DOI: 10.1590/S0100-72032010001100005 - volume 32 - Novembro 2010
Angelo Barrionuevo Gil Junior, Ana Paula Rodrigues Rezende, Anselmo Verlangieri do Carmo, Erico Isaias Duarte, Márcia Marly Winck Yamamoto de Medeiros, Sebastião Freitas de Medeiros
Introdução
A síndrome dos ovários policísticos (SOP), com prevalência variando entre 2,2 e 26%, segue com vários aspectos fisiopatológicos indefinidos1. Como a população anteriormente classificada com esta síndrome é muito heterogênea, sua definição tem sido matéria de debates nas últimas duas décadas. A primeira tentativa de padronizar critérios diagnósticos, proposta em reunião de especialistas promovida pelo Instituto de Saúde dos Estados Unidos (NIH) em 1990, foi publicada em 1992 e definiu como SOP a existência de anovulação crônica, hiperandrogenismo clínico ou bioquímico e exclusão de hiperprolactinemia, disfunções da tireoide, alterações adrenais e tumores de ovários ou adrenal2. Como esta definição não fazia menção aos aspectos ultrassonográficos ovarianos, não obteve grande aceitação, e as Sociedades Norte-Americana de Medicina Reprodutiva (ASRM) e Europeia de Reprodução Humana e Embriologia (ESHRE) realizaram reunião para consenso, em Roterdã3. A partir desta reunião, foi proposto que a SOP deve incluir pacientes com pelo menos dois dos critérios: oligo-ovulação ou anovulação crônica, sinais clínicos ou bioquímicos de hiperandrogenismo, ovários policísticos ao ultrassom e manutenção dos mesmos critérios de exclusão: hiperprolactinemia, hipo/hipertireoidismo, hiperplasia adrenal congênita clássica e não clássica, doença de Cushing e tumores de ovário ou adrenal secretores de androgênios3.
Os critérios de Roterdã expandiram os do NIH, incluindo os pacientes com ovários policísticos, hiperandrogenismo e ovulação normal ou com ovários policísticos oligo/anovulação sem sinais de hiperandrogenismo. A plausibilidade de que estes dois fenótipos devem ser incluídos na SOP foi examinada recentemente4,5, concluindo-se que há inexistência de dados robustos na literatura que corroborem a inclusão dos pacientes com ovários policísticos ao ultrassom sem sinais de hiperandrogenismo, ainda que possam ter oligo ou anovulação. Em resumo, temos como critérios atuais para definir a SOP: hiperandrogenismo clínico ou bioquímico oligo/anovulação e/ou ovários policísticos pelo ultrassom e exclusão de hiperprolactinemia, disfunções da tireloide, hiperplasia adrenal de manifestação tardia e tumores de ovário ou adrenal produtores de androgênios4,5. Deve-se também considerar no diagnóstico a variação temporal entre o início da síndrome e o desenvolvimento do conjunto de sinais e sintomas, incluindo o aspecto policístico ovariano6.
Na SOP, adrenais e ovários participam da produção excessiva de androgênios. A elevação dos androgênios ovarianos é mais prevalente e implica principalmente o aumento da testosterona (T), como resultado do hiperestímulo do LH, amplificado pela insulina ou pelo aumento intrínseco da secreção destes androgênios nas células da teca7. A elevação dos androgênios adrenais ocorre em 20 a 60% das pacientes com SOP8,9, sendo manifestada por níveis elevados do sulfato de deidroepiandrosterona (DHEAS), 11β-hidroxiandrostenediona (11β-OHA), deidroepiandrosterona (DHEA), androstenediol e androstenediona10. Os mecanismos do hiperandrogenismo adrenal na SOP não estão totalmente esclarecidos, sendo que maior catabolismo do cortisol11 e/ou resposta amplificada dos androgênios adrenais a níveis normais de ACTH têm sido propostos10.
Com a introdução de novos imunoensaios e novos critérios diagnósticos, é recomendável a repetição dos estudos epidemiológicos e clínicos anteriores. Após definição dos parâmetros clínico-laboratoriais atuais e definição dos critérios de exclusão para o diagnóstico da SOP, o perfil da secreção dos androgênios adrenais destas pacientes não foi ainda examinado. Os estudos que precederam esta padronização mostraram que os androgênios adrenais estariam elevados em até 60% das vezes, mas é possível que existam vieses nos estudos mais antigos pela possibilidade de terem incluído indivíduos com condições clínicas que hoje seriam excludentes. Tendo-se em conta a existência de uma lacuna entre as informações obtidas antes e depois da padronização diagnóstica, o presente estudo tem como objetivo reexaminar a secreção de androgênios adrenais após introdução dos critérios de Roterdã para o diagnóstico da SOP.
