DOI: 10.1590/S0100-72032010000100006 - volume 32 - Janeiro 2010
Raphael Câmara Medeiros Parente, Vilmon de Freitas, Rodrigo Soares de Moura Neto, Marco Aurélio Pinho de Oliveira, Ricardo Bassil Lasmar, Marisa Teresinha Patriarca, Felipe Simões Canavez
Introdução
A metaplasia óssea do endométrio é caracterizada pela presença de tecido semelhante ao osso dentro da cavidade uterina. É mais frequente em pacientes com infecções genitais recorrentes, alterações menstruais, dor pélvica crônica e antecedentes de abortamento ou infertilidade1. A idade mais prevalente da afecção oscila entre 20 e 40 anos2, mas já foi descrita na pós-menopausa3. Embora a prevalência real desta afecção não seja conhecida, estima-se que alcance 0,15% dos casos encaminhados para clínicas de histeroscopia, dado embasado em estudo de prevalência4.
Apesar de fragmentos ósseos na cavidade uterina serem chamados genericamente de metaplasia óssea, conceitualmente e etimologicamente somente poderiam assim ser classificados aqueles derivados do endométrio, uma vez que metaplasia é a transformação de tecido adulto em outro igualmente adulto5. Embora a metaplasia óssea do endométrio tenha etiologia e patogênese controversas, observa-se que mais de 80% ocorrem após gestações prévias, principalmente nas que resultaram em abortamentos4,6. Não obstante, muito se discute sobre a etiologia dessa afecção. Enquanto alguns pesquisadores insistem em afirmar que a presença de restos ovulares é fundamental1, outros defendem a existência de metaplasia verdadeira4. A maioria, porém, admite a ocorrência das duas vias, originando-se tanto de abortamentos como de metaplasia verdadeira1-3, considerando, entretanto, a necessidade de estímulos ligados às modificações gravídicas do organismo materno sobre o endométrio.
Esses fatos ilustram claramente a discordância no tocante à etiologia da metaplasia óssea do endométrio. Entretanto, vale ressaltar que, dentre as teorias mais aceitas, a calcificação e a ossificação distrófica do tecido ovular residual pós-abortamento e a heteroplasia das células estromais uterinas multipotentes latentes são as mais consistentes. Ainda, a metaplasia pode ser diferenciada pela histologia dos fragmentos ósseos oriundos de restos conceptuais pela ausência de reação tecidual ao seu redor, além da falta de ossificação endocondral, já que esse tipo de osteogênese ocorre somente após o primeiro trimestre de gravidez7.
Nosso grupo, em estudo recente, demonstrou a etiologia em oito casos, caracterizando a metaplasia os tecidos originários da própria paciente8, e não remanescentes de abortamentos. O objetivo deste artigo foi demonstrar os fatores de risco para a lesão e o quadro clínico das pacientes com metaplasia óssea e avaliar a possível melhora de sinais e sintomas após a retirada do fragmento ósseo.
Métodos
Foi realizado um estudo no qual foram incluídas pacientes com o diagnóstico de fragmentos ósseos na cavidade uterina no período de julho de 2006 a janeiro de 2009. Devido à raridade da doença, houve busca ativa de qualquer caso suspeito ou confirmado de metaplasia óssea uterina após contato prévio com diversos centros de endoscopia, patologia e imagem do Estado do Rio de Janeiro. Após o aceite da paciente e confirmação do caso como metaplasia óssea verdadeira, eram incluídas no estudo e atendidas para responderem ao questionário e realizarem coleta de sangue no Hospital Universitário Pedro Ernesto. O local de retirada dos fragmentos foi o próprio centro inicial de atendimento da paciente, seja privado ou público. Nos casos novos, havia a presença do pesquisador principal para coletar imediatamente os fragmentos ósseos para análise histopatológica e genética. O critério de inclusão foi o achado de fragmento ósseo retirado da cavidade uterina. Todas as pacientes tiveram confirmação histológica da presença de tecido ósseo na cavidade endometrial, sendo descartadas aquelas que tinham o diagnóstico de calcificação apenas. O critério de exclusão era a discordância em participar do estudo. O estudo foi previamente submetido a e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Todas as pacientes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Neste período, foi possível selecionar 16 pacientes para participarem do estudo. O nosso objetivo primário foi avaliar a etiologia do material ósseo por meio da comparação de DNA. Nesta investigação, obtivemos os dados de todas as pacientes antes e depois da retirada, além da pesquisa de possíveis fatores relacionados ao aparecimento da doença. Para pesquisa de dados referentes a sinais, doenças e sintomas prévios ao diagnóstico e retirada dos fragmentos ósseos e após o procedimento de extração, utilizou-se um questionário. A forma de retirada, assim como os antecedentes obstétricos, também foi avaliada por meio deste questionário. O diagnóstico foi dado sempre por meio do resultado histopatológico de tecido ósseo. Estes fragmentos foram retirados por meio de histeroscopia após visualização de fragmentos semelhantes a ossículos. Na maioria dos casos, a histeroscopia foi solicitada por suspeita ultrassonográfica.
