DOI: 10.1590/S0100-72032011000500007 - volume 33 - Maio 2011
Cássia de Lourdes Campanho, Juliana Karina Heinrich, Egle Couto, Ricardo Barini
Introdução
A presença do fenótipo de subfertilidade em um indivíduo tem sido alvo de grande debate científico nos últimos anos, a começar por sua própria definição. Tradicionalmente, nesse grupo eram incluídos casais com abortamento, desde que recorrentes, possivelmente devido à influência do trabalho pioneiro de Malpas1, frequentemente citado por vários autores. Assim, o termo "recorrente" fez-se presente ao longo dos anos, em inúmeras publicações. A ausência do consenso é verificada em uma série de guidelines internacionais, com discrepâncias com relação ao número de abortamentos e à sequência dos mesmos. Atualmente, o American College of Obstetrics and Gynecology (ACOG) define o abortamento recorrente na presença de duas ou mais perdas consecutivas2. A European Society of Human Reproduction and Embriology (ESHRE) o define na ocorrência de três ou mais perdas consecutivas3. Em contraste, o Royal College of Obstetrics and Gynaecologists (RCOG) aponta como três ou mais perdas4 e a Dutch Society of Obstetrics and Gynaecology (NVOG) como duas ou mais perdas5, sendo que ambas não incluem a palavra "recorrente" em suas definições. Diante de tantas opções, torna-se difícil a classificação de um casal como portador de abortamentos recorrentes, fazendo com que as opções clínicas de diagnóstico e terapêutica sejam tardiamente oferecidas6.
Vários autores têm considerado como abortamento espontâneo recorrente a observação de duas perdas fetais, incluindo as não consecutivas6-8, contrapondo-se à definição tradicional que se dava à observação de três ou mais eventos consecutivos, antes de se atingir a 20ª semana de gestação9-11. Em novembro de 2008, publicou-se uma recomendação da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva que definiu o conceito de infertilidade como uma falha no sucesso de atingir-se uma gravidez após 12 meses ou mais de intercurso sexual regular e sem proteção contraceptiva. Também foi definido o conceito de abortamento recorrente como duas ou mais perdas gestacionais, independentemente da recorrência12.
Na ausência de um consenso acerca do tema, o conceito de subfertilidade passou a ser utilizado por alguns grupos, de forma generalista e não específica, para definir toda a falta de concepção − não desejada − em indivíduos que ativamente desejam conceber. Nesse sentido, estão incluídos indivíduos com perda reprodutiva, recorrente ou não, e indivíduos que apresentam falha de concepção13. Tal nomenclatura, por certo, gera certa controvérsia, mas visa incluir sob a mesma nomenclatura dois fenômenos que interagem e requerem quase que o mesmo tipo de abordagem epidemiológica, diagnóstica e terapêutica, reduzindo o tempo requerido para o início de uma investigação específica e, a longo prazo, disponibilizando opções terapêuticas específicas e realmente necessárias. Nesse sentido, tratamentos podem ser disponibilizados a fim de que uma gestação de sucesso possa ser atingida em um espaço menor de tempo13.
As anormalidades cromossômicas são consideradas responsáveis por cerca de metade dos abortos espontâneos de primeiro trimestre, incluindo alterações numéricas, estruturais (translocação, inversão, deleção e duplicação) e mosaicismo. Cerca de 5 a 10% dos casais com fracassos reprodutivos apresentam, em pelo menos um cônjuge, translocações equilibradas e/ou inversões9,14,15.
As variantes polimórficas são um achado comum na rotina do laboratório de citogenética14,16-18. Apesar de um efeito fenotípico específico não ter sido, até o momento, associado às inversões, consideradas polimórficas, a recombinação da região invertida durante a meiose pode resultar na produção de gametas desbalanceados com segmentos cromossômicos deletados ou duplicados, gerando descendentes cromossomicamente anormais, abortos ou, ainda, a ocorrência do efeito intercromossômico, que é a influência dos cromossomos envolvidos em rearranjos sobre outros pares cromossômico11,19-21.
Os polimorfismos cromossômicos são alterações citogenéticas estruturais tidas como "silenciosas", sendo também assunto controverso quanto à sua expressão fenotípica. Os dados na literatura chegam a apontar uma frequência de até 8% de polimorfismos na população em geral. Atualmente, uma nova linha de investigação sustentada por vários autores tem apontado que essas variantes polimórficas podem estar associadas ao fenótipo de subfertilidade14,16,17,22.
Em se tratando de um assunto bastante controverso, tanto na questão da definição do fenótipo de subfertilidade quanto com relação à expressão fenotípica dos polimorfismos cromossômicos e considerando que muitos autores têm relatado taxas aumentadas de variantes polimórficas em casais com perdas reprodutivas o objetivo deste trabalho foi avaliar a prevalência de alterações citogenéticas e polimorfismos cromossômicos em casais com fenótipo de subfertilidade, em uma população brasileira, uma vez que existem poucos dados na literatura.