Métodos
Todas as pacientes foram atendidas prospectivamente no Ambulatório de Anovulação Crônica do Hospital Universitário Júlio Muller e no Instituto Tropical de Medicina Reprodutiva e Menopausa, segundo protocolo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa local desde o início de 2003. O TCLE foi aplicado na primeira entrevista, independentemente de a paciente ter ou não o diagnóstico de SOP confirmado. Inicialmente, foram excluídas as pacientes que tivessem feito uso de esteroides sexuais ou sensibilizadores de insulina nos últimos seis meses e aquelas com hiperprolactinemia, hipotiroidismo ou disfunção das enzimas 21-hidroxilase, 11-hidroxilase e 3-βhidroxiesteroide desidrogenase, ou tumores de ovário e adrenal já diagnosticados. Cinquenta e três pacientes com SOP, diagnosticadas de acordo com os critérios de Roterdã3 revistos por Azziz4, foram elegíveis. Estas pacientes tinham média de idade de 26,0±5,1 anos; 66,1% eram brancas, 17% negras, 1,9% indígenas e 15% miscigenadas; 64,1% eram casadas, 32,1% solteiras, uma paciente era viúva e outra não declarou seu estado civil. Em relação à escolaridade, 13% das pacientes tinham concluído apenas o primeiro grau, 49% tinham concluído o segundo grau e 20,8% cursavam ou tinham concluído o terceiro grau. Tabagismo foi identificado em 7,6%, etilismo social em 26,7% e sedentarismo em 73,3%. Acne foi diagnosticada em 47,2% das pacientes, hirsutismo em 30,2%, acantosis nigricans em 26,4%, esterilidade conjugal em 45,3% e ciclos com intervalos >34 dias/amenorreia em 75%. Duas dessas pacientes (3,8%) foram excluídas após primeira avaliação por apresentarem níveis de 17OHP4 >30 nmol/l 60 minutos após teste dinâmico com cortrosina e 18 foram excluídas por não apresentarem hiperandrogenismo de fonte adrenal, objeto deste estudo. Nas 33 pacientes incluídas na análise, a idade foi de 25,1±5,0 anos. A altura foi medida no estadiômetro de Harpender (Holtain Limited, England) com a paciente em pé, sem sapatos, calcanhares afastados em 20-25 cm e cabeça na posição horizontal. O peso foi verificado com a paciente usando apenas vestes leves, aproximando-se para o 0,1 kg mais próximo. O índice de massa corporal (IMC), usado para medir a adiposidade total, foi calculado com o peso (kg) dividido pelo quadrado da altura (m2). Este parâmetro foi escolhido por apresentar a melhor correlação com a massa gorda total12. A circunferência da cintura, usada para medir a adiposidade visceral, foi medida em centímetros com a paciente em pé, no plano horizontal, a meia distância da crista ilíaca e à margem do arco costal inferior. A circunferência do quadril foi medida no plano da circunferência máxima sobre as nádegas, arredondando-se para o 0,5 cm mais próximo13.
A superfície corporal foi estimada pela fórmula [altura(cm) x peso(kg)/3600]½14. O volume ovariano e a distribuição dos folículos <10 mm e área do estroma foram examinados por ultrassonografia, usando transdutor vaginal com frequência de 5-MHZ. (Voluson® E8, GE Helthcare, Inglaterra). O volume ovariano foi calculado pela fórmula para comprimento, largura e altura: 0,5233 x D1 x D2 x D3, onde D1, D2, D3 foram tomados como diâmetros máximos. Ovários policísticos foram definidos pela presença de 12 ou mais folículos em pelo menos um dos ovários, medindo 2 a 9 mm em diâmetro, e/ou volume ovariano >10 mL ao ultrassom3.
Os testes bioquímicos foram realizados no Laboratório Central do Hospital Universitário Julio Muller.
