DOI: 10.1590/S0100-72032011001100002 - volume 33 - Novembro 2011
Regina Celi Passagnolo Sérgio Piazzetta, Newton Sérgio de Carvalho, Rosires Pereira de Andrade, Giovana Piazzetta, Silvia Regina Piazzetta, Rosangela Carneiro
Introdução
As doenças sexualmente transmissíveis (DST) estão entre os temas de grande importância na Medicina. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que as DST são a segunda enfermidade que mais acomete as mulheres entre 15 e 44 anos, nos países em desenvolvimento1. Com base na análise de adultos recém-infectados por alguma DST, a OMS estimou que, entre as mulheres, a infecção ocorre mais cedo do que nos homens e que a média de idade em que são acometidas é de 20 anos, ou seja, no período da adolescência, e as jovens adultas2.
A Chlamydia trachomatis (CT) e a Neisseria gonorrheae (NG) há muito vêm sendo consideradas importantes agentes entre as DST3. O interesse no diagnóstico e tratamento dessas DST não reside apenas no fato de serem agentes patológicos de doença pélvica feminina, mas está também na sua possível correlação com o aumento da transmissão do vírus da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS)4.
A OMS estima que a cada ano ocorram em torno de 92 milhões de novos casos de clamídia e 62 milhões de gonorreia, dos quais a maioria é observada em países em desenvolvimento, afetando principalmente adolescentes e jovens5.
No Brasil, como tais afecções não se incluem entre as DST de notificação compulsória, estima-se que ocorram cerca de 1.967.200 novos casos de clamídia e 1.541.800 casos de gonorreia a cada ano5. No entanto, os dados existentes na literatura sobre a infecção pela clamídia e pelo gonococo no Brasil são referentes a amostras pequenas, geralmente específicas de um serviço ou de um município, carecendo de estudos envolvendo as diferentes regiões do país6.
Pelo fato da infecção por CT e NG poderem ocasionar sequelas sérias, inúmeros programas foram implantados em diversos países para seu rastreio e tratamento. Porém, os dados da literatura sugerem que, embora o número dos casos de infecção pela NG tenha decaído, as taxas de infecção pela CT não têm sofrido redução apesar dos esforços nesse sentido7. Mesmo alguns autores terem atribuído o aumento das infecções por CT mais aos novos métodos de rastreamento do que ao aparecimento de novos casos8.
Estudos epidemiológicos sobre a infecção por CT e NG têm documentado uma prevalência substancial do organismo em mulheres jovens e sexualmente ativas que variam de 1 a 38 e 2 a 5%, respectivamente1,4,9-12. No entanto, a comparação das medidas de prevalência entre diferentes regiões do mundo é difícil devido aos diversos testes diagnósticos utilizados e às amostras populacionais não comparáveis13.
Nas mulheres sexualmente ativas, a idade precoce de início sexual, o número de parceiros sexuais, a troca frequente de parceiros e a baixa adesão ao uso de preservativos constituem fatores de risco tanto de infecção como de reinfecção por CT e NG6,11,13-15.
A justificativa do presente estudo foi de conhecer a prevalência dessas infecções e identificar os fatores de risco numa amostra de mulheres jovens da cidade de Curitiba, estado do Paraná, contribuindo assim para identificar o cenário da real situação das DST no Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo de prevalência realizado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), utilizando dados cedidos pelo Centro de Estudos e Pesquisas Médicas de Curitiba (CEPEME-CERHFAC), com base na análise secundária de dados coletados na admissão de sujeitos para outros estudos clínicos, os quais tinham por objetivo principal testar uma vacina para o papilomavírus humano (HPV). O protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e as voluntárias assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido antes de serem incluídas.
Por tratar-se de uma análise secundária, o cálculo da amostra foi realizado com base em estudos brasileiros de prevalência, que mostram 2% de infecções por Neisseria gonorrhoea em mulheres jovens. Considerando-se a diferença absoluta entre as proporções amostral e populacional de 1,5%, para um erro a de 5%, o tamanho da amostra foi calculado em 335 mulheres. A prevalência do gonococo foi usada para o cálculo da amostra por ser menor.
Foram incluídas no estudo: mulheres sexualmente ativas com idades entre 16 e 23 anos, útero intacto, não gestantes, possuindo antecedentes de até quatro parceiros sexuais durante a vida, sem evidência de cervicite purulenta ou febre na primeira consulta e aquelas que concordaram em não usar medicações, duchas vaginais ou manter relações sexuais nas 48 horas antecedentes ao exame pélvico.
