DOI: 10.1590/S0100-72032011000800005 - volume 33 - Agosto 2011
Omar Ismail Santos Pereira Darzé, Ubirajara Barroso, Maurício Lordelo
Introdução
A infecção urinária é a complicação mais prevalente, e a principal causa de sepse durante a gestação, associando-se à prematuridade, baixo peso ao nascer e óbito perinatal1-3. As modificações anatômicas e fisiológicas impostas pela gravidez sobre o sistema urinário favorecem a colonização e persistência de bactérias na urina, facilitando mais frequentemente a progressão para infecções sintomáticas, criando assim, a falsa impressão, de que estes quadros infecciosos sejam mais frequentes neste período de vida da mulher4. Entre as gestantes com bacteriúria assintomática (BA) e não tratadas, 40% evoluem para infecções sintomáticas e aproximadamente 30% destas, desenvolvem pielonefrite aguda5,6.
No sexo feminino, a BA é definida pela presença de 105unidades formadoras de colônia (UFC) por mililitro de um único patógeno, em amostra urinária obtida do jato médio, e na ausência de sintomas7. Sua prevalência varia geograficamente dentro da mesma área, de acordo com a população estudada, sendo mais frequente em países em desenvolvimento, onde se registram cifras entre 13 a 21%8,9. O rastreamento e tratamento da BA durante a gravidez são recomendados pelo Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia que, para tal, preconiza a realização de urocultura rotineira no primeiro trimestre em todas as gestantes10. Este estudo teve como objetivos identificar a prevalência de BA entre gestantes de baixo risco na população local, e a existência de preditores clínicos para esta enfermidade que possam facilitar o seu rastreamento.
Métodos
Trata-se de um estudo prospectivo de corte transversal, sobre a prevalência e preditores clínicos de BA durante a gestação. Foram incluídas 260 gestantes, atendidas em ambulatório de pré-natal de baixo risco do Ambulatório Docente da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. O período de inclusão foi de agosto de 2008 a outubro de 2009. As gestantes foram convidadas a participar do projeto consecutivamente, ou seja, de forma não intencional, com aplicação do consentimento livre e esclarecido. Foram excluídas as gestantes com sintomatologia infecciosa urinária (febre, disúria, tenesmo vesical e dor lombar), história de sangramento genital, perda de líquido amniótico, utilização de antimicrobianos nos últimos 30 dias, e as que não desejaram participar do projeto.
As gestantes incluídas receberam as seguintes orientações quanto à coleta da amostra urinária: coletar a amostra na primeira micção da manhã e,previamente, lavar a vulva com água e sabão por três vezes consecutivas, sem enxugar, desprezando o primeiro jato. Armazenar a amostra em recipiente estéril descartável e encaminhar ao laboratório em um período não superior a duas horas. Os sumários de urina e uroculturas foram realizados no Laboratório de Análises Clínicas do próprio Ambulatório. O diagnóstico de BA foi considerado quando da presença de colonização significativa (≥105 UFC/mL) de único patógeno. Aquelas com BA foram tratadas de acordo com o antibiograma, e com drogas adequadas ao período gestacional.
As variáveis estudadas foram: idade, raça, estado civil, nível de instrução, história obstétrica, idade gestacional, presença de anemia (hemoglobina <11g%), traço falciforme (diagnosticada pela eletroforese de hemoglobina), presença de colpite, passado de infecção do trato urinário, micção infrequente (<3 micções/dia), polaciúria (>8 micções/dia), urgência miccional (desejo súbito e incontrolável de urinar, difícil de ser adiado), incontinência urinária (perda de urina aos esforços). Dados do sumário de urina também foram analisados, como a presença de leucocitúria (>5 leucócitos/campo de maior aumento), flora bacteriana aumentada (≥1 bactéria/campo de maior aumento), hematúria (≥5 hemácias/campo de maior aumento), presença ou não de proteinúria e nitrito diagnosticados através de métodos bioquímicos em fita.
A análise estatística foi realizada com o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) 13.0 e a significância estatística foi previamente definida por valor p<0,05. As prevalências foram expressas por percentual e intervalo de confiança considerado foi de 95% (IC95%). Para comparação das características clínicas entre os grupos com bacteriúria e sem bacteriúria, utilizou-se o teste do χ2 para as varáveis categóricas e o teste t de Student para as variáveis contínuas. As variáveis independentes, que apresentaram significância na análise univariada, entraram em modelo multivariado de regressão logística ajustada para estudos de corte transversal; do seu resultado, criou-se um escore preditor de BA e por fim a sua acurácia. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição, sob o protocolo nº 27/2008.