Resumidamente, para cada paciente solicitou-se pessoalmente, através do pesquisador principal: idade atual, idade na descoberta da presença do fragmento ósseo, idade na época da retirada do fragmento ósseo, meio pelo qual foi efetuada a retirada (curetagem, histeroscopia cirúrgica ou ambulatorial, etc.). Foi incluído na investigação o método pelo qual foi feito o diagnóstico imagenológico que levou à indicação da retirada (histeroscopia, ultrassonografia (Figuras 1 e 2) ou ambos, sinais e sintomas antes e depois da retirada, história gestacional pregressa (partos e abortos), tempo decorrido entre o último aborto (caso tenha ocorrido) e a descoberta do fragmento ósseo e, por último, doenças concomitantes.
Resultados
Os resultados são apresentados nas Tabelas 1 e 2. A média de idade no diagnóstico da metaplasia óssea foi de 40,4 anos. Na nossa série de casos houve uma grande heterogeneidade quanto à faixa etária das pacientes, variando de 20 a 67 anos. A variação de tempo entre o último abortamento e o diagnóstico foi de 4 meses a 40 anos (Tabela 1). Avaliando-se clinicamente todas as pacientes inicialmente alocadas para essa pesquisa, foi observada alta incidência de menorragia. Metade das pacientes de nossa casuística referia, no momento do diagnóstico, queixas relacionadas a alterações no fluxo menstrual, mais especificamente de menorragia. Não houve queixa de irregularidade menstrual (metrorragia). Quatro pacientes eram assintomáticas no momento do diagnóstico definitivo, tendo sido a suspeita levantada por ultrassonografia de rotina. Há, também, relatos de pacientes que foram surpreendidas com a saída de fragmentos ósseos junto com o fluxo catamenial. A dor pélvica esteve presente em 25% das pacientes no momento do diagnóstico, sendo que em metade das vezes era do tipo dismenorreia. A infertilidade, comumente citada nos relatos de casos que versam sobre metaplasia óssea, é um dos achados mais prevalentes e foi encontrado em pouco mais de um terço delas. Houve uma paciente que, após abortamento provocado, foi submetida à laparotomia exploradora e seis cirurgias subsequentes por complicações sépticas. Outra paciente teve gravidez tubária tratada com salpingectomia unilateral. Esses dois casos ilustram situações em que houve prejuízo do processo reprodutivo, sem que a metaplasia óssea fosse a única causa determinante da infertilidade. Por outro lado, não foi observado nenhum caso de doença sistêmica, como o hiperparatireoidismo.
Muito consistente foi a melhora da sintomatologia após a retirada dos fragmentos, sobremaneira os hemorrágicos e os álgicos. Das nove pacientes que apresentavam pelo menos um destes sintomas, somente uma teve melhora parcial, e as demais relataram recuperação completa (Tabela 2). De seis pacientes que se queixavam de infertilidade, duas engravidaram posteriormente à retirada dos fragmentos. Além disso, duas pacientes já estavam em idade com possibilidade menor de gravidez (entre 42 e 46 anos), e outra desistiu de participar do seguimento. A sexta paciente ainda tentava engravidar na época da redação deste artigo. A história de aborto é universal e não há diferença entre o provocado e o espontâneo. Não tivemos nenhum caso de nuliparidade, embora uma paciente tenha tido somente uma história de gravidez ectópica e nenhum relato de abortamento intrauterino prévio. Finalmente, o achado menos observado em nossas pacientes foi a eliminação de "pó branco" ou de "pedaços de ossos" pela vagina (Tabelas 2). A Tabela 2 mostra as queixas e o relato de melhora. No caso da infertilidade, somente foi classificado como 'sem melhora' a paciente que tentou engravidar e não conseguiu, o que não ocorreu com toda a amostra, impossibilitando avaliar o real papel da retirada no tratamento.
Discussão
Esta é a maior casuística em âmbito mundial sobre sinais e sintomas de pacientes com metaplasia óssea endometrial. Até então, a maior série de casos, publicada em 2009, incluiu cinco pacientes9.
