DOI: 10.1590/S0100-72032010000400003 - volume 32 - Abril 2010
Márcia Pereira Bueno, Ricardo Barini, Frances Lilian Lanhellas Gonçalves, Rilde Plutarco Veríssimo, Lourenço Sbragia
Introdução
Restrição de crescimento intrauterino (RCIU) é uma importante causa de morbidade e mortalidade perinatal. Na população de mães saudáveis e nutridas, a incidência de fetos com RCIU varia de 1 a 3%1e pode chegar a 25% nas mães tabagistas, usuárias de droga e portadoras de doenças cardiovasculares, hematológicas e autoimunes2.
As complicações neonatais decorrentes das RCIU mais freqüentes são hipoglicemia, hipotermia, hipóxia, doenças pulmonares, alterações neurológicas e diminuição da estatura3,4. Durante a infância, indivíduos que tiveram RCIU apresentam mais dificuldade de aprendizado e piores desempenhos neuropsicomotores5 e, durante a fase adulta têm mais chance de desenvolverem doenças cardíacas e metabólicas (dislipidemias, intolerância a glicose e diabetes mellitus do tipo II)6,7.
Vários modelos experimentais de RCIU vêm sendo propostos para facilitar a compreensão da fisiopatologia da doença. O modelo que utiliza rato é o mais empregado, pois além de ter alta semelhança bioquímica e fisiológica com a biologia humana, traz as vantagens do curto período de gestação, baixo custo e fácil manipulação8,9.
Nos modelos experimentais, a RCIU pode ser induzida por meio da embolização ou ligadura da artéria uterina, por desnutrição crônica ou indução de hipertensão materna10,11. A vantagem do modelo da ligadura unilateral da artéria uterina é que permite obter fetos com RCIU e fetos controle na mesma gestação12.
O objetivo deste estudo foi avaliar se a ligadura da artéria uterina durante a fase final da gestação da rata seria eficiente para causar RCIU pela diminuição de circulação materno-placentária.
Métodos
Estudo experimental realizado no Laboratório de Cirurgia Experimental Fetal Michael R. Harrison da Universidade Estadual de Campinas e aprovado pelo Comitê de Ética em Experimentação Animal da Universidade Estadual de Campinas (CEEA-UNICAMP), protocolo nº 1644-1.
Treze fêmeas de ratos Sprague-Dawley com peso ao redor de 250 g foram submetidas ao acasalamento. O casal foi mantido em conjunto durante uma noite. No dia seguinte, a região genital da fêmea foi examinada para verificação de mancha vaginal de esperma (vaginal smear). A presença da mancha vaginal configurou o acasalamento e foi considerado dia zero de gravidez (o tempo de gestação normal de ratas até o termo é de 22 dias).
Três grupos compostos por 20 fetos cada um foram divididos e nominados: Grupo RCIU - fetos de ratas grávidas localizados no corno esquerdo e submetidos à ligadura da artéria uterina com 18,5 dias, Grupo C-RCIU (controle da RCIU) - fetos de ratas grávidas localizados no corno direito sem ligadura da artéria uterina e Grupo CE (Controle Externo) - fetos de ratas não submetidas à intervenção.
Após aclimatação de 24 horas no laboratório, ratas Sprague-Dawley grávidas com 18,5 dias de gestação (termo=22 dias) foram submetidas à anestesia geral com injeção intramuscular de Ketamina base 50 mg/mL (Ketamina®, Pfizer do Brasil) associada com Xilazina 10 mg/mL (Rompum®, Bayer do Brasil) na dose de 0,6 mL por animal via intramuscular aplicado na lateral da coxa. Esta composição anestésica (175 mg/kg de Ketamina; 2,5 mg/kg de Xilazina) mantém o animal sob anestesia profunda durante um período de três horas e o pós-operatório é indolor durante 6 a 12 horas. O abdome foi submetido à raspagem dos pelos com tosquiadeira elétrica. Após assepsia e colocação de campos estéreis, o animal foi submetido à laparotomia mediana em dois planos (pele e aponeurose/peritoneo). A região uterina foi exposta com visualização dos cornos uterinos e sua circulação. A artéria uterina direita foi dissecada e ligada bem próxima ao corno uterino com fio de algodão 3.0, tomando o cuidado de não envolver os vasos do mesentério. Após a ligadura da artéria uterina, ocorre redução do fluxo sanguíneo placentário com instalação de recirculação proveniente da artéria ovariana.