Métodos
Foram incluídos no estudo um total de 1.236 sujeitos, que foram investigados com relação a seu cariótipo, atendidos em dois serviços especializados. Destes, 202 cariótipos foram processados em um serviço público de referência no Sistema Único de Saúde (CAISM/Unicamp), provenientes de casais com fenótipo de subfertilidade, atendidos entre janeiro de 2003 a março de 2009. A idade média das mulheres que foram submetidas à investigação foi de 29 anos (19-42 anos). Entre os homens, a idade média foi de 31 anos (16-46 anos). A avaliação socioeconômica realizada por informação dos prontuários revelou uma renda média de até cinco salários mínimos. Também foram incluídos os resultados de 1.034 cariótipos de casais com fenótipo de subfertilidade, atendidos em um serviço privado, no período de janeiro de 2000 a dezembro de 2008. Esses pacientes, em sua maioria, eram oriundos de convênios médicos ou atendimento particular, com renda acima de dez salários mínimos. A idade média das mulheres que foram submetidas à investigação foi de 33 anos (25-47 anos). Entre os homens, a idade média foi de 31 anos (26-55 anos).
Para este estudo, foram selecionados pacientes com o fenótipo de subfertilidade, tal qual na forma generalista apresentada por Gnoth et al.13. No entanto, esses pacientes ainda foram classificados em dois subgrupos, conforme a classificação da American Society for Reproductive Medicine12: Grupo A = Grupo (G>2 perdas) e Grupo B = Grupo (G³1 perda).
Para os casais com fenótipo de subfertilidade atendidos no serviço privado, foi realizada a consulta aos prontuários como forma de acesso aos laudos e resultados de cariótipo, provenientes de diversos laboratórios externos de citogenética. Para os casais atendidos no serviço público, utilizou-se a técnica de cariótipo convencional com bandamento G, para todos os casos, e com bandamento C em casos selecionados. A técnica consistiu, resumidamente, na preparação de cultivos de linfócitos a partir de sangue periférico, inibição do fuso mitótico, choque hipotônico, fixação das células em fixador Carnoy e preparação das lâminas para posterior coloração cromossômica em bandas. Foram analisadas 20 metáfases por caso. Em casos com suspeita de mosaicismo, esse número foi expandido para 100. Os cariótipos foram classificados de acordo com o International System for Human Cytogenetic Nomenclature 2009 (ISCN)23.
As imagens foram analisadas e adquiridas por meio do sistema BandView Software (Applied Spectral Imaging). Os resultados das análises de todas as técnicas utilizadas foram conferidos por um segundo analisador, seguindo critérios internacionais de assertividade, rastreamento e controle de qualidade. A análise citogenética dos dois grupos deste estudo (serviço público e privado) foi realizada por analisadores e laboratórios independentes empregando, contudo, técnicas clássicas, consagradas para o diagnóstico citogenético.
O teste exato de Fisher e o cálculo de Odds Ratio foram aplicados quando a análise estatística era apropriada. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Resultados
Os resultados foram apresentados nas Tabelas 1, 2 e 3. A Tabela 1 apresenta as alterações citogenéticas encontradas nos serviços público e privado, incluídos os grupos A e B. A Tabela 2 apresenta uma comparação entre os resultados de cariótipo obtidos para os grupos A e B, atendidos no serviço público. A Tabela 3 apresenta, de forma geral, a descrição dos cariótipos alterados, em cada um dos serviços, incluindo alterações numéricas, estruturais e variantes polimórficas. A frequência de indivíduos afetados pelas variantes polimórficas foi de 8,9% no serviço público e de 3,8% no serviço privado. As anomalias numéricas envolveram, via de regra, os cromossomos sexuais, enquanto as anomalias estruturais envolveram diversos cromossomos autossômicos, sem preferência. Com relação aos polimorfismos descritos, foram observadas as variantes mais frequentes, corroborando dados da literatura, envolvendo aumento de heterocromatina dos cromossomos 1, 9, 16 e Y, bem como inversão do cromossomo 9 e anomalias de satélites dos cromossomos acrocêntricos.
Discussão
Os rearranjos cromossômicos têm importância particular no contexto da saúde reprodutiva, uma vez que podem estar envolvidos na expressão de uma série de fenótipos, incluindo as malformações fetais e as perdas gestacionais24,25.
Com aplicação de técnicas de bandamento e, mais recentemente, com técnicas moleculares, é agora conhecido que os polimorfismos cromossômicos representam heterocromatina constitutiva, principalmente da região centromérica dos cromossomos, podendo os segmentos polimórficos variar em tamanho e posição17,26.
Uma extensa variação nas frequências de anomalias cromossômicas foi observada tanto no serviço público quanto no serviço privado. Acredita-se que as diferenças a respeito da frequência dos polimorfismos nos dois diferentes grupos de pacientes, mais elevadas entre os pacientes do serviço público, são devido à padronização de divulgar todas as variações polimórficas no laudo citogenético final.
