DOI: 10.1590/S0100-72032010000800004 - volume 32 - Agosto 2010
Claudinéia de Araújo, Bianca Borsatto Galera, Marcial Francis Galera, Sebastião Freitas de Medeiros
Introdução
A síndrome de Turner (ST) é responsável por cerca de um quinto dos casos de abortamentos espontâneos precoces e pode estar presente em 50 a cada 100.000 mulheres caucasianas nascidas vivas. Em 50 a 60% delas há monossomia do cromossomo X (45,X) no cariótipo e, nas demais, mosaicos ou anomalias estruturais do cromossomo X ou Y podem ser encontradas1. As características clínicas da ST mais frequentes são a baixa estatura (variando de acordo com a altura dos pais e com a população estudada), disgenesia gonadal (que resulta em atraso no desenvolvimento puberal), amenorreia primária e esterilidade. Encontra-se, ainda, uma grande variedade de sinais dismórficos, tais como pescoço curto e/ou alado, tórax largo e em escudo, cubitus valgus, baixa implantação dos cabelos, orelhas proeminentes1-9.
As pacientes com ST têm risco para desenvolver hipotireoidismo e diabetes mellitus tipos I e II cinco vezes maior do que a população normal. Há também maior risco de malformações cardíacas, hipertensão arterial, coronariopatia isquêmica, arterioesclerose e doença vascular cerebral4,5,7-9. Há elevação de 35% na prevalência de todos os tipos de câncer, destacando-se o câncer colorretal, com risco relativo de 4,94-9. Condições como cirrose hepática, espinha bífida, cifose, osteoporose com fraturas e malformações do sistema urinário são também mais prevalentes na ST. Enquanto malformações congênitas são mais comuns nos indivíduos com cariótipo 45,X, outras alterações ocorrem mais nas pacientes com outros cariótipos4. Como resultado de todas estas manifestações, a mortalidade nas pacientes com ST é de três a quatro vezes maior7-9. O presente estudo se propôs a examinar as características clínicas e citogenéticas da ST e a verificar possíveis associações entre cariótipo e aspectos clínicos nessas pacientes.
Métodos
Este estudo de coorte transversal, descritivo, teve como proposta investigar as variáveis antropométricas e verificar a prevalência das alterações dismórficas e manifestações clínicas em pacientes com a ST. Objetivou, ainda, examinar a possível existência de associação entre o cariótipo e os diferentes estigmas ou condições clínicas anormais coexistentes. Foram incluídas 42 pacientes, com idade variando entre 1 mês e 40 anos, média e desvio padrão de 14,9±2,4 anos. O neonato foi excluído dos cálculos. Todas as pacientes com ST avaliadas foram atendidas no Ambulatório de Genética da Unidade de Genética Médica e Biologia Molecular do Hospital Geral Universitário da Universidade de Cuiabá (UNIC), ou foram encaminhadas do Ambulatório de Desvio de Crescimento e Desenvolvimento do Hospital Universitário Júlio Müller da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). As pacientes que concordaram em ser incluídas no estudo, ou seus responsáveis, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIC.
As variáveis antropométricas foram verificadas em consulta com um dos pesquisadores ou obtidas dos registros nos prontuários das pacientes. Os pesos das pacientes foram aferidos usando apenas vestes leves, aproximando-se para o 0,1 kg mais próximo. A altura foi medida usando fita milimétrica, com a paciente em pé, sem sapatos, calcanhares aproximados e cabeça na posição horizontal. A circunferência da cintura foi medida em centímetros com a paciente em pé, no plano horizontal, a meia distância da crista ilíaca e margem do arco costal inferior. A circunferência do quadril foi medida no plano de circunferência máxima sobre as nádegas, arredondando-se para o 0,5 cm mais próximo. O índice de massa corporal (IMC) foi calculado como peso (kg) dividido pelo quadrado da altura, em metros (m2). O perímetro cefálico foi medido com a paciente sentada e olhando para frente, por meio de uma fita milimétrica, obtendo-se a circunferência máxima da cabeça, geralmente encontrada na região occiptofrontal. O comprimento da mão foi medido com uma fita milimétrica, obtendo-se a medida desde a prega distal do punho até a ponta do dedo médio. A medida dos pés foi realizada também com uma fita milimétrica, com a paciente deitada, obtendo-se a distância entre a ponta do dedo mais longo e a extremidade do calcanhar.
