DOI: 10.1590/S0100-72032010001100002 - volume 32 - Novembro 2010
José Wilson Viana Júnior, Wilson Oliveira Felix, Rosana Cipolotti
Introdução
A anemia falciforme (AF) é a forma mais prevalente entre as síndromes falciformes e a que habitualmente apresenta maior gravidade clínica. Caracteriza-se por comprometimento multissistêmico, resultando em expressiva morbidade1. Fenômenos vasoclusivos são o evento fisiopatológico determinante, resultando em vasculopatia proliferativa, que compromete os diversos órgãos e sistemas e tem como consequências clínicas, entre outras, crises álgicas, síndrome torácica aguda, sequestro esplênico, acidente vascular encefálico, úlceras cutâneas, comprometimento do crescimento e atraso puberal2.
A relação entre atraso puberal e fecundidade acarreta a necessidade de se conhecer o padrão ovulatório das jovens pacientes portadoras de AF, comparando-o ao das saudáveis. São várias as técnicas propostas para identificar a ocorrência de ovulação, todas de forma indireta3. Os métodos habitualmente utilizados são, portanto, preditivos, não confirmatórios e baseiam-se nos níveis de hormônio luteinizante (LH), hormônio folículo-estimulante (FSH) e progesterona (PROG) e nas mudanças de tamanho e forma dos folículos ovarianos observadas pela ultrassonografia. São três as categorias de métodos utilizados para estimar ovulação e o provável período fértil: biológicos, bioquímicos e biofísicos3.
Apesar do atraso no início da puberdade e do comprometimento do desenvolvimento físico e sexual, a maturação sexual é alcançada na maioria das pacientes portadoras de AF2,4. Ainda que tardiamente, o desenvolvimento sexual se completa e a capacidade reprodutiva é preservada. Desse modo, infertilidade não parece ser a regra geral para essas mulheres5,6. Entretanto, faltam informações que indiquem se o padrão ovulatório dessas pacientes assemelha-se ao das mulheres saudáveis.
Métodos
Foi realizado um estudo de tipo caso-controle, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da Universidade Federal de Sergipe em 27 de março de 2008, sob o número CAAE 0140.0.107.000- 07, como parte do projeto Estudos Clínicos em Anemia Falciforme II. Pacientes ou seus responsáveis legais leram e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido quando foram convidadas a participar do estudo. Foram incluídas pacientes portadoras de AF confirmada por eletroforese de hemoglobina, acompanhadas no Ambulatório de Hematologia Pediátrica do Hospital Universitário da Universidade Federal de Sergipe, em Aracaju, Sergipe. Eram pacientes nuligestas, após a menarca, que não haviam usado nenhum método contraceptivo nem indutor de ovulação nos três meses anteriores à pesquisa. Todas as pacientes estavam clinicamente estáveis e em acompanhamento ambulatorial regular. Esse grupo foi comparado a um Grupo Controle constituído por mulheres jovens, sem doença crônica, pareadas pelo intervalo desde a menarca. Foram excluídas as mulheres que tivessem sido submetidas a alguma cirurgia no aparelho reprodutor. Dezenove pacientes preenchiam os critérios de inclusão, mas seis não desejaram participar do estudo.
Foi realizada anamnese dirigida, abordando-se os antecedentes ginecológicos e obstétricos. Ciclo menstrual foi definido como o período entre o primeiro dia da menstruação até o dia que antecede a menstruação seguinte7, e foi considerada eumenorreica a paciente que apresentou pelo menos três ciclos menstruais consecutivos com intervalo entre 21 e 35 dias8. A curva de temperatura basal foi construída a partir da aferição diária da temperatura oral ao acordar, com o mesmo termômetro, do primeiro ao último dia do ciclo menstrual. Foi realizada dosagem basal de progesterona plasmática no 20º e 24º dias do ciclo. A avaliação ecográfica da ovulação foi realizada através de ecografias pélvicas transabdominais seriadas (pré, peri e pós-ovulatórias), sendo o primeiro exame realizado no 11º dia do ciclo, diariamente, até a identificação da rotura ou da involução do folículo. Os três métodos foram realizados simultaneamente em três ciclos consecutivos. Considerou-se ciclo ovulatório aquele em que a ovulação provavelmente ocorreu segundo, pelo menos, um dos três métodos empregados: pela curva de temperatura basal, quando ocorreu elevação significativa da temperatura corporal de cerca de 0,2 a 0,3ºC9; pela dosagem sérica de progesterona, quando se obteve valor igual ou superior a 5 ng/mL10 e pela ecografia transabdominal, quando foi observada rotura do folículo dominante e líquido livre no fundo de saco11.