As amostras de sangue foram colhidas até o quinto dia do início do fluxo menstrual ou, estando a paciente em amenorreia, em qualquer dia, independentemente do tempo transcorrido desde a última menstruação, tendo-se o cuidado de marcar as colheitas com a dosagem de progesterona para certificação de que a amostra não tenha sido colhida após eventual ovulação. Os resultados foram validados sempre que os níveis de progesterona fossem <1,0 ng/mL (<8,0 nmol/L). Foram colhidos pela manhã 20 mL de sangue após 10-12h de jejum. A concentração de glicose plasmática foi estimada pela reação de oxidase (Beckman Glucose analyzer, Fullerton, CA, USA). Hemoglobina glicada foi estimada por cromatografia líquida de alta performance - HPLC (Bio-Rad Laboratories, Hércules, CA, USA). Colesterol total (CT), triglicerídeos (TG) e colesterol de alta densidade (HDL) foram estimados pelos métodos enzimáticos (Wiener Lab BT 3000 plus, Rosário, Argentina). O colesterol de baixa densidade (LDL) foi calculado pela fórmula: CT-HDL-(TG/5)15.
O hiperandrogenismo clínico foi definido apenas pela presença de acne ou hirsutismo ao exame físico da paciente, e o hiperandrogenismo bioquímico foi definido por níveis de testosterona total >70 ng/mL, sulfato de hidroepiandrosterona >248 µg/dL (6,7 µmol/L) androstenediona >245 ng/mL (8,7 nmol/L) e índice de androgênio livre (IAL) >716. O índice de androgênios livres foi estimado pela equação: testosterona total (nmol/L) / SHBG (nmol/L) x 100. O hiperandrogenismo adrenal foi definido primariamente por níveis basais de DHEAS (>6,7 µmol/L) e, com menor poder discriminatório, da androstenendiona >8,7 nmol/L. Resistência à insulina (RI) foi definida por níveis basais de insulina >12,2 µU/mL, SHBG <20 nmol/L ou pelo resultado do modelo homeostático HOMAR-RI (Go nmol/L x Io µU/mL/22,5) >2,817,18.
A hiperplasia adrenal de manifestação tardia foi excluída no início do estudo quando os níveis basais de 17-hidroxiprogesterona (17-OHP4) fossem > (5 ng/mL/ >15 nmol/L); quando eram >2 e <5 ng/mL as pacientes foram incluídas no estudo e submetidas ao teste da cortrosina. Além disso, considerando a possibilidade de falso-negativo com o limite de 2 ng/mL, todas as pacientes com resultados de 17-OHP4 >1,0 ng/mL e <2,0 ng/mL foram também submetidas ao teste. A deficiência da enzima 21-hidroxilase foi definitivamente excluída por níveis de 17-OHP4 <10 ng/mL (30 nmol/L) 60 minutos após o estímulo com ACTH sintético19. A deficiência da 3β-hidroxiesteroide desidrogenase foi excluída com níveis basais de 17-hidroxipregnenolona (17-OHPE) <15 nmol/L; deficiência de enzima 11-hidroxilase foi descartada pelos níveis de 11-deoxicortisol <8 ng/mL (<0,2 µmol/L)10,20.
O teste da cortrosina foi realizado entre 8:00-9:00h após jejum de 12 horas, com a paciente sentada. Após punção venosa e fixação de cateter heparinizado, colheu-se 5 mL de sangue em tubo vacutainer® (Becton Dickison UK Ltd, Plymouth, Inglaterra). Fez-se então injeção em bolus de 0,25 mg de ACTH 1-24 sintético (Synacthen®, Novartis Pharmaceuticals, NJ, USA), colhendo-se novas amostras 30 e 60 minutos depois para dosagem de 17OHP4, cortisol, androstenediona e progesterona. A resposta de cada hormônio foi avaliada pela área sob a curva (ASC) com inclusão do valor basal, pela regra do trapézio e pelo incremento máximo (Δ), determinado como a diferença do valor basal do valor máximo alcançado dividido pelo valor basal.