Foram excluídas: mulheres com história de vacinação anterior para o HPV, que haviam recebido vacinas inativadas nos últimos 15 dias ou vacinas de vírus vivos nos últimos 21 dias, com citologia cervicovaginal oncótica anterior com resultado anormal (ASCUS ou NIC), história de verrugas genitais, esplenectomia, distúrbios imunológicos, trombocitopenia e uso de drogas imunossupressoras.
O examinador que atendeu as participantes procedeu a anamnese para confirmação dos critérios de inclusão e exclusão, obteve a amostra de urina e realizou o exame ginecológico (incluindo especular e toque), anotando o que encontrou de forma padronizada na ficha de coleta de dados. Tal ficha continha as informações sobre as variáveis sociodemográficas (idade, estado marital), reprodutivas (número de gestações, partos vaginais, cesáreas e abortamentos), de práticas sexuais (idade de início da atividade sexual, número de parceiros sexuais durante a vida, número de novos parceiros nos últimos seis meses, uso de preservativo) e ginecológicas (método contraceptivo utilizado, anormalidades encontradas no exame ginecológico e tratamento específico prescrito na consulta). Também constou desta ficha o resultado do exame PCR para CT e NG e tratamento específico proposto, quando foi o caso.
A amostra de urina foi obtida seguindo um protocolo realizou-se o teste segundo técnica para amplificação do DNA (PCR) para CT e NG16.
Considerou-se como cervicite as alterações como edema ou alteração do muco e/ou friabilidade (subjetivamente observadas); como ectopia, a presença de epitélio endocervical ultrapassando o orifício cervical externo em qualquer extensão; e como corrimento, todo conteúdo anormal observado e anotado pelo examinador no prontuário.
As avaliações clínicas e epidemiológicas receberam tratamento estatístico com a utilização do software EPI INFO, do Centers for Disease Control and Prevention (CDC)7, de acordo com as tabelas 2x2. Inicialmente fez-se análise descritiva simples por meio de tabelas de distribuição de frequências das variáveis. Em seguida, a análise bivariada foi apresentada em tabelas de contingência com a distribuição percentual, segundo o diagnóstico de Clamídia ou gonorreia e as diversas variáveis independentes. Foram utilizados o teste do ou o exato de Fisher para avaliar a associação entre as variáveis, e o erro tipo I foi pré-fixado em 5%, considerando-se significância da associação quando p<0,05.
Resultados
Descrição da amostra
A maioria das participantes (62,4%) possuía idade igual ou inferior a 20 anos. Cerca de 43% das mulheres relataram viver com um parceiro fixo (casadas ou amasiadas), mas a maioria era solteira (53%) e apenas uma pequena porcentagem da amostra se declarou separada ou viúva (4%).
A média de início da atividade sexual do grupo foi de 15,7 anos (desvio padrão DP=1,8) e o número de parceiros sexuais referido foi em média dois (DP=0,9), sendo que a maioria das participantes (70%) referiu ter se relacionado com um ou dois parceiros. Apenas 17% da amostra referiram novos parceiros nos seis meses que antecederam à consulta, na qual foi realizada a coleta do exame. Houve a referência ao uso de preservativo, como método anticoncepcional ou proteção contra DST, por apenas 25% das participantes do estudo. A Tabela 1 apresenta as características da amostra segundo as variáveis sociodemográficas e de prática sexual.
Quanto ao método contraceptivo em uso pelas mulheres na primeira consulta, quase metade da amostra referiu uso de anticoncepcional oral combinado. O uso de preservativo foi referido por 24% e foi considerado método contraceptivo mesmo quando associado ao uso de outro método. As demais participantes referiram uso de progestágeno injetável trimestral, dispositivo intrauterino (DIU), injetável combinado, progestágeno oral de uso contínuo; três participantes referiram usar a anovulação da lactação exclusiva como método e uma voluntária referiu laqueadura tubária. Apenas 14% das mulheres negaram uso de método contraceptivo na primeira consulta.
Quanto aos antecedentes obstétricos, pouco menos de 40% nunca tinham engravidado. Entre as que já haviam engravidado, um ou mais partos vaginais foram referidos por quase 44% e uma ou mais cesáreas por 19% das mulheres. Apenas 5,7% das participantes referiram antecedente de gravidez terminada em aborto.
