DOI: 10.1590/S0100-72032010000700003 - volume 32 - Julho 2010
Nelson Elias Andrade Junior, Maria Lúcia Elias Pires, Luiz Claudio Santos Thuler
Introdução
O hipotireoidismo tem sido reconhecido como importante causa de morbidade no sexo feminino, atingindo 4 a 10% de todas as mulheres1. No Brasil, estudo envolvendo 1.298 mulheres de meia idade vivendo em área metropolitana mostrou que 12,3% apresentavam a doença2. Em outros estudos nacionais, a prevalência tem variado entre 53 e 17,6%4 e, entre mulheres climatéricas, foi observada uma taxa de 16,1% em mulheres na pós-menopausa5. No que diz respeito às gestantes, estima-se que 5 a 15% sejam afetadas por anormalidades da função tireoidiana. Em um estudo brasileiro envolvendo 127 gestantes normais, o diagnóstico de hipotireoidismo foi realizado em três delas (2,4%)6.
Embora existam algumas evidências de que discretas alterações tireoidianas predisponham à depressão, a associação entre anormalidades específicas envolvendo a tireoide e a ocorrência de quadros depressivos permanece pouco compreendida. As alterações comportamentais vêm sendo associadas ao hipotireoidismo há mais de 50 anos7; independentemente da gravidade da doença, quer no mixedema, quer no hipotireoidismo subclínico. Uma pesquisa realizada no Brasil4 destacou que o hipotireoidismo esteve significativamente associado à depressão. Em uma revisão8; a prevalência de sintomas depressivos entre casos de hipotireoidismo foi de aproximadamente 50%, sendo 40% destes sujeitos considerados acometidos de depressão.
Dois estudos demonstraram maior prevalência de depressão e ansiedade em grupos de pacientes com hipotireoidismo subclínico quando comparados a controles eutireoidianos, indicando a necessidade de ensaios clínicos para avaliar uma possível melhora com uso de levotiroxina9,10. Em um estudo clínico realizado na Inglaterra11; o número de pacientes hipotireoideos controlados com queixa de sintomas psiquiátricos foi 26% maior em comparação a pacientes eutireoidianos. Em pacientes psiquiátricos, a taxa de hipotireoidismo tem variado de 0,5 a 8%12. Outro estudo13 mostrou alternativas para melhorar sintomas psicológicos e somáticos associando liotironina (T3) à levotiroxina (T4) em pacientes hipotireoideos.
Alguns pesquisadores tentam potencializar o tratamento antidepressivo em pacientes com sintomas refratários utilizando levotiroxina em doses suprafisiológicas, mesmo na ausência de doença tiroidiana14,15. Também foi demonstrado, pela tomografia por emissão de pósitrons (PET) com 18-fluoro-deoxi-glicose, que em pacientes do sexo feminino eutireoidianas, com depressão bipolar houve melhora global da atividade neurológica funcional após início da terapia de reposição hormonal com levotiroxina sintética em doses variadas.
Este estudo teve por objetivo avaliar a associação entre o hipotireoidismo e a ocorrência de sintomas depressivos e ansiosos em pacientes ambulatoriais.
Métodos
Foi realizado um estudo do tipo caso-controle no Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG), no município do Rio de Janeiro, no período de Julho de 2006 a Março de 2008.
Foram selecionadas, no ambulatório de endocrinologia, 50 pacientes para compor o grupo de casos. Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: sexo feminino; hipotireoidismo primário independentemente da etiologia; idade entre 18 e 65 anos; dosagem do TSH até oito semanas antes do dia da inclusão no estudo; uso regular de levotiroxina sódica, por um período mínimo de três meses, em uma das seguintes preparações comerciais: Syntroid®; Puran T4®; Euthyrox®. Os pacientes hipotireoideos responderam aos questionários após a análise do TSH, realizado de rotina pela técnica de quimiluminescência, com valores de referência de 0,3 a 5,0 mcUI/mL para padrão de normalidade.