Considerou-se resposta adrenal exagerada quando os níveis do cortisol 30 min após o estímulo foram >18 µg/dL ou fossem aumentados em pelo menos 7 µg/dL11. Esta resposta foi considerada ainda amplificada quando os níveis de 17-OHP4 foram >15 nmol/L e <30,3 nmol/L 30 e 60 minutos após injeção da cortrosina. A progesterona plasmática foi medida por quimioluminescência, mostrando coeficiente de variação intraensaio de 4,6% e interensaio entre 3,3 e 3,8% nas diferentes concentrações. As concentrações de testosterona total e SHBG foram determinadas por eletroquimioluminescência. A imprecisão intraensaio da testosterona total foi de 2,1% e interensaio de 3,8%. A variação da SHBG no mesmo ensaio foi de 4,1% e em diferentes ensaios de 5,4%. 17-OHP4, androstenediona, DHEAS, cortisol, FSH, LH, prolactina, TSH e tiroxina livre foram medidos por quimioluminescência. Os coeficientes de variação intraensaio não excederam 5% para estes hormônios examinados e os coeficientes de variação interensaios foram <8%. Todos os ensaios foram realizados usando kits comerciais, seguindo instruções dos fabricantes.
Os resultados são resumidos em figuras ou tabelas. A distribuição de todos os dados foi examinada pelo teste de Lilliefors. Variáveis com distribuição normal são apresentadas como média (X) e desvio padrão (DP); variáveis com distribuição não paramétrica são apresentadas por mediana e intervalo de confiança (IC) de 95%. Correlações entre variáveis paramétricas (insulina, DHEAS, androstenediona) foram feitas pelo coeficiente de Pearson (r) e entre variáveis não paramétricas (insulina, progesterona, 17OHP4, estradiol, cortisol) pelo coeficiente de correlação por postos de Spearman (rho). Significância das comparações foi examinada pelo teste t de Student não pareado ou teste das proporções. Valores de p menores que 0,05% foram considerados com significância estatística.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Julio Muller da Universidade Federal de Mato Grosso.
Resultados
Em média, as 53 pacientes inicialmente elegíveis tinham altura de 1,6±0,1 m, peso corporal de 75,7±8,8 kg, IMC de 30,1±7,8 e razão cintura quadril de 0,8±0,1. O volume ovariano foi de 11,5±4,3 cm³. Hiperandrogenismo bioquímico foi encontrado em 43/53 (81,1%) das pacientes com SOP, sendo IAL >7 em 60,9%, testosterona >70 ng/dL em 37,5%, androstenediona >8,7 nmol/L em 58,5% e DHEAS >6,7 nmol/L em 29,2%. Vinte e duas pacientes (41,5%) tinham níveis basais de insulina >12,2 µU/L e em 16 entre 42 (38,0%) a SHBG foi <20 nmol/L. Em 22 de 47 (46,8%), o HOMA-RI foi >2,8.
Os dados antropométricos das 33 pacientes com hiperandrogenismo adrenal incluídas na análise são mostrados na Tabela 1. Nestes pacientes, o volume ovariano foi de 12,1±3,9 cm³. Parâmetros bioquímicos e concentrações basais dos hormônios avaliados são mostrados nas Tabelas 2 e 3. Insulina basal >12,2 µU/L foi encontrada em 14/33 (42,4%), SHBG <20 nmol/L em 11/27 (40,7%) e HOMA-RI >2,8 em 14/29 (48,3%). Dentre estas 33 pacientes com hiperandrogenismo adrenal, o DHEAS foi >6,7 µmol/L em 13/33 (39,4%) pacientes e a androstenediona foi >8,7 nmol/L em 31/33 (93,4%); 26 (78,8%) tinham 17-OHP4 <2 ng/mL (<6 nmol/L) e 7 (21,2%) entre 2,1 ng/mL e 3,1 ng/mL (6,3-9,3 nmol/L). Sessenta minutos após injeção de ACTH 1-24, 29/33 (87,8%) tiveram as concentrações de 17-OHP4 entre 2-10 ng/mL (6-30 nmol/L), sendo que em 7 (21,2%) as concentrações ficaram entre 15 e 30 nmol/L 30 minutos após a injeção da cortrosina. Vinte e oito pacientes (90,3%) mostraram a resposta do cortisol >18 µg/dL ou aumento deste corticosteroide em relação ao basal, de 7 µg/dL.