A metaplasia óssea cursa, em grande parte, com irregularidade menstrual, dor pélvica crônica, dispareunia, corrimento vaginal e infertilidade4. Pode ser, ainda, assintomática1. Há interessantes relatos de pacientes que foram surpreendidas com a saída de fragmentos ósseos junto com o fluxo menstrual10,11, o que também foi encontrado em nosso estudo. Avaliando-se clinicamente todas as pacientes inicialmente alocadas para essa pesquisa, conseguimos resultados que, em parte, são concordantes com a literatura, nos quais se observa alta incidência de queixas relacionadas a sangramento anormal. Por outro lado, não foi verificado nenhum caso de hiperparatireoidismo, o que de certa forma diverge da literatura pertinente. Como limitante para a validade deste último resultado, temos que ressaltar que não foi feito qualquer exame laboratorial para excluir ou confirmar essa ou outra doença que pudesse alterar o metabolismo do cálcio. Somente aplicamos um questionário para as participantes do estudo questionando a existência dessas doenças.
Destas 16 pacientes, foi possível extrair DNA ósseo e sanguíneo de oito pacientes. Em todas estas, os fragmentos ósseos têm origem metaplásica, já que o perfil genético de células do sangue periférico foi o mesmo do fragmento8. Embora todas tivessem história de abortamento (até o terceiro mês), nenhuma diferença foi detectada no DNA, o que seria esperado caso o tecido ósseo fosse proveniente de restos ovulares. Este resultado é inesperado, já que é totalmente diferente da proporção estimada pela literatura prévia baseada especificamente na epidemiologia dos casos sem análise genética. Estes achados reforçam a teoria de alguns autores de que até o terceiro mês não é esperada formação óssea fetal. É possível que células totipotentes fetais tenham estimulado a transformação do endométrio em tecido semelhante ao osso (metaplasia).
Entre as teorias mais bem aceitas para se explicar a etiologia da metaplasia óssea endometrial, estão as da calcificação distrófica (incrustação de sais em tecidos previamente lesados, com processos regressivos ou necrose), a da calcificação de restos ovulares e das células totipotentes presentes no endométrio e com capacidade de se transformarem em tecido ósseo ou cartilaginoso12. Algumas desordens metabólicas, como hipercalcemia, hipervitaminose D, hipofosfatemia e hiperparatireoidismo, podem ser associadas ao achado de fragmentos ósseos no interior da cavidade uterina13. Além disso, a estimulação prolongada do endométrio por estrogênios sem a contraposição da progesterona também é considerada fator promotor de metaplasia óssea endometrial14. Em nosso estudo, o único fator associado com o achado de metaplasia do endométrio dentro da cavidade uterina foi história prévia de abortamento. Todas as pacientes foram questionadas em relação aos outros fatores de risco e não houve nenhum relato deles.
Esses sintomas e sinais descritos decorrem, em sua maioria, da endometrite reacional consequente à presença da afecção na cavidade uterina, muito semelhante ao ocorrido na mucosa endometrial na presença de um dispositivo intrauterino, alterações que também dificultam a nidação do blastocisto, e por isso esse método contraceptivo é considerado abortivo15.
O diagnóstico da metaplasia óssea do endométrio pode ser feito por meio de exame ultrassonográfico pélvico ou transvaginal que poderá evidenciar área hiperecogênica na cavidade uterina, ou por meio da histeroscopia, pela visualização de lâmina esbranquiçada com aspecto que lembra osso, calcificação ou tecido fibroso, ou pela própria visualização direta do fragmento. O melhor momento para realização da endoscopia é durante o início da fase proliferativa do ciclo menstrual, ocasião em que a menor espessura do endométrio facilita a inspeção de toda a cavidade do útero.
O tratamento da metaplasia óssea é realizado por meio de retirada histeroscópica dos fragmentos ósseos ou por curetagem uterina16. Com a retirada dos fragmentos ósseos, há diminuição da secreção local de prostaglandinas, e o volume do fluxo menstrual é reduzido em cerca de 50%15. Além disso, restaura-se a fertilidade, obviamente se não existirem outras afecções concomitantes11,16-18.
Em resumo, a metaplasia óssea uterina geralmente cursa com aumento do fluxo menstrual e pode ser causa de infertilidade, embora não sejam raras situações em que a paciente é assintomática e somente descobre o fragmento ósseo acidentalmente, durante um exame ultrassonográfico de rotina. Em pacientes sintomáticas, o tratamento é bastante eficiente na resolução das queixas e deve sempre ser aventado preferencialmente por via histeroscópica. A retirada do fragmento ósseo pode restaurar a fertilidade em pacientes selecionadas e que tenham como causa a metaplasia óssea, e é bastante efetiva em proporcionar melhora nos casos que cursam com dor pélvica e menorragia.
Recebido 19/11/09
Aceito com modificações 19/12/09
Não houve qualquer suporte financeiro
Não há conflito de interesse
Departamento de Ginecologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP - São Paulo (SP), Brasil.