Resultados
Foram rastreadas260 gestantes com média de idade de 29,4±6,7 anos. Mulheres não brancas constituíram 81,9% da amostra e 80% eram casadas. O ensino médio foi referido por 91,2% das mulheres, sendo que 33,1% tinham estudado apenas até o ensino fundamental. A idade gestacional no momento do recrutamento foi de 19,8±7,4 semanas e 39,2% se encontravam na sua primeira gestação. A anemia foi diagnosticada em 7,3%, hipertensão em 6,9%, o traço falciforme em 6,5% e colpite em 18,5% da amostra. Episódio prévio de infecção do trato urinário foi relatado por 42,3% das mulheres. Com relação às queixas urinárias verificamos que 49,6% das gestantes referiram polaciúria, 17,7% incontinência urinária, 13,8% urgência miccional e 5,4% micção infrequente. Na urinálise, a leucocitúria foi a mais frequente das alterações, diagnosticada em 18,8% da amostra, seguida pela flora bacteriana aumentada (16,2%), pesquisa de nitrito (2,3%), e a proteinúria (1,9%). O exame foi considerado normal em 71,5% das amostras estudadas.
Das 260 uroculturas realizadas, 32 (12,3%) foram positivas. Portanto, a prevalência de BA foi de 12,3% (IC95%=8,316,3%). A E. coli foi o microrganismo mais prevalente, presente em 59,4% das culturas positivas, seguida da Klebsiella pneumoniae, pelo Streptococcus agalactiae e Staphylococcus simulans, presentes cada um em 9,4% dos cultivos. Outros microrganismos isolados foram o Enterobacter sp (6,3%), o Enterococcus faecalis (3,1%) e o Proteus mirabillis (3,1%).
A análise univariada, comparando as pacientes com e sem BA respectivamente, revelou que aquelas com bacteriúria apresentavam associação com hipertensão (15,6 vs 5,7%, p=0,03) e traço falciforme(15,6 vs 5,3%, p=0,02). A única variável com significância estatística para BA, entre aquelas referentes à historia urinária, foi a urgência miccional (50,0 vs 8,8%, p<0,001). Estudando as alterações detectadas na urinálise como preditoras de BA, observou-se uma maior associação com a presença de leucocitúria (53,1 vs 14,0%, p<0,001), presença de nitrito (12,5 vs 0,9%, p<0,001) e flora bacteriana aumentada (68,8 vs 8,8%, p<0,001).
A especificidade, sensibilidade, valores preditivos negativos e positivos das variáveis mais significativas, obtidas da urinálise, foram mensurados, observando-se uma acurácia muito próxima entre os parâmetros analisados: 88,5% para flora bacteriana aumentada 82% para leucocitúria e de 88,5% para a presença de nitrito (Tabela 1).
Após aplicação de regressão logística, contendo as variáveis que se associaram com uma maior possibilidade de BA durante análise univariada, se mostraram como preditores independentes de BA a urgência miccional (OR=5,4; IC95%=2,216,3; p=0,001); a flora bacteriana aumentada (OR=10,6; IC95%=3,9028,58; p<0,001) e a leucocitúria (OR=2,8; IC95%=1,047,80; p=0,04) (Tabela 2). Com a obtenção do modelo final da análise multivariada, criou-se um escore preditor de BA, cuja acurácia foi de 91,9%.Este modelo preditor, revelou uma probabilidade de BA superior a 50%, na presença de uma flora bacteriana aumentada associada à leucocitúria e superior a 80% quando a estes dois soma-se a urgência miccional (Tabela 3). A ausência dos três preditores se relacionou a um valor preditivo negativo (VPN) para BA de 96,5%.
Discussão
A prevalência relativamente alta de BA durante a gravidez, suas consequências danosas tanto para a mãe quanto para o feto, e a capacidade de evitar resultados indesejados com o tratamento adequado, justificam seu rastreamento neste período de vida da mulher11. A prevalência de BA no grupo estudado foi de 12,3%, taxa três vezes maior que as registradas em países desenvolvidos, porém compatível com as registradas naqueles em desenvolvimento7,9,12. As maiores cifras são registradas em populações mais carentes, comona Nigéria, onde um estudo envolvendo 1.228 gestantes revelou uma prevalência de BA de 45,3%13.