Em relação aos achados clínicos, o mais encontrado de forma isolada foi o ectrópio (24,5%), seguido de corrimento (15,5%). A cervicite foi encontrada em 23,8% e nunca foi relatada pelo examinador como anormalidade isolada, estando acompanhada de corrimento em 1,2% e também de ectrópio em outros 1,2% dos casos. O achado combinado mais frequente foi corrimento com ectrópio em 8,6% das participantes. A presença concomitante de corrimento, cervicite e ectrópio foi observada em 3,9% das participantes do estudo.
Prevalência das infecções por CT e NG
A prevalência da infecção por CT no grupo estudado foi de 10,7%, sete vezes maior que a prevalência de infecção por NG, que foi de 1,5%. Três mulheres apresentavam ambas as condições, sendo a taxa de coinfecção de 0,9%.
As participantes com idade igual ou inferior a 20 anos obtiveram positividade para CT duas vezes maior que o grupo com mais idade; porém, a diferença não chegou a ser significativa (p=0,06). Não houve diferença na proporção de mulheres com positividade para NG quando avaliada a variável idade.
Não houve diferença na prevalência de infecção por CT ou NG entre as mulheres que iniciaram a atividade sexual com idade igual ou menor que 15 anos ou com mais de 15 anos completos.
Também não foi encontrada diferença na prevalência em nenhuma das infecções, quando comparou-se o grupo de mulheres que referiu um ou dois parceiros sexuais com aquele que referiu maior número de parceiros, lembrando que as participantes com mais de quatro parceiros foram excluídas da avaliação.
Quando o grupo foi dividido por número de novos parceiros referidos nos últimos seis meses, não foi observada diferença quanto à prevalência das infecções.
A distribuição percentual das mulheres, segundo resultados da PCR para CT e NG, pelas variáveis sociodemográficas e de prática sexual, é apresentada na Tabela 2.
As mulheres nas quais foram diagnosticados corrimento, ectrópio e cervicite, isoladamente ou associados entre si, apresentaram positividade para CT duas vezes maior do que as mulheres que não apresentavam nenhum destes sinais no exame ginecológico. A diferença entre mulheres com e sem estes sinais foi estatisticamente significativa para corrimento e ectrópio (p=0,02 e p=0,01, respectivamente), mas não atingiu significação estatística para cervicite (p=0,06). Quanto à infecção por NG, o baixo número de casos não permite identificar qualquer associação com o achado das alterações citadas, sejam isoladas ou associadas (Tabela 3).
Discussão
A clamídia e a gonorreia representam um grave problema de saúde pública em mulheres sexualmente ativas, já que esses agentes infectam preferencialmente as células do epitélio colunar da uretra, endocérvice, ânus e trato genital superior e provocam neles lesões semelhantes17.
Vários trabalhos confirmam a baixa sensibilidade do diagnóstico clínico da infecção por CT e por NG, principalmente no que diz respeito à CT, pois cerca de 70% das mulheres infectadas são assintomáticas6,10,18. Essas infecções, quando não tratadas, tendem a tomar o trajeto ascendente, acometendo o trato reprodutivo superior e podendo levar a alguma sequela, tais como: dor crônica; gravidez ectópica; infertilidade de causa tubária6,19, verificada em cerca de 25% das pacientes10; abortos em 12 a 20% das mulheres acometidas20; natimortos e prematuridade; além de infecções congênitas, perinatais e puerperais14,15,19. As taxas de transmissão vertical em mulheres infectadas por CT não tratadas se aproximam de 70%, causando conjuntivite de inclusão em 20 a 50% e pneumonia em 10 a 20% dos recém-nascidos expostos21, e as infecções por NG respondem por cerca de metade dos casos de conjuntivite neonatal nos países em desenvolvimento10,22,23.
Ainda, alguns estudos têm sugerido a infecção por CT como um fator de risco independente para o desenvolvimento de câncer cervical14,18.
No Brasil, um estudo que envolveu seis capitais, em 2005, encontrou uma prevalência média de 9,4% para a CT e de 1,5% para a NG6, valores semelhantes a outros estudos nacionais realizados com amostras de gestantes ou mulheres jovens sexualmente ativas, atendidas em clínicas de DST4,10,13-15,18,21,24,25.