Em um trabalho de revisão sobre a frequência de anormalidades cromossômicas em casais com perdas fetais recorrentes, Kiss et al.11 relatam frequências que variam de 0,6 a 2,8% para anomalias de todos os tipos, sendo, dentre essas, de 3 a 30% aquelas consideradas como polimórficas, mais especificamente as inversões pericentroméricas.
É interessante notar que indicar a presença de um polimorfismo no laudo final é facultativo. Em normatizações europeias indica-se, inclusive, que variantes polimórficas não devem ser apontadas no laudo final, ficando apenas registradas nas anotações internas do laboratório, para que não haja uma interpretação controversa por parte do profissional não citogeneticista27. Nos Estados Unidos, o grupo de Citogenética do Colégio Americano de Patologistas declara que não há um padrão estabelecido para o registro dos heteromorfismos no laudo citogenético, ficando a critério do citogeneticista responsável pelo exame a decisão de reportá-los ou não28. No Brasil, não existe uma normatização com relação à informação das variantes polimórficas, existindo uma sugestão da Sociedade Brasileira de Genética de que as variantes cromossômicas como tamanho de heterocromatina e satélite, exceto aquelas envolvendo quebra e reunião de cromossomos, não necessitam ser incluídas na descrição dos resultados. Aponta-se, entretanto, que se forem mencionadas, o seu significado deve estar claramente descrito nos comentários dos laudos29.
No serviço público participante do presente estudo, optou-se desde 2002 pelo registro dos polimorfismos em laudo, em todos os casos. Assim, é possível que os dados apresentados na literatura possam estar subestimados, devido à falta de normatização com relação à descrição dos polimorfismos em laudo, viés este não encontrado na prática desse serviço público em especial.
É importante ressaltar que muitos autores indicam a possibilidade de reportar os polimorfismos relacionados às inversões, pois estas apresentam duas quebras de DNA na estrutura do cromossomo, deixando-se, em um segundo plano, a possibilidade de informação dos aumentos de tamanho de heterocromatina28. No presente estudo, no qual não houve seleção dos polimorfimos a serem reportados, verificou-se que as frequências para o aumento de tamanho de heterocromatina são tão ou mais prevalentes do que as inversões. Dessa forma, é possível que vários trabalhos que publicaram que as inversões são mais prevalentes do que os aumentos de tamanho de heterocromatina possam ter apresentado dados subestimados.
Outro tema a ser considerado é o fato de que nosso grupo encontrou frequências similares para variações polimórficas nos casais classificados nos subgrupos A e B. Considerando-se as anomalias estruturais e numéricas conjuntamente, pode-se igualmente observar a ausência de uma diferença significativa entre os dois grupos (9,1% para o grupo A e 10% para o grupo B). Nossos resultados corroboram o estudo de van den Boogaard et al.6, que determinaram não haver influência na consecutividade dos abortamentos para o risco de anomalias cromossômicas e reforçaram a possibilidade de utilização do termo e da classificação do fenótipo de subfertilidade, de forma generalista, a fim de triar pacientes para investigação precoce de falhas de reprodução e disponibilização de opções terapêuticas específicas.
Como este trabalho envolveu a maior casuística de pacientes brasileiros e, até onde conhecemos, é o terceiro trabalho internacional a envolver mais do que mil indivíduos com cariótipos analisados, os resultados validam a importância do registro em laudo das variantes da normalidade, como os polimorfismos, sejam eles constituídos por inversões ou aumento de tamanho de regiões heterocromáticas, com o subsequente comentário interpretativo do achado em questão, para que não haja um entendimento controverso por parte do profissional não citogeneticista.
Apesar de ainda não haver consenso científico acerca de sua repercussão fenotípica, os polimorfismos são um achado frequente em um serviço de Citogenética. Sua visualização, por citogenética convencional, pode constituir-se em um marcador para a triagem de casos para investigação molecular. Por outro lado, investigações complementares com técnicas de Biologia molecular poderão indicar pequenos ganhos ou perdas genômicas associadas à ocorrência dos heteromorfismos e, assim, levar à descoberta de novas sequências envolvidas na etiologia de malformações fetais específicas ou ao fenótipo estendido de subfertilidade em casais, mesmo na ausência de abortamento recorrente. Ainda que poucas opções terapêuticas estejam disponíveis para casais com anomalias citogenéticas, o oferecimento do teste para casais com fenótipo de subfertilidade, em seu entendimento generalista, oferece uma resposta diagnóstica efetiva e em menor tempo, poupando-os de sucessivas frustrações com relação ao insucesso reprodutivo ou, ainda, colocando-os em contato com outras abordagens investigativas a fim de se determinar a etiologia da doença e as possíveis opções terapêuticas.
Recebido 09/02/2011
Aceito com modificações 16/03/2011