A resposta adrenal ao estímulo com ACTH-1-24 é mostrada na Tabela 4. No exame de possível influência da insulina sobre a esteroidogênese adrenal em condições basais, não se detectou correlação entre as concentrações de insulina e DHEAS (r=-0,2; t=-1,2; p=0,2), insulina e 17-OHP4 (rho=0,06; t=0,9; p=0,7), insulina e androstenediona (r=0,2; t=0,9; p=0,3), insulina e cortisol (rho=-0,3; t=0,1; p=0,9) ou insulina e progesterona (rho=-0,35; t=-1,4; p=0,2). Do mesmo modo, as concentrações de insulina não mostraram correlação com os níveis destes esteroides após estímulo com ACTH 1-24 (dados não mostrados). Também não se observou correlação entre níveis de estradiol com DHEAS (rho=0,1; t=0,46; p=0,6), 17-OHP4 (rho=0,2; t=1,0; p=0,2), androstenediona (rho=0,3; t=1,7; p=0,09) ou cortisol (rho=0,2; t=-1,2; p=0,2), nem antes e nem após o teste da cortrosina (dados não mostrados).
Discussão
O presente estudo, utilizando os critérios de Roterdã modificados5 para identificar pacientes com SOP, reexaminou a contribuição da suprarrenal para a produção de androgênios em pacientes hiperandrogênicas com SOP. Ainda que o hiperandrogenismo, clínico ou bioquímico, seja critério utilizado para definir a SOP, a definição de hiperandrogenismo bioquímico é limitada pela coexistência de vários androgênios, uso de diferentes parâmetros de cortes entre população normal e os diferentes fenótipos da SOP e, ainda, pela variabilidade e imprecisão dos métodos empregados na quantificação de vários androgênios. Em estudos com inclusão de grande número de pacientes usando critérios parecidos na definição de hiperandrogenismo bioquímico (DHEAS >245-275 ng/dL; testosterona total >70-80 ng/dL e IAL>4,5-7,0), a prevalência de hiperandrogenismo tem sido constatada entre 75-78%21,22. Infelizmente, as concentrações de androstenediona não foram consideradas nesses estudos. No presente estudo, utilizando tanto os padrões publicados em estudos robustos21 como níveis de corte fornecidos pelos fabricantes dos testes usados, hiperandrogenismo bioquímico foi identificado em 81% das pacientes, resultado compatível com as prevalências já relatadas5.
Entre os marcadores utilizados para identificar hiperandrogenismo, a elevação do índice de androgênios livres como parâmetro isolado foi o mais frequentemente alterado, tendo sido observada a sua elevação em 61% das pacientes. Este resultado também confirma observações anteriores nas quais a simples elevação da testosterona livre mostrou valor preditivo positivo em torno de 60%5,22. Vários estudos mostram que a elevação isolada da testosterona livre tem sido identificada entre 55-57% das pacientes com SOP5,22, elevação da testosterona total entre 33 e 38%5,22 e da androstenediona entre 13 e 18%23. O estudo atual mostra resultados muito parecidos. Enquanto estudos anteriores indicavam prevalência de hiperandrogenismo adrenal entre 40-70% das pacientes com SOP24, os estudos mais recentes, já com novos critérios diagnósticos, estimam essa prevalência entre 20-70% e a relacionam à idade8,25. Essa alta prevalência de hiperandrogenismo adrenal na SOP surpreende, já que os critérios introduzidos após 1990 destacam a importância de excluir as alterações adrenais.
O nível basal de 17OHP4 <2 ng/mL (6 nmol/L) praticamente descarta deficiência da 21-hidroxilase, mesmo a forma de manifestação tardia, com valor preditivo negativo de quase 100%19. O presente estudo, efetuando teste de cortrosina em pacientes com SOP e níveis basais de 17-OHP4 a partir 1,0 ng/mL, ainda identificou duas pacientes (3,8%) com provável polimorfismo genético e níveis de 17-OHP4 >10 ng/mL (30 nmol/L) 60 minutos após injeção de ACTH 1-24. Outros têm relatado que 10-13% das pacientes com deficiência da 21-hidroxilase podem ter níveis basais de 17-OHP4 <2 ng/mL, usualmente >1,0 ng/mLl19. Logo, a liberalidade no teste da cortrosina em pacientes com hiperandrogenismo adrenal e 17-OHP4 <2 ng/mL maximiza a detecção da deficiência da 21-hidroxilase nas formas de manifestação tardia.