Após a ligadura, o abdome da rata foi fechado em dois planos, com utilização de fio mononylon 4-0, sutura contínua. Após o término do procedimento, as ratas foram recuperadas com oxigênio a 100% inalado a 1 L por minuto em máscara adaptada, até estarem completamente acordadas e se movimentando sem problemas. O período pós-operatório ocorreu em gaiolas de acrílico, em baias individuais, com água e ração oferecidas ad libitum.
No dia 21,5 de gestação, as ratas dos grupos RCIU, C-RCIU e CE foram novamente anestesiadas (mesma dose previamente descrita) e submetidas à operação cesariana por laparotomia mediana. Os fetos foram removidos do útero e a rata foi sacrificada por exsanguinação sob anestesia. Após remoção do útero, os fetos foram pesados em balança de precisão modelo Ohaus 360 (Denver Instruments, Denver, Co) e o peso corporal (PC) foi aferido em mg. Em seguida, os fetos foram submetidos à punção occipital e o abdome fetal foi aberto por incisão mediana e dissecado sob foco de luz, com auxílio de microscopia óptica, expondo-se as alças. As alças intestinais foram removidas desde o piloro até a região do reto superior, na reflexão peritoneal. O intestino, o fígado, os rins e a placenta de todos os grupos foram removidos, pesados (mg) e fixados em solução de paraformaldeído 4% fresco, sendo respectivamente denominados peso intestinal (PI), hepático (PH), renal (PR) e placentário (PP). As relações corporais PH/PC, PI/PC, PR/PC, PP/PC foram criadas com o objetivo de verificar a proporção relativa entre os órgãos. Todos os tecidos foram corados com Hematoxilina / Eosina (H&E), e o tecido hepático foi corado pela técnica de Schiff (PAS) para avaliação do acúmulo de glicogênio.
Para a morfometria do intestino, foram analisados os segmentos intestinais intermediários (jejuno-ileal). Os cortes histológicos intestinais transversais foram fotografados utilizando o fotomicroscópio Nikon Eclipse E800, com ampliação de 20 vezes para a avaliação do diâmetro intestinal vertical externo (VE) (medida externa vertical desde a serosa), diâmetro intestinal vertical interno (VI) (medida interna vertical desde a mucosa), diâmetro intestinal horizontal externo (HE) (medida externa horizontal desde a serosa) e diâmetro intestinal horizontal interno (HI) (medida interna horizontal desde a mucosa), 100 vezes para a medida da altura dos vilos e 200 vezes para a medida das camadas da parede intestinal. Para avaliação estatística, foi utilizada a média entre VE e VI, entre HE e HI. As imagens foram digitalizadas, possibilitando a medida dos diâmetros intestinais, da altura dos vilos desde o topo até a junção da cripta, da espessura total da parede, das camadas mucosa e submucosa, muscular circular, muscular longitudinal e serosa por meio do programa Image Pro Plus®. As medidas, em µm, foram realizadas em orientação radial, nos quatro quadrantes de cinco cortes sequenciais, de cada variável para cada feto13,14 (Figura 1).
Para a morfometria renal, foi analisado um dos dois rins dos animais, sem distinção entre lado direito e esquerdo. Os cortes histológicos renais longitudinais foram fotografados utilizando o foto microscópio Nikon Eclipse E800, com ampliação de 40 vezes. As imagens foram digitalizadas, por meio do programa Image Pro Plus®, em cinco cortes sequenciais, aferidas em µm, de cada variável para cada feto. As medidas renais realizadas foram: altura, aferida entre o polo superior e inferior; largura, aferida entre a pelve e o lado contralateral; e tamanho da medula e do córtex renal (Figura 2).