A flora bacteriana identificada neste estudo foi similar à maioria dos trabalhos realizados em várias regiões do mundo12-16. Os bacilos Gram negativos são os mais prevalentes, e entre estes, a E. coli chegou a ser o microrganismo responsável em até 76,6% dos casos16. Chamaa atenção a importância dos Gram positivos, que estavam presentes em 22,1% das pacientes com BA e entre estes, o Streptococcus do grupo B, isolado em 9,4% das culturas positivas, tornando necessária a adoção de medidas de profilaxia intraparto da sepse neonatal por este microrganismo, neste grupo de gestantes17.
Os estudos sobre fatores de risco para BA são poucos e contraditórios. Algumas situações clínicas relacionadas ao hospedeiro como anemia falciforme, diabetes e infecção pelo vírus de imunodeficiência humana (HIV), se associam com maior possibilidade de BA, provavelmente pelo aspecto imunossupressor destas enfermidades14,18,19. Por se tratar de uma amostra de gestantes de baixo risco, não documentamos tais associações. Porém, demonstramos com análise univariada, maior possibilidade de BA entre aquelas portadoras de traço falciforme e nas hipertensas, o que não se comprovou após aplicação do modelo de regressão logística. A relação de BA com a hipertensão é discutida, pois muitas vezes sofre influência de fatores de confusão, como maior possibilidade de situações que provoquem comprometimento da função renal e consequentemente estados hipertensivos.
Pressupondo que os sintomas urinários relacionados ao armazenamento (polaciúria, urgência, nictúria e incontinência) durante a gestação, na maioria das vezes se relacionam com urina livre de germes, procuramos analisá-los como prováveis preditores de BA. Assim, demonstramos uma forte associação da urgência miccional com a BA, inclusive após análise multivariada, comprovando ser este sintoma urinário, um preditor independente de BA (OR=5,9). Esta relação pode ser justificada por alterações mais pronunciadas sobre os ligamentos suspensores da uretra nestas pacientes, facilitando assim a invasão bacteriana. A urgência miccional pode ser sensória ou por hiperatividade vesical e é comumente associada a posturas para evitar a perda urinária por parte das pacientes, podendo levar à retenção de urina. Também, o fluxo urinário reverso (da uretra para a bexiga), em razão da contração do assoalho pélvico a seguir a uma contração vesical, para evitar perdas urinárias, pode fazer com que bactérias migrem da uretra para a bexiga, o que se chama de efeito milk back20. Trabalhos futuros podem ser desenvolvidos, procurando avaliar a eficácia do tratamento da urgência miccional para prevenção da BA entre gestantes.
A estratégia do rastreamento rotineiro da BA, apesar de eficaz, encontra fortes obstáculos, principalmente em países em desenvolvimento. O teste de maior valor, ou seja, a urocultura, não tem as características ideais de um teste de rastreamento como simples realização, resultado imediato e não ser oneroso. A utilização de testes menos dispendiosos para o rastreamento da BA na gestação como a pesquisa de estearase leucocitária, presença de nitrito e Gram do sedimento urinário, tem sido estudada por alguns autores, porém, os resultados não são animadores, pois estes testes não têm se mostrado suficientemente sensíveis21,22. Procuramos relacionar as alterações encontradas no sumário de urina com maior possibilidade de BA e comprovamos que as presenças de leucocitúria e de flora bacteriana aumentada, se mostraram como preditores independentes de BA após análise multivariada, apresentando esta última, Odds Ratio de 10,6.
Buscando uma opção menos onerosa para o rastreamento da BA, criamos um escore preditor, com as variáveis que formaram o modelo final da análise multivariada, ou seja, a presença de urgência miccional, leucocitúria e flora bacteriana aumentada. A aplicação deste modelo demonstrou uma acurácia de 91,9%, para o diagnóstico da BA, podendo servir como uma primeira etapa de rastreamento desta infecção silenciosa, prevalente em populações carentes, e responsável pelo empobrecimento dos resultados maternos e perinatais.
Este trabalho traz algumas limitações: seus achados são aplicáveis a uma população de gestantes de baixo risco obstétrico, não devendo ser reportado em populações com risco. A amostra do estudo não foi probabilística,embora as gestantes tivessem sido incluídas consecutivamente, ou seja, de forma não intencional e não se avaliou a possibilidade de recidiva da BA entre as pacientes tratadas.
Recebido 21/02/2011
Aceito com modificações 05/08/2011
Conflito de interesses: não há.