O Grupo Controle foi composto por 50 acompanhantes, visitantes, pacientes do ambulatório de clínica médica e funcionários do HUGG. Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: sexo feminino, idade entre 18 e 65 anos, ausência de história pessoal prévia de doença tireoidiana; dosagem de TSH com valores de 0,4 a 4,0 μUI/mL. Os controles responderam aos questionários e realizaram coleta de sangue venoso periférico no mesmo dia. As amostras de sangue foram processadas após calibração para evitar qualquer erro pré-analítico. Foi utilizado o aparelho Imulite® que opera pela técnica de quimiluminescência de terceira geração, com valores de referência de 0,4 a 4,0 μUI/mL e variações intraensaio e interensaio, respectivamente, de 3,8 a 12,5% e 4,6 a 12,5%.
Nos dois grupos foram aplicados os seguintes critérios de exclusão: indivíduos analfabetos, uso regular de medicação antidepressiva ou ansiolítica em um período de até seis meses anterior ao estudo, uso de qualquer outro tipo de medicamento com ação no sistema nervoso central, inclusive glicocorticoides, gravidez e alcoolismo.
Havendo concordância em participar do estudo, após assinado o termo de consentimento livre e esclarecido, foram realizadas entrevista e aplicação dos testes psicológicos.
Os instrumentos de avaliação dos sintomas depressivos e ansiosos foram, respectivamente, as Escalas de Depressão de Ansiedade de Beck16; ambos validados para a língua portuguesa. Os questionários foram autoaplicados. A fim de evitar distorções no protocolo, o pesquisador principal aplicou todos os questionários, tendo conhecimento quando se tratava de um caso ou um controle.
As características demográficas e epidemiológicas avaliadas foram: raça/cor (conforme padronizado pelo IBGE); idade; menopausa; índice de massa corporal (IMC); etilismo (ingestão de uma ou mais doses de qualquer bebida alcoólica por dia); estado civil e situação profissional. Para a escala de ansiedade de Beck, foram considerados ansiosos os pacientes que apresentaram pontuação maior ou igual a 20 e normais aqueles com pontuação menor ou igual a 1917. Já para a escala de depressão de Beck, pacientes com pontuação até 10 foram considerados normais, aqueles com valores entre 11 e 20 foram classificados como possuidores de leve transtorno de humor ou distímicos e os com valores maiores que 20, como prováveis pacientes depressivos18.
Ao delinear o estudo, estimou-se que, para detectar uma prevalência de depressão de 50%8 nas pacientes com hipotireoidismo, e 165 a 18%4 entre as mulheres com função tiroidiana normal, considerando-se um erro alfa de 0,05 e um erro beta de 10%, seria necessária a inclusão de 50 casos e 50 controles.
Para a análise estatística, foi utilizado o programa SPSS, versão 14. Foram calculadas as prevalências relativas de depressão e de ansiedade por meio da razão das prevalências dessas condições entre casos e controles. As comparações entre variáveis contínuas foram realizadas por meio do teste de Mann-Whitney. Para comparação de proporções entre dois grupos, foram utilizados os testes χ2 ou exato de Fisher, conforme indicação. Os valores de p<0,05 foram associados a diferenças consideradas significativas.
O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, sob número 0060.0.328.000-07, tendo sido respeitadas as recomendações do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).
Resultados
Os dados demográficos e epidemiológicos dos casos e controles encontram-se resumidos na Tabela 1. Não foram verificadas diferenças significativas nos itens analisados, sugerindo tratar-se de grupos semelhantes com relação a esses aspectos.
Na comparação entre os dois grupos quanto aos sintomas depressivos (Tabela 2), os pacientes foram classificados de duas formas, conforme os valores das variáveis numéricas obtidas, em normais, distímicos ou depressivos e com depressão e sem depressão. Não houve diferença significativa na intensidade dos sintomas depressivos quando foram comparados os valores obtidos para os casos e os controles (p=0,1). Vale ressaltar que, apesar de não haver diferença significativa entre hipotireoideos e eutireoidianos quanto aos sintomas depressivos, a prevalência relativa foi de 1,75, indicando uma chance de apresentar depressão 75% maior nos pacientes hipotireoideos.