No presente estudo encontrou-se prevalência maior para a CT e menor para a NG do que as médias nacionais, embora tal diferença possa ser devido à metodologia utilizada. O estudo de 2005 utilizou a captura híbrida em amostra cervicovaginal para rastreio, enquanto que este estudo utilizou a PCR em amostra de urina, levando em conta que esse teste possui grande sensibilidade e especificidade para o diagnóstico da clamídia14,25,26, tendo sido também utilizada como técnica diagnóstica para infecção gonocócica em vários trabalhos10,11. Uma metanálise de estudos de prevalência de CT mostrou média de 5,6%, com mínimo de 2,6% e máximo de 13,9% em populações semelhantes à nossa25.
Apesar das pequenas diferenças entre as prevalências descritas nos estudos com mulheres brasileiras, todas têm sido consideradas altas pelos autores13, inclusive as que foram obtidas neste estudo. O número de casos de coinfecção descritos em literatura varia de 2 a 40%6,11,19,24, valor superior à taxa de 0,9% obtida no presente estudo, o que pode ser atribuído ao baixo risco observado na população em estudo.
Nas mulheres sexualmente ativas, a faixa etária de 16 a 24 anos foi identificada como um fator de risco tanto de infecção como de reinfecção por CT, sendo que o fator de risco mais importante é a idade menor que 20 anos6,11,13,15. Essa associação pode ser explicada, em parte, pelo comportamento sexual vinculado a essa faixa etária e à maturidade da imunidade em epitélio cervical e mucosa, que atua como efeito protetor em mulheres com faixa etária mais alta18,14,27. Além da idade precoce de início sexual, vários estudos mostram associação da infecção pela CT e NG com o número de parceiros sexuais, com a troca frequente de parceiros, relacionamento com parceiro sabidamente infectado e baixa adesão ao uso de preservativos6,14. Neste estudo, não encontrou-se associação entre CT e NG com esses fatores de risco, embora uma tendência tenha sido observada para a positividade de CT e idade inferior a 20 anos.
Embora a maioria das mulheres deste estudo que apresentaram resultado positivo para a infecção por clamídia fosse assintomática, observou-se que, naquelas que apresentavam sintomatologia, ocorreu uma associação significativa com a positividade para a CT e a presença de corrimento e ectrópio, o que coincide com os achados de alguns estudos, os quais encontraram a presença de corrimento vaginal dito anormal, definido como secreção, com características diferentes das produzidas nos períodos cíclicos de mudanças hormonais, como o sintoma mais frequente entre as mulheres com infecção por CT4,6,10,26 e considerado como um dos fatores essenciais para o diagnóstico da doença inflamatória pélvica8.
Cerca de uma entre dez das jovens mulheres, nas quais foi realizada pesquisa sistemática de CT, teve os exames positivos, percentual bastante superior ao observado com a NG. Além de ser transmissível, é uma infecção que pode resultar em dificuldades reprodutivas, necessitando de especial atenção dos médicos que atendem a estas mulheres.
Não foi encontrada correlação entre as faixas de idade das participantes, da idade de início da atividade sexual, do número de parceiros sexuais e do número de novos parceiros sexuais nos últimos seis meses com a presença de CT ou NG.
As voluntárias que, ao exame ginecológico, apresentavam corrimento ou ectrópio tiveram uma prevalência de infecção por CT em torno de duas vezes mais alta que aquelas que não apresentavam esses sinais (p=0,021), porém não foi encontrada diferença entre os sinais acima e a presença de NG nesta população, o que pode se dever ao fato de terem sido excluídas do estudo as mulheres que apresentaram cervicite purulenta no exame clínico, situação frequentemente associada à NG.
De modo geral, os resultados deste estudo foram similares aos estudos nacionais utilizando PCR em amostra de urina para detecção de clamídia e gonorreia, com amostras de mulheres não gestantes nas mesmas faixas de idade e com os mesmos antecedentes.
Uma limitação deste estudo é que a análise dos resultados foi feita com dados coletados em uma pesquisa realizada com outros objetivos. Por terem sido excluídas as voluntárias com mais de quatro parceiros sexuais e também aquelas que apresentavam endocervicite purulenta, acredita-se que a prevalência da infecção pela clamídia e, sobretudo pela gonorreia, poderia ter sido maior na população pesquisada.