A análise de dados foi feita considerando-se cada ciclo. A comparação entre os grupos foi feita por meio dos testes não paramétricos de Mann-Whitney (variáveis proporcionais e quantitativas discretas) ou Kruskal-Wallis (variáveis quantitativas contínuas), sendo consideradas diferenças significativas aquelas em que o valor de p < 0,05.
Resultados
Foram incluídas no estudo 13 pacientes portadoras de AF, com média de idade de 17,8 ± 3,8 anos (mediana de 18; percentil p25 = 15; p75 = 20,5). No Grupo Controle havia igual número de indivíduos com média de 16,0 ± 3,1 anos (mediana de 17; p25 = 13,5; p75 = 18,5). Não houve diferença significativa entre os dois grupos com relação à média de idade, à idade da menarca, à duração do fluxo nem ao intervalo entre os ciclos, bem como na proporção de eumenorreicas, com vida sexual ativa ou com antecedente de cirurgia abdominal. O valor médio da hemoglobina no grupo de portadoras de AF foi de 8,4 g/dL (± 0,9), inferior à média de 12,6 g/dL (± 0,8) observada no grupo controle (p > 0,01). A frequência de meninas com AF que ovularam em, pelo menos, um ciclo (Tabela 1) foi de 76,9%, valor que não diferiu significativamente dos 92,3% entre as meninas saudáveis (p = 0,5).
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Avaliando-se a ocorrência de ciclos ovulatórios segundo cada um dos métodos estudados, observou-se que a concentração média de progesterona sérica foi de 6,3 ng/mL (± 3,9) para os casos e de 7,2 ng/mL (± 2,8) para os controles, não havendo diferença significativa (p = 0,5). Em ambos os grupos, todas as pacientes cujo valor médio de progesterona sérica na fase lútea era maior ou igual a 10 ng/mL, que corresponde ao p97 do valor observado no Grupo Controle, tinham, pelo menos, três anos desde a menarca (média de 4,4 anos e desvio padrão de 1,5 anos).
A curva de temperatura basal identificou ciclos ovulatórios em 59,4% das portadoras de AF e em 75,8% entre os controles, com diferença que não foi estatisticamente significativa (p = 0,1). A ecografia pélvica transabdominal seriada identificou ciclos ovulatórios em 56,4% das mulheres do primeiro grupo e em 87,2% entre as do segundo, diferença estatisticamente significante (p = 0,003), conforme apresentado na Tabela 2.
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Tomando-se conjuntamente os três métodos, observou-se predomínio (p = 0,04) de indivíduos com os três ciclos ovulatórios no Grupo Controle (84,6%) em relação ao grupo caso (23,1%), conforme exposto na Tabela 3.
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Discussão
Mais de uma centena de condições médicas são causas possíveis de atraso puberal para ambos os sexos; entretanto, em sua maioria, o tratamento ou controle da doença de base restaura a função normal do eixo hipotálamo-hipófise-gônada, o que aparentemente ocorre tardia e parcialmente nas pacientes com AF12.