Para a análise estatística, foi empregado teste t de Student para amostras pareadas para a comparação dos pesos e das relações corporais, apresentados como média e desvio padrão. Os grupos foram comparados segundo ANOVA seguido do teste de Tukey. Foram considerados valores estatisticamente significativos quando o p<0,05.
Resultado
Treze ratas grávidas compuseram o estudo. A ligadura da artéria uterina foi realizada em dez ratas e três foram utilizadas como controle externo (CE). O peso médio das ratas submetidas à cirurgia aos 18,5 dias foi de 324 g (±67), e o peso médio final aos 21,5 dias de gestação foi de 340 g (±83) com aumento de peso de 16 g (±65). As 3 ratas CE apresentaram peso médio inicial de 320g (±65) e final de 348 g (± 25), com aumento de 60 g (±20). Embora as ratas CE ganhassem mais peso médio do que as ratas operadas, não houve diferença no peso médio final entre as ratas operadas e o grupo CE (p>0,05).
O total de fetos do corno direito, submetidos ao regime de hipofluxo cirúrgico, foi de 55 e destes 20 sobreviveram. Dos 35 fetos mortos, a maioria estava mais próxima à ligadura arterial, principalmente o primeiro e o segundo fetos sequenciais à ligadura.
O peso corporal, o peso hepático e o intestinal dos fetos RCIU foi significativamente menor que os seus respectivos C-RCIU e o grupo CE (p<0,001). O peso renal, o peso placentário e as relações entre o peso corporal, hepático, intestinal, renal e placentário não mostraram diferença significativa (Tabela 1). Com a diminuição de peso de alguns órgãos e a manutenção das relações entre o peso corporal/órgão, demonstra-se que os fetos com RCIU tiveram uma diminuição proporcional do seu tamanho (Figura 3).
A análise morfométrica intestinal mostrou no grupo de RCIU, em relação ao grupo CE, uma diminuição significativa da luz intestinal (camada interna) e da largura da alça intestinal (diâmetro externo). A diminuição das camadas intestinais concentra-se especificamente na serosa, mucosa e submucosa no grupo de RCIU em relação ao grupo do C-RCIU e CE (Tabela 2).
Não houve diferença morfométrica entre o comprimento e largura renal nos grupos RCIU, C-RCIU e CE. No entanto, a espessura da camada cortical renal foi menor em relação à espessura da camada medular no grupo de RCIU quando comparada as espessuras cortical e medular dos grupos C-RCIU e CE (p<0,01).
A descrição geral histológica dos fígados corados com ácido periódico de Schiff (PAS) demonstrou, respectivamente: a) depósito de glicogênio de aspecto homogêneo nos hepatócitos em cerca de 80% dos fragmentos examinados no grupo CE; b) depósito de glicogênio de distribuição heterogênea (irregular) no grupo C-RCIU; e c) irregularidade acentuada no depósito de glicogênio, alternando zonas claras (sem depósito) com zonas coradas (com depósito) em mais de 50% dos fragmentos no grupo RCIU (Figura 4).
Discussão
Fetos que apresentam RCIU tiveram resposta adaptativa à suplementação de oxigênio e/ou nutrientes inadequada. Modelos animais para determinar os eventos moleculares, genéticos ou celulares são utilizados para compreender melhor a relação entre nutrição fetal na RCIU e as doenças na idade adulta15.
Vários animais têm sido utilizados em modelos experimentais de RCIU. A maioria dos estudos emprega animais de pequeno porte, como os ratos (60%) e camundongos (10%), pela facilidade de manipulação e similaridade dos seus sistemas embriológico, anatômico e fisiológico com o dos seres humanos9. O modo de indução da RCIU nestes animais pode ser realizado por restrição da oferta de alimento; por hipóxia, restringindo-se a oferta de oxigênio; modelo químico, quando se utiliza drogas que afetam a prole; e cirúrgico15.
Nos modelos nutricionais, empregam-se o jejum prolongado, a diminuição nutricional16 ou a diminuição específica de proteínas17. Nos modelos que induzem hipóxia materna, empregam-se a diminuição de diferentes níveis de oxigênio, o uso do nitrogênio endotraqueal e a indução de anemia materna18. No modelo induzido químico, as substâncias, como glicocorticoides e deidroergotaminas, são as mais comumente utilizadas19.