As características clínicas e dismórficas foram obtidas em entrevista realizada durante a consulta, com a própria paciente e/ou seu responsável, quando necessário, foram obtidas diretamente da análise dos prontuários das pacientes. O diagnóstico laboratorial da ST foi confirmado pela realização do cariótipo. A citogenética foi realizada em linfócitos de sangue periférico com a análise de 30 a 50 metáfases de cada paciente por bandeamento G com resolução de 400 a 500 bandas. Os resultados foram interpretados de acordo com Summer et al.10 e Lahiri e Nurnberg11.
Com o objetivo de evitar erros tipo I e II nas conclusões, o tamanho da amostra foi estimado pela fórmula x > (1,96. r/σ)2, sendo x o número de casos necessários, r o número de nascidas vivas por 100.000 (r=50) e σ uma imprecisão de 15 casos a cada 100.000, e intervalo de confiança (IC) de 95% . A distribuição de frequências das diversas variáveis foi descrita no texto ou mostrada em tabelas. A possível associação entre variáveis foi examinada pelo teste do χ2 ou Fisher. A força de associação entre variáveis foi estimada pela taxa de prevalência, com IC de 95%. Um erro α de até 5% foi considerado estatisticamente significante. Todas as análises foram realizadas por meio do software HyperStat Online Textbook12.
Resultados
Sessenta e quatro por cento das pacientes apresentavam cariótipo com monossomia do cromossomo X (45,X); 26,2% apresentavam cariótipo mosaico (45,X/46,XX); 7% apresentavam, além do mosaicismo, uma inversão do cromossomo X (45,X/46Xi(Xq)) e 2,3%, além do mosaicismo, uma deleção do braço longo do cromossomo X (45,X/46,X,Del(Xq)). As análises clínicas e/ou levantamento das informações registradas nos prontuários destas pacientes revelaram que 22 eram brancas (52,4%), 4 negras (9,5%), 3 amarelas (7,1%) e 13 miscigenadas (30,9%). A distribuição dos dados antropométricos em estratos de cinco anos é mostrada na Tabela 1. O aumento de cerca de 10 a 15 cm nos diâmetros da cintura e quadril mostrou correlação linear significante com a idade (r=0,9; IC95%: 0,9-1,0; p=0,01). As alterações dismórficas são elencadas por ordem decrescente de prevalência na Tabela 2. A análise de possível associação entre o cariótipo e as alterações dismórficas mostrou que o aspecto mais marcante é a prevalência de 100% das pacientes com baixa estatura (Tabela 3), independentemente de o cariótipo ser 45,X ou mosaico.
A implantação baixa dos cabelos foi encontrada com maior frequência em pacientes com cariótipo 45,X, proporção de aproximadamente 2:1 em relação aos indivíduos com mosaico (p=0,03). O pescoço alado esteve presente na mesma proporção entre pacientes com cariótipo 45,X ou mosaico. No mosaicismo 45,X/45,Xi (Xq), o cubitus valgus e a sobreposição de dentes foram observados em 20 e 25% das pacientes, respectivamente (Tabela 4). As alterações clínicas mais frequentes foram as anomalias cardiovasculares (45%), renais (19%), otites (43%), disfunções tiroideanas (33%), hipotireoidianas (21%) e hipertensão arterial (26%). Alterações ósseas na coluna vertebral tiveram prevalência de 22%, sendo osteoporose de 10%, cifose de 15% e escoliose de 11%. A análise de possível associação entre determinada manifestação clínica e cariótipo não mostrou significância estatística entre cariótipo e aparecimento de otite de repetição, hipertensão arterial, disfunção tireoidiana ou obesidade (p>0,05).
Em relação à história de uso de medicamentos, 31 pacientes (74%) faziam ou tinham feito uso do hormônio de crescimento (GH), 18 (43%) tinham usado ou usavam estrogênios conjugados associados a um progestogênio, 5 (11,9%) estavam em uso de levotiroxina e 4 (9,5%) de oxandrolona. A razão de prevalência da associação entre a idade gestacional em que ocorreu o parto e a dificuldade de aprendizagem destas pacientes foi de 1,7 (IC95%: 0,6-3,9; p>0,05).