Prevalência de hiperandrogenismo adrenal de 29% encontrada neste estudo quando se incluiu apenas o DHEAS e de 62% quando se incluiu também a androstenediona confirma a importância da hiperfunção adrenal nas pacientes com SOP, mesmo com a nova sistematização diagnóstica e exclusão das disfunções enzimáticas clássicas. Como em pacientes normais, quase todas as moléculas da DHEAS (95%) e DHEA (80%) são de origem adrenal, é plausível que o presente estudo tome estes esteroides como principais marcadores da função adrenal nas pacientes com SOP. A inclusão da androstenediona é justificável pelo fato de que este esteroide tem como precursores o DHEAS e a 17-hidroxiprogesterona, estando então elevada em grande número de pacientes com hiperandrogenismo adrenal9,24. Incluindo elevação dos dois esteroides, DHEAS e androstenediona, hiperandrogenismo adrenal tem sido relatado entre 23-57%8,26. Considerando como limites DHEAS >248 ng/dL e androstenediona >245 µg/dL, o excesso desses androgênios adrenais em 29% das pacientes no presente estudo confirmam resultados anteriores. Essa variação na prevalência de hiperandrogenismo adrenal entre estudos pode ser atribuída às diferentes populações examinadas, aos diferentes ensaios usados e à inclusão ou não da androstenediona como marcador de fonte adrenal.
Ainda que a produção de cortisol esteja fortemente sob controle do ACTH, o excesso de androgênios adrenais nas pacientes com SOP pode ter controle mais complexo, dissociando-se do cortisol. Tem sido também postulado que existe hiperatividade corticoadrenal intrínseca a níveis normais de ACTH nestas pacientes, já que não ocorre elevação dos níveis basais de ACTH27. Mesmo que os androgênios adrenais estejam aumentados na SOP, os mecanismos desse excesso são incertos, atribuindo-se tal modificação a fatores extra-adrenais como insulina, esteroides ovarianos e fatores genéticos28,29. A produção de androgênios adrenais pode ainda estar ligada aos níveis de prolactina, mas pacientes com prolactina elevada são excluídas de estudos mais recentes. Os níveis de estradiol e testosterona, principais esteoides ovarianos com possível repercussão sobre a produção dos androgênios na adrenal, não demonstraram impactar de modo significante os androgênios nas pacientes examinadas no presente estudo.
Alguns estudos sugerem que pacientes com SOP e resistência à insulina têm os androgênios adrenais DHEAS e androstenediona em menores concentrações, pelo fato de a insulina poder inibir a atividade da citocromo P45017αe/ou 3β-hidroxiesteroide desidrogenase30. A citocromo P450c17α, catalizador da conversão da pregnenolona em DHEAS e da progesterona em androstenediona nas atividades sequênciais 17- hidroxilase e 17,20 liase, parece ser estimulada/desregulada pela hiperinsulinemia nas pacientes com SOP31. São vários os estudos mostrando que a diminuição da insulina promove diminuição dos níveis de androgênios29,32. De fato, a diminuição da insulinemia pelo uso de medicamentos sensibilizadores dos receptores da insulina tem mostrado ser capaz de atenuar a síntese de androgênios adrenais ao diminuir a atividade da citocromo P45031. No entanto, outros estudos mostram que a diminuição da insulina resulta na verdade em maior atividade desta enzima33. No presente estudo, os níveis de insulina não mostraram correlação com os níveis dos androgênios examinados. Essas inconsistências podem ser resultado da influência de outros fatores confundidores ainda não examinados até o momento. É certo apenas que a hiperinsulinemia correlaciona-se com níveis mais baixos de DHEAS34. O mecanismo é incerto, podendo haver alteração da atividade 17,20 liase47 ou não, ou, ainda, diminuição da atividade da enzima 3β-hidroxiesteroide desidrogenase29,35.
O presente estudo mostrou a alta prevalência de hiperandrogenismo bioquímico na SOP com a utilização de múltiplos parâmetros. Mesmo após a sistematização diagnóstica, os androgênios adrenais estão elevados em dois terços dos casos. Apesar de haver hiperatividade adrenal, o estradiol e a insulina parecem não exercer papel modulador na secreção adrenal.
Recebido 30/9/10
Aceito com modificações 23/11/10
Ambulatórios de Anovulação Crônica e Esterilidade Conjugal do Hospital Universitário Júlio Müller e Instituto Tropical de Medicina Reprodutiva e Menopausa, Cuiabá (MT), Brasil.