O atraso da maturação sexual existente na AF tem sido estudado a partir da comparação com grupos de indivíduos saudáveis, avaliando-se a defasagem cronológica em relação aos marcadores do desenvolvimento puberal. Os achados são frequentemente associados ao comprometimento ponderal, da estatura e da maturação esquelética, especialmente em meninas, nas quais o atraso da menarca relaciona-se com a dificuldade em atingir o peso corporal crítico12. No presente estudo, houve atraso de 1,7 anos na média da idade da menarca nas meninas com AF em relação aos controles, diferença que está em concordância com estudo anterior5. Em contraste, em um estudo na Jamaica com uma coorte de 99 pacientes com AF, os autores encontraram atraso da idade da menarca de 2,4 anos, relacionando-o ao comprometimento nutricional6, em concordância com diferentes estudos, também jamaicanos, nos quais o atraso variou entre 2,3 e 3 anos13,14. Um estudo nigeriano também mostrou diferença significativa na idade da menarca de meninas com AF em relação aos controles saudáveis e atribuiu o achado ao efeito de uma doença sobre o crescimento, em especial à má qualidade de resposta dos tecidos-alvos à ação dos hormônios hipofisários15. Apoiando esse ponto de vista, há relato de atraso da menarca em pacientes com fibrose cística, com 1,9 anos em relação aos controles saudáveis16.
Atraso na idade da menarca, assim como outras manifestações clínicas crônicas da AF, é um achado comum, tendo como possíveis causas fatores sociais, constitucionais, hematológicos e endocrinológicos. Estudo prospectivo clássico realizado na Jamaica observou atraso na menarca de 0,5 anos nas pacientes com traço falciforme e de 2,4 anos naquelas com AF, quando comparadas a controles saudáveis. Nesse estudo, atingir o peso crítico de 38 kg pareceu ser o principal determinante da idade da menarca6. Alguns estudos afirmam que a deficiência de zinco nos portadores de AF pode ser uma das causas do atraso do crescimento17.
Neste estudo, não houve diferença significativa entre as características dos ciclos menstruais, como duração do fluxo e intervalo entre os ciclos, caracterizando-os como eumenorreicos e semelhantes aos descritos anteriormente em adolescentes saudáveis18. Esse fato sugere, de forma indireta, a normalidade do eixo hipotálamo-hipófise-ovário.
A dosagem sérica de progesterona mostrou-se semelhante à ecografia transabdominal e superior à curva de temperatura basal na identificação de ciclos ovulatórios na amostra estudada. Em um estudo anterior utilizando ecografia transvaginal (TV), demonstrou-se evidência de ovulação em adolescentes eumenorreicas em 100% dos casos18. Entretanto, a via TV não foi utilizada neste estudo, em virtude de este incluir, em sua maioria, meninas virgens.
Avaliando-se apenas os ciclos das portadoras de AF, observou-se que ecografia transabdominal e a curva de temperatura basal identificaram ciclos ovultórios em proporções semelhantes (56,4 versus 59,4%, respectivamente) entre os casos. Entre os controles, a ecografia transabdominal foi capaz de identificar ovulação em 87,2% dos indivíduos e a curva de temperatura basal, em 75,8%.
Houve perda de 15% das curvas no grupo de casos e nenhuma entre os controles, dado que discorda da literatura, a qual cita frequência máxima de 8% de curvas não úteis à interpretação19. Apesar de pertencentes a estrato socioeconômico equivalente, as portadoras de AF provavelmente têm aproveitamento escolar comprometido pelas intercorrências relacionadas à doença, o que poderia justificar eventual dificuldade na execução das curvas de temperatura basal.
Observou-se predomínio significativo de indivíduos que tiveram os três ciclos estudados identificados como ovulatórios por qualquer dos três métodos entre os controles em comparação aos casos.
Conclui-se que o padrão ovulatório e de regularidade dos ciclos menstruais em mulheres jovens nuligestas portadoras de AF é semelhante ao das saudáveis, permitindo-as gestar normalmente. Os achados justificam a necessidade de efetiva orientação às pacientes com AF quanto à atividade sexual, as possibilidades de gravidez e as alternativas para contracepção.
Recebido 17/2/2010
Aceito com modificações 03/11/2010
Departamento de Medicina da Universidade Federal de Sergipe - UFS - Aracaju (SE), Brasil.