Discussão
Este estudo é o primeiro a descrever as características clínico-antropométricas de mulheres com ST na região Centro-Oeste. De um modo geral, aproximadamente metade das pacientes com ST têm cariótipo 45,X1-9,13. A prevalência de 64% com esse cariótipo entre as 42 pacientes incluídas no presente estudo é mais elevada e também excede a taxa de 40% encontrada em outro estudo brasileiro realizado em Campinas, São Paulo14. É provável que esta diferença se deva a viés na amostragem. Ainda que pareça haver um predomínio de pacientes caucasianas com ST, a proporção de 5:1 entre brancos e negros encontrada nesse estudo é bem maior do que o esperado pelas características da população local. Estudos examinando a distribuição da ST em diferentes etnias são escassos. Três estudos norte-americanos, incluindo 262 mulheres com ST, relataram que 88% delas eram brancas e 5,3% negras e entre os controles 58% eram brancas e 29% negras15-19. No conjunto, estes estudos indicam prevalência da ST pelo menos cinco vezes mais elevadas entre mulheres brancas quando comparadas com as negras. Resta saber se há vieses de maior busca pelos serviços de saúde entre brancos ou diferença na gravidade das alterações fenotípicas entre etnias.
Parece também não haver qualquer associação entre cariótipo e variáveis antropométricas na ST17-19. Nessas pacientes, a estatura situa-se abaixo do 5º percentil para mulheres normais, a partir de dois anos de idade. Na idade adulta, a estatura média alcança 1,43 m, raramente ultrapassando 1,50 m. Altura variando entre 1,33 e 1,57 m tem sido encontrada em vários estudos nacionais e europeus7,17-19, podendo-se prever crescimento menor em até 20 cm. No presente estudo, a baixa estatura foi estigma presente em todas as pacientes com mais de 15 anos, havendo relatos na literatura de prevalência de baixa estatura entre 84 e 100%. Levando-se em conta o gráfico de crescimento para mulheres norte-americanas com ST, até 8 anos de idade, a estatura das pacientes deste estudo está no percentil 50 daquela população, indicando semelhança entre as duas populações.
O IMC e a razão cintura-quadril têm sido relatados como mais elevadas nas pacientes com ST em relação a mulheres normais da mesma idade7. No presente estudo, o IMC não indicou aumento de massa gorda, confirmando dados nacionais já publicados. A razão cintura-quadril >0,86 encontrada nas diferentes faixas-etárias no presente estudo corrobora outros estudos4,16,17 e mostra valores estáveis em todos os estratos. O crescimento de ±20 cm nos diâmetro da cintura e quadril, ocorrendo de modo linear, reflete a ausência da ação estrogênica na distribuição ginecoide de gordura nestes indivíduos. Vale lembrar que, embora apresentem retardo no crescimento longitudinal, essas mulheres têm as medidas dos diâmetros biacrômio ou bilíaco equiparáveis a mulheres normais. Esta desproporcionalidade na forma corporal das pacientes com ST tem sido observada em outros estudos4,17.
A baixa estatura presente em todas as pacientes deste estudo confirma a relevância deste estigma para o diagnóstico clínico da ST. A prevalência de 86% da implantação baixa dos cabelos é duas vezes maior do que os dados compilados na literatura. e a diferença, provavelmente causada pela subjetividade na percepção dos diferentes examinadores. O número de indivíduos relatados com pescoço alado e curto é semelhante aos dados encontrados em estudos norte-americanos e europeus4,7. O cubitus valgus, presente em cerca de 20% das pacientes deste estudo, parece ser mais prevalente nos indivíduos europeus, onde cerca de metade deles possui esse estigma. A sobreposição de dentes em 16% dos indivíduos não foi relatada em estudos já publicados, o que torna as comparações difíceis. Infelizmente, os estudos epidemiológicos disponíveis até o momento limitam os relatos dos estigmas apenas aos mais prevalentes.
Ainda que não se tenha identificado qualquer associação entre cariótipo e determinado dismorfismo no presente estudo, este achado pode ser devido ao pequeno número de indivíduos incluídos no estudo. De modo geral, malformações congênitas são mais frequentes nos indivíduos com cariótipo 45,X5. Ainda que a monossomia do cromossomo X tenha sido detectada na maioria das pacientes (64,3%), observou-se variação no cariótipo e presença dos mosaicos (45,X/46,XX; 45,X/46,Xi (Xq), 45,X/46,X, del (Xq). Essa grande variedade genotípica encontrada na ST pode responder pela diversidade das características fenotípicas e clínicas observadas.
Em conclusão, o presente estudo mostrou que quase dois terços das pacientes com ST têm cariótipo 45,X, que a baixa estatura é a característica fenotípica mais frequente observada em todos os cariótipos e que as manifestações clínicas mais prevalentes nessa síndrome são as cardiovasculares, otites, disfunções tireoidianas e hipertensão arterial. Apenas a implantação baixa dos cabelos teve associação com os resultados cariotípicos.
Recebido 11/9/09
Aceito com modificações 29/7/10
Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Federal de Mato Grosso UFMT Cuiabá (MT), Brasil.