DOI: 10.1590/S0100-72032011000100001 - volume 33 - Janeiro 2011
Cláudia Saunders, Marta Antonieta de Souza Santos, Patricia de Carvalho Padilha
Introdução
Desde 1999, a Organização Mundial da Saúde1 reconhece que a inadequação do estado nutricional materno é fator agravante das causas de mortalidade materna, e a intervenção nutricional é recomendada para a redução dessa mortalidade. Embora alguns estudos apontem o impacto da intervenção nutricional na melhoria do resultado perinatal, no Brasil, a assistência nutricional pré-natal é considerada importante para casos de alto risco, mas ainda não é sistematizada nos manuais de pré-natal vigentes2,3. Para tanto, é necessário: o detalhamento do número de consultas e intervalo entre elas com o nutricionista; a definição da idade gestacional para o início do acompanhamento nutricional, bem como os critérios de encaminhamento para o nutricionista; a definição da avaliação nutricional baseada em diversos indicadores, além da avaliação antropométrica que classifique as gestantes segundo o risco nutricional e as rotinas de intervenção nutricional para pacientes de baixo e alto risco4.
O artigo de Vítolo et al.5, publicado neste fascículo, apresenta proposta de intervenção nutricional testada em gestantes adultas e adolescentes atendidas em uma unidade de saúde referência, localizada na região Sul do Brasil. O estudo é bem conduzido e, para testar o impacto do programa de orientação dietética, foram selecionados dois grupos de gestantes com características semelhantes. Quanto à característica idade materna, diversos estudos evidenciam maior vulnerabilidade das adolescentes em comparação com as adultas em relação aos seguintes desfechos: baixo peso ao nascer, parto prematuro, mortalidade perinatal e inadequação do ganho de peso gestacional total6-8. Para minimizar a influência de tal característica na análise dos dados, acredita-se que um estudo realizado somente com adolescentes poderia ser bastante elucidador, ou o emprego de análise estatística por meio da análise multivariada, na qual a influência dessa e de outras variáveis intervenientes fosse controlada.
Outro aspecto a ser destacado do artigo nos remete a um importante e frequente dilema sobre os padrões de cuidado oferecidos pelas pesquisas sob o ponto de vista da ética biomédica. Existe um amplo debate sobre a definição do que constitui um Grupo Controle adequado para um estudo biomédico.
Dada a existência de evidências científicas que apontam a inadequação do estado nutricional materno como fator de risco modificável e passível de controle por meio de intervenções nutricionais efetivas, os aspectos éticos, especificamente o princípio da beneficência9, parece não ter sido atendido quando da alocação aleatória de gestantes em grupos intervenção (submetidas à orientação nutricional) e controle (apenas com acompanhamento). Nesse caso, a alternativa seria a utilização do grupo de comparação de outra natureza, como o controle histórico ou externo, no qual o Grupo Controle não receberia a intervenção pelo fato de ter sido criado anteriormente ao início do estudo10. Embora tenha suas limitações e não seja considerado padrão-ouro, assim como o estudo ensaio clínico randomizado, esse desenho de estudo tem sido adotado por vários pesquisadores, e os resultados têm sido válidos. O argumento dos autores do artigo em questão para o uso de Grupo Controle foi o de que, dessa forma, as gestantes estariam recebendo o padrão de assistência local.
Intervenção Nutricional
Em estudos de intervenção, a riqueza de detalhes é de grande valia para a reprodução do estudo em outros grupos, além de permitir a implementação das recomendações do estudo, assim como a prática baseada em evidências. Com isso, a atenção nutricional empregada no grupo intervenção merece ser mais detalhada. Com relação à estrutura e ao conteúdo do texto, destacamos alguns aspectos. Na seção "Métodos", as autoras informam que "as gestantes randomizadas para o grupo intervenção receberam orientações dietéticas na primeira entrevista, resumidas em oito a dez comportamentos alimentares, com o objetivo de ajustar a velocidade de ganho de peso e melhorar a qualidade da alimentação". Acreditamos que o emprego do termo "comportamentos alimentares", expressando o sentido de condutas e regras alimentares, tem a pretensão de que as orientações oferecidas funcionem como meio de condicionar as gestantes para alterarem suas escolhas alimentares, de modo a incorporarem as normas transmitidas. Em geral, no cotidiano dos serviços de saúde, os profissionais ainda reproduzem o reducionismo que toma os usuários como reprodutores passivos de regras e normas pré-determinadas que a eles são impostas.
Destacamos, ainda, que o artigo não nos esclarece quanto ao número de encontros das gestantes do grupo intervenção com o nutricionista. É importante ressaltar que um dos princípios da humanização na atenção à saúde volta-se para a necessidade da criação de vínculo, de uma relação de confiança entre profissional/equipe de saúde e usuário. A produção do vínculo favorece maior adesão dos usuários aos itinerários terapêuticos, exatamente por promover a participação de ambos os sujeitos (profissional e usuário) em sua construção (compartilhada)10.
Nesse sentido, observamos que a proposta de intervenção nutricional apresentada no artigo não vislumbra o rompimento da lógica normativa, mantendo a supremacia da dominação do saber técnico sobre a condição da gestante de se assumir como sujeito, autônomo, e não como objeto das ações de nutrição. Talvez por isso a intervenção não tenha sido capaz de produzir impacto no estado nutricional das gestantes assistidas.