Nos modelos cirúrgicos, utilizam-se animais de pequeno e grande porte. Nos de grande porte, especialmente ovelhas e porcos, a RCIU é induzida de duas maneiras: ou pela embolização de microesferas de 15 a 30 µm de diâmetro na circulação útero-placentária ou pela retirada de cotilédones na implantação da placenta. No modelo cirúrgico de animais de pequeno porte, a RCIU pode ser feita ligando-se a artéria uterina de um ou de ambos os lados20.
Wigglesworth12 demonstrou a importância da circulação uterina para o crescimento fetal com a criação do modelo cirúrgico de RCIU em fetos de rato por meio da ligadura unilateral completa da artéria uterina. Neste modelo, a incidência de fetos mortos ou reabsorvidos após a oclusão arterial varia de 30 a 60%. Nós obtivemos 32% de fetos vivos, resultados similares aos obtidos com a técnica proposta pelo autor.
A incidência de mortalidade fetal pode ser reduzida com oclusão parcial da artéria uterina20 ou com a oclusão em intervalos de minutos a horas21. Nesses estudos, as respostas fetais variaram em relação à quantidade de fluxo sanguíneo mantido para o feto. Esta alteração de aporte sanguíneo não-controlado poderia influenciar o grau de RCIU fetal, o que dificultaria a comparação com o modelo de oclusão arterial completa.
A RCIU pode ser didaticamente classificada em simétrica e assimétrica. Na RCIU simétrica, os fetos têm diminuição de nutrientes ou disfunção placentária durante o primeiro trimestre ou início do segundo trimestre da gestação. Nessa situação, há um crescimento proporcional diminuído. Em nosso estudo, embora a ligadura tenha sido realizada com 18,5 dias, que corresponde ao final do segundo trimestre da gestação em humanos, as relações dos pesos entre os diferentes órgãos (PH/PC, PI/PC, PR/PC e PP/PC) demonstraram que os fetos tiveram RCIU simétrica.
A insuficiência útero placentária pode promover alterações na parede intestinal e reflete o impacto da RCIU sobre o trato gastrintestinal. Foi verificado que a espessura intestinal foi menor nas camadas da mucosa e submucosa e serosa, mas outros estudos relatam diminuição do peso intestinal e um aumento do apoptose intestinal no mesmo modelo22.
Fetos com RCIU tiveram diminuição da relação córtico-medular renal atribuída à diminuição do número e da função dos glomérulos, que reflete a situação adaptativa ao regime de hipofluxo sanguíneo fetal. Nossos resultados confirmam estes achados com diminuição na espessura do córtex, semelhante aos de outros autores23.
Não ocorreu diminuição do peso placentário e este resultado é semelhante ao de Wigglesworth12 com obstrução completa da artéria uterina. Segundo estudos com obstrução parcial da artéria uterina e nos modelos de RCIU nutricional, o peso placentário é menor em fetos com RCIU20,8. A placenta, na metade da gestação, tem seu crescimento mais rápido que o fetal, e uma deficiência nutricional neste período pode diminuir ou manter o peso placentário24.
A capacidade do feto de se adaptar à restrição de nutrientes regulariza todo o metabolismo, e essa nova situação pode ser responsável por algumas doenças na vida adulta25.
Finalmente, concluímos que o modelo de RCIU por meio da ligadura unilateral da artéria uterina foi eficaz e pode ser útil para avaliar a restrição de crescimento fetal de causa materna, assim como as possíveis repercussões neonatais.
Agradecimentos
Este trabalho foi realizado no Laboratório de Cirurgia Experimental Fetal "Michael R. Harrison" - UNICAMP - com auxílio pesquisa da FAPESP-08/51497-9.
Recebido19/1/10
Aceito com modificações25/3/10
Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP; Divisão de Patologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUCCAMP - Campinas (SP), Brasil; Divisão de Cirurgia Pediátrica do Departamento de Cirurgia e Anatomia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil; Laboratório de Cirurgia Experimental Fetal "Michael R. Harrison" - UNICAMP - Campinas (SP), Brasil.