Com relação aos sintomas ansiosos, observou-se que 40% dos casos apresentaram escores compatíveis com ansiedade clínica na Escala de Beck contra 14% dos controles (p=0,003). Além disso, a prevalência relativa para sintomas ansiosos foi de 2,9, indicando um aumento de quase três vezes na probabilidade de se observar ansiedade clínica nos pacientes hipotireoideos quando comparados aos eutireoidianos.
Quando analisada a prevalência de pacientes com concomitância de sintomas de ansiedade e depressão (valores simultaneamente superiores aos pontos de corte das duas escalas), foram encontrados 12 casos, sendo 10 no grupo de hipotireoideos e 2 no grupo de controles. Esse fato indica uma probabilidade cinco vezes maior (prevalência relativa=5) de se observarem sintomas ansiosos e depressivos no grupo de hipotireoideos do que no Grupo Controle (p=0,01).
Os níveis séricos de TSH mostraram variação de 0,58 a 3,86 mcU/mL, com mediana de 1,7 mcU/mL, nos eutireoidianos e de 0,35 e 6,91mcU/mL, com mediana de 1,81 mcU/mL, nos pacientes hipotireoideos. Entre os pacientes hipotireoideos, após estratificação conforme os níveis de TSH (<5 versus >5 mcU/mL), observou-se não haver diferença significativa na frequência dos sintomas depressivos (16,7 versus 29,5%, respectivamente; p=0,4) ou ansiosos (38,6 versus 50,0%, respectivamente; p=0,59).
Discussão
Os estudos que avaliaram a presença de alterações do humor em pacientes com hipotireoidismo apresentaram resultados contraditórios, pois utilizaram critérios metodológicos muito distintos, não sendo possível, portanto, compará-los. Provavelmente esse fato decorre da diversidade das características clínicas dos pacientes hipotireoideos, da ausência de estudos comparando casos e controles e da grande quantidade de escalas disponíveis para quantificar sintomas depressivos e ansiosos, muitas delas não traduzidas ou validadas para a língua portuguesa.
No presente estudo, foi observada uma prevalência 75% maior de sintomas depressivos entre os casos do que entre os controles, embora sem significância estatística na comparação entre os grupos, enquanto a prevalência de ansiedade foi quase três vezes maior entre os casos, com diferença significativa. Placidi et al.19 também demonstraram maior prevalência de transtornos psiquiátricos em pacientes hipotireoideos quando comparados a controles, porém nesse estudo foi utilizada uma entrevista estruturada do Manual Estatístico de Transtornos Mentais.
Em outro estudo, foram observados escores elevados de pontuação na Escala de Ansiedade de Beck em pacientes com hipotireoidismo subclínico sem uso de medicamentos quando comparados a pacientes eutireoidianos9; e a alta prevalência de sintomas ansiosos pode levar a uma piora na qualidade de vida, apontando a necessidade de tratamento nesses pacientes.
Neste estudo, foram dosados os níveis de TSH isoladamente como método para avaliação de hipotireoidismo primário. Uma vez que a secreção de T3 e T4 pela glândula tireoide é regulada pela secreção hipofisária de TSH de forma log-linear20; quaisquer alterações nos níveis de hormônios tireoidianos podem levar a grandes alterações nas concentrações séricas de TSH, fazendo do TSH o melhor método para se quantificarem alterações discretas da função tireoidiana. Observou-se que a mediana do TSH foi de 1,8 mcU/mL nos pacientes hipotireoideos e de 1,7 mcU/mL nos pacientes eutireoidianos, resultados compatíveis com outro estudo recentemente publicado21.
