproximadamente 10%29. A neutropenia transitória no recém-nascido é uma reação adversa conhecida. Por isso, recomenda-se que a última aplicação de quimioterapia, preceda em pelo menos três semanas a data planejada do parto27.
Nossa paciente apresentou boa tolerância ao tratamento quimioterápico. De todos os casos relatados, apenas duas pacientes (11,7%) apresentaram toxicidade limitante à quimioterapia (associação de cisplatina com vincristina e paclitaxel)15,21. Nesses casos, os sintomas gastrointestinais e efeitos hematológicos foram controlados com a manutenção da cisplatina como tratamento isolado. Nesses dois casos, as pacientes foram tratadas com esquemas combinados de duas drogas antes da 20ª semana de gestação.
O peso do recém-nascido do presente caso estava abaixo do percentil 10, segundo estimativa de peso fetal de Hadlock (2.513 g para a idade gestacional)30. Não foi encontrada outra causa para o baixo peso ao nascer em nosso caso clínico senão, o tratamento com quimioterapia. Essa complicação esteve presente, em algum grau, em quase todos os casos relatados na literatura (Tabela 2). As complicações fetais mais comumente relacionadas ao tratamento quimioterápico durante o segundo e o terceiro trimestres de gestação são a restrição do crescimento intrauterino, prematuridade e baixo peso ao nascer28.
O parto vaginal normalmente não é recomendado em pacientes portadoras de CCU, pois a dilatação cervical pode liberar células tumorais viáveis que podem se implantar ao longo do canal do parto. A episiotomia deve ser evitada devido ao risco de implantação tumoral no sítio da incisão31. Pelo menos 16 casos de implantação tumoral na cicatriz da episiotomia (em pacientes que não receberam quimioterapia neoadjuvante) foram relatados na literatura, todos afetando o prognóstico da paciente. Metade das pacientes que apresentaram recorrência do CCU no sítio da episiotomia morreu da doença5. Não encontramos outros casos relatados de quimioterapia neoadjuvante para colo de útero precedendo parto normal. Assim, prevalece a recomendação de programação de parto cirúrgico para todas as gestantes portadoras de CCU, submetidas ou não à quimioterapia neoadjuvante. Em nossa paciente, a opção de monitorizar o trabalho de parto normal não foi programada, mas aconteceu devido ao bom controle da doença com a quimioterapia e, sobretudo, à admissão da paciente já com dilatação avançada do colo uterino, segundo julgamento da equipe obstétrica.
Ressaltamos que um importante aspecto ético é o extensivo esclarecimento da paciente sobre os riscos e benefícios da estratégia envolvendo a quimioterapia neoadjuvante. Essa estratégia não é baseada em resultados de estudos randomizados, mas em analogia a estudos realizados em portadoras de CCU não grávidas.
Concluímos que a quimioterapia baseada em cisplatina durante o segundo ou terceiro trimestre da gravidez parece ser uma opção segura para pacientes grávidas portadoras de CCU que não desejam a interrupção da gravidez enquanto se posterga o tratamento definitivo com o intuito de alcançar a maturidade fetal. Entretanto, ensaios randomizados e estudos com seguimentos mais prolongados são necessários para confirmar o desfecho seguro dos recém-nascidos e, sobretudo, das pacientes.
Declaração dos autores
Os autores declaram não haver conflito de interesses, suporte financeiro ou de qualquer outra natureza para a elaboração deste manuscrito. A paciente referida foi esclarecida e consentiu formalmente com este relato de caso.
Recebido 16/11/2010
Aceito com modificações 20/12/2010
Unidade de Alta Complexidade em Oncologia do Hospital Geral de Roraima – Boa Vista (RR), Brasil.
Conflito de interesses: não há
Os autores declaram não ter havido suporte financeiro ou de qualquer outra natureza para a elaboração deste manuscrito.