Rodrigues et al.11 identificaram diferentes fatores determinantes do ganho de peso gestacional insuficiente e excessivo, reconhecendo que estes podem ser identificados no início da gestação e têm interface com o resultado obstétrico inadequado. Tal achado reforça a importância do início precoce da assistência nutricional pré-natal. Uma revisão sistemática sobre intervenções durante a gestação com o objetivo de reduzir o ganho de peso excessivo na gestação relata a qualidade insuficiente dos estudos, o que dificulta a sugestão de recomendações baseadas em evidência3. Entretanto, Guelinckx et al.12 concluem que a mudança de estilo de vida melhorou os hábitos alimentares de gestantes obesas, apesar de não influenciar no ganho ponderal das gestantes e no nível de atividade física. Em estudo realizado com gestantes no Rio de Janeiro, verificou-se melhora da adequação do ganho de peso gestacional total, associada com a melhor adesão às orientações prestadas na consulta com o nutricionista, ou seja, com a aplicação dos princípios do aconselhamento dietético13.
Avaliação antropométrica de gestantes
Outra questão relevante que não pode ser esquecida em estudos realizados com avaliação antropométrica de gestantes é a análise crítica e a validação dos métodos adotados para tal avaliação. Tal questão é de fundamental importância, pois sabe-se que a avaliação antropométrica de gestantes define a intervenção a ser empregada pela equipe de saúde do pré-natal e direciona a paciente ao cuidado mais especializado. Os métodos adotados no estudo em questão são: as propostas do Institute of Medicine (IOM)14, dos Estados Unidos, e a curva do índice de massa corporal (IMC) segundo a idade gestacional2,15.
A primeira é baseada em publicação original de 199016, revisada em 1992, e apresenta faixas de ganho de peso conforme o IMC pré-gestacional. Em 200914, o comitê de experts do IOM revisou e reduziu a faixa de ganho de peso para as gestantes com IMC pré-gestacional de obesidade; adotou os pontos de corte de IMC pré-gestacional sugeridos pela Organização Mundial da Saúde (OMS)17; e alterou as faixas de ganho de peso semanal para cada categoria de gestantes conforme o IMC pré-gestacional. Passou também a recomendar que o ganho de peso semanal e total não fosse diferenciado para as gestantes com estatura inferior a 157 cm, até então consideradas como de baixa estatura, e sugeriu, ainda, que os mesmos procedimentos de avaliação nutricional das adultas fossem adotados para as adolescentes. A proposta do IOM vem sendo recomendada pelo Ministério da Saúde para uso no Brasil desde 2004, e foi validada para gestantes adultas atendidas em unidade de saúde do Rio de Janeiro, segundo o desfecho baixo peso ao nascer18. Contudo, a proposta recentemente publicada pelo comitê IOM14 ainda carece de validação para a população brasileira.
A segunda proposta adotada no presente estudo é a de Atalah Samur et al.15, que permite a avaliação nutricional de gestantes das quais não se conhece o peso pré-gestacional pelo emprego da avaliação do IMC segundo a idade gestacional. Em estudos nos quais se testou a validade do padrão para os desfechos obstétricos de gestantes brasileiras, verificou-se que o método não é adequado para identificar corretamente gestantes com risco de baixo peso ao nascer19. Face ao exposto, em relação ao método de Atalah Samur et al.15, questiona-se se este seria o melhor para ser adotado no presente estudo.
Análise dos dados
A anemia e a deficiência de vitamina A (DVA) na gestação são importantes intercorrências gestacionais, com prevalência significativa dentre as mulheres brasileiras, segundo os dados da última Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher20. A anemia acomete 29,4% das mulheres, e a DVA foi diagnosticada em 12,3% das pacientes.
Em estudo realizado no Rio de Janeiro, verificou-se que a intervenção nutricional, incluindo: um número mínimo de quatro consultas com o nutricionista ao longo da gestação; diagnóstico da DVA a partir do indicador cegueira noturna; e orientações nutricionais específicas para prevenção e tratamento da DVA, foram eficazes para a redução significativa dos casos21.
Tendo em vista o impacto das duas carências nutricionais em questão, seria interessante um comentário ou estudo posterior sobre a experiência dos autores com o diagnóstico, além do impacto da intervenção nas gestantes da região Sul do país. Apresentam-se resultados acerca das intercorrências gestacionais diagnosticadas nas gestantes de cada grupo de estudo, bem como a comparação do ganho de peso para as gestantes que desenvolveram, por exemplo, diabetes gestacional e síndromes hipertensivas da gravidez, que são as intercorrêncais mais prevalentes dentre as mulheres com desvio ponderal pré-gestacional ou gestacional22,23.
Face ao exposto, acredita-se que estudos de intervenção nutricional desenvolvidos com mulheres em idade fértil, ao longo da gestação e no puerpério, possam subsidiar a construção de uma assistência nutricional pré-natal de qualidade e com rotinas preventivas de baixo custo, que possam melhorar a saúde materna e, com isso, contribuir para a melhoria da saúde do concepto e do adulto.
A resposta dos autores encontra-se em "Carta ao Editor", página 58.
Recebido 17/1/2011
Aceito com modificações 31/1/2011
Grupo de Pesquisa em Saúde Materna e Infantil do Núcleo de Pesquisa em Micronutrientes do Instituto de Nutrição Josué de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.