Não foi possível confirmar a hipótese de que o valor de TSH atue como variável influenciadora ou determinante de aumento de sintomas depressivos e ansiosos. Em um estudo multicêntrico envolvendo 597 pacientes hipotireoideos e 551 pacientes eutireoidianos, foi verificado que, independentemente do valor de TSH, os pacientes hipotireoideos apresentaram um maior prejuízo do bem-estar psicológico quando pareados com controles do mesmo sexo e faixa etária, sem considerar outros fatores socioculturais11. Entre pacientes hipotireoideos com conhecimento de sua condição clínica, também se observou risco aumentado para depressão ou ansiedade independentemente dos valores de TSH22. Porém, quando somente os casos de hipotireoidismo subclínico sem uso de medicação, e portanto com TSH alterado, foram comparados com pacientes eutireoidianos, não foi encontrada diferença significativa quanto à presença de alterações depressivas e ansiosas. Nesse mesmo estudo22; foi observado ainda que a concomitância de sintomas depressivos e ansiosos torna quase impossível afirmar se um paciente é puramente depressivo ou ansioso. Isso acontece porque os dois construtos (depressão e ansiedade) podem ser componentes de um só processo psicológico. Na prática clínica, depressão e ansiedade se apresentam na maior parte das vezes de forma indissociável. Isso pode explicar em parte o fato de não ter sido encontrada diferença significativa na prevalência de depressão no grupo de hipotireoideos em relação aos eutireoidianos no atual estudo. Porém, quando foi analisada a frequência de sintomas depressivos e ansiosos simultaneamente (pontuação elevada nas duas escalas), observou-se que sua probabilidade é cinco vezes maior no grupo dos pacientes hipotireoideos do que entre controles.
É importante destacar que, embora não tenha sido observada uma diferença significativa na prevalência de depressão entre casos e controles, estima-se que sua prevalência na população geral varie entre 3 e 12%23. A prevalência de depressão encontrada nos pacientes hipotireoideos deste estudo (28%) foi maior do que o dobro do valor máximo esperado na população geral (12%). Entretanto, diferentemente do esperado, a prevalência de depressão entre os controles (16%) foi também ligeiramente superior à da população geral, o que pode ter enviesado os resultados do presente estudo para a não-comprovação da principal hipótese formulada, que era haver associação entre depressão e hipotireoidismo.
É importante destacar que, entre os controles, um percentual elevado das mulheres encontrava-se na peri ou pós-menopausa (média de idade 45,6±10 anos), quando a depressão é mais frequente, o que também pode ter reduzido a capacidade deste estudo de diferenciar os casos dos controles no que diz respeito à prevalência de depressão. Dados já publicados apontam o fato que de 36,824 a 41,8%25 das mulheres nesse estado menopausal podem apresentar sintomas de depressão. Além disso, estima-se que a prevalência de desordens depressivas entre pacientes consultando um ginecologista pode variar de 10 a 40%. Entre mulheres mexicanas que frequentavam hospitais públicos, observou-se que 32,6% eram depressivas26. Já em estudo de base populacional com mulheres brasileiras de meia idade, a prevalência de sintomas depressivos foi de 45,7%2. Deve-se salientar que esses estudos utilizaram diferentes metodologias para avaliação da depressão.
Por fim, a inclusão de funcionárias do Hospital no Grupo Controle pode ter inserido um viés de seleção no presente estudo, uma vez que profissionais de saúde podem apresentar sintomas depressivos e ansiosos mais frequentemente do que a população geral, o que representa uma limitação para os resultados descritos. Deve-se levar em consideração o tamanho amostral do presente estudo. Estudos futuros incluindo um número maior de observações poderão estabelecer melhor a relação entre hipotireoidismo e sintomas depressivos e ansiosos.
Conclui-se que a probabilidade de mulheres com hipotireoidismo apresentarem concomitantemente sintomas ansiosos e depressivos é cinco vezes maior do que em mulheres eutireoidianas. Quando analisados individualmente, os sintomas ansiosos foram três vezes mais frequentes entre os casos do que entre os controles, enquanto os sintomas depressivos mostraram frequência 75% mais elevada entre as pacientes com hipotireoidismo. Devido às altas prevalências de hipotireoidismo e depressão observadas na prática clínica, sintomas depressivos devem ser investigados em pacientes com disfunção tireoidiana, e pacientes deprimidos devem ser testados com TSH.
Agradecimentos
Ao doutor Fernando C. M. Ferreira por, gentilmente, ceder o material e pessoal necessários para os testes de TSH realizados nas pacientes.
Recebido 30/3/10
Aceito com modificações 5/7/10
Conflito de interesse: não há
Hospital Universitário Gaffrée e Guinle - Programa de Pós-Graduação em Neurologia Stricto Sensu da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.