DOI: 10.1590/S0100-72032010000800006 - volume 32 - Agosto 2010
Ricardo Bassil Lasmar, Paulo Roberto Mussel Barrozo, Raphael Câmara Medeiros Parente, Bernardo Portugal Lasmar, Daniela Baltar da Rosa, Ivan Araujo Penna, Rogério Dias
Introdução
A histeroscopia (HSC) constitui um importante método propedêutico na investigação da infertilidade conjugal, complementando o estudo da pelve feminina em conjunto com a ultrassonografia transvaginal (USG) e a histerossalpingografia (HSG)1.
A HSG é de grande importância na avaliação da permeabilidade tubária. Entretanto, apresenta muitas limitações no estudo da cavidade uterina, e muitas vezes não permite o diagnóstico diferencial de algumas malformações ou de doenças como sinéquias, miomas submucosos ou pólipos, que são sugeridos com a identificação de falhas de enchimento. A USG, quando comparada com a HSG, demonstra uma acurácia menor1. Aproximadamente 40% dos casos de infertilidade que são referenciados para histeroscopia demonstram achados inesperados de anormalidades2. Embora esse valor seja significativo, não há consenso sobre a utilização prévia de histeroscopia em todas as pacientes com infertilidade3.
A HSC permite visão direta e estudo detalhado do canal cervical e de seu trajeto, do aspecto morfológico e funcional do orifício interno, além da avaliação estrutural e morfológica da cavidade uterina4,5. Frequentemente, é capaz de diagnosticar e tratar doenças que interferem na fecundação, nidação ou na manutenção da gestação, podendo elevar as taxas de sucesso da fertilização in vitro (FIV)6-8.
Os estudos e recomendações recentes são discordantes em relação ao momento da indicação da HSC nas pacientes em pesquisa de infertilidade. Enquanto alguns indicam a HSC em todas as pacientes que serão submetidas à FIV com base em trabalhos que mostram anormalidade em cavidade mesmo com USG e HSG normais9, outros somente a indicam em caso de alterações na USG e/ou na HSG ou em casos de falha em FIV prévia10.
A HSC apresenta a importante vantagem sobre os outros métodos propedêuticos da confirmação anatomopatológica das lesões identificadas visualmente, por meio da biópsia dirigida. Isto permite que o diagnóstico possa ser realizado mesmo que haja falha na identificação da doença11. Ao mesmo tempo, a HSC permite o tratamento de vários dos achados como, por exemplo, pólipos e miomas.
Há uma escassez de dados sobre casuísticas brasileiras na avaliação de pacientes inférteis por meio da HSC11. Há uma predominância de estudos europeus e americanos. Levando-se em conta que alguns dos achados relevantes na HSC são fortemente afetados por hábitos que dependem das leis e dos costumes de cada país, como a sinéquia, que está fortemente relacionada a manipulações após abortos12 e com achados como a miomatose, que tem uma forte carga genética13, achamos importante a realização de um estudo englobando um grande número de pacientes para avaliar essa questão.
O objetivo deste trabalho foi identificar os resultados dos exames histeroscópicos em pacientes que tiveram como motivação para sua realização a queixa de infertilidade.
Métodos
Foi realizado estudo retrospectivo, analítico, descritivo com 10.020 prontuários de pacientes submetidas à histeroscopia ambulatorial, provenientes do setor de endoscopia ginecológica da Faculdade de Medicina de Botucatu e do serviço privado de endoscopia ginecológica no Rio de Janeiro (GINENDO). Para pesquisa de dados referentes a sinais, doenças e sintomas prévios ao procedimento, utilizou-se um questionário. Na universidade, foram atendidas as pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) e, no serviço privado, pacientes de convênios e particulares.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Educacional Serra dos Órgãos (FESO-CEPq).
Avaliamos 10.020 histeroscopias. Destas, 957 (9,5%) tinham como única indicação do exame a pesquisa de infertilidade. Os outros exames tinham como indicação: sangramento uterino anormal em 4.803 (47,9%) com resultados já publicados14, achados anormais em USG em 3.389 (33,8%) e outras indicações em 877 (8,7%), tais como: retirada e recolocação de dispositivo intrauterino, pré-operatório, revisão pós-operatória, dor, corrimento, abortamento incompleto, avaliação da cavidade uterina antes da terapia hormonal, dentre outros motivos.
As 957 pacientes em pesquisa de infertilidade foram submetidas à histeroscopia, preferencialmente na primeira fase do ciclo menstrual. Quando necessário, foram realizadas as biópsias dirigidas (sob visão direta durante o exame) ou orientadas, utilizando uma cureta de Novak após definir o local a ser biopsiado durante o exame histeroscópico. Foi considerada cavidade uterina normal à histeroscopia quando o exame não identificou nenhum achado anormal (pólipo, mioma, sinéquia, endometrite) ou malformação congênita. Os exames histopatológicos normais foram aqueles que mostraram endométrio compatível com o ciclo e idade da paciente.
Os critérios de inclusão usados foram: mulheres em pesquisa de infertilidade (ausência de gravidez após um ano de coito desprotegido) submetidas à histeroscopia. Dos 957 exames realizados em pacientes com infertilidade, em 953 casos o exame histeroscópico foi completo, isto é, em 99,6% dos exames foram completamente avaliados o canal cervical e a cavidade uterina. Destes, em 694 pacientes, foi realizado estudo anatomopatológico de fragmento da lesão intrauterina, no caso de biópsia, da lesão intracavitária quando feita sua retirada, ou do útero (pós-histerectomia).
Foram excluídos quatro exames por não terem sidos completos, isto é, em 0,4% dos casos não foi possível avaliar o canal cervical e/ou a cavidade uterina no momento do exame.
As histeroscopias eram realizadas ambulatorialmente com meio de distensão gasoso até 1999 e, a partir dessa data, foram realizadas com meio de distensão líquido, o soluto fisiológico. A partir de 2000, os exames passaram a ser realizados por vaginoscopia sem colocação de espéculo ou pinça de Pozzi, apenas com o toque bimanual antes do procedimento.
Todas as pacientes utilizaram um comprimido de brometo de N-butilescopolamina 30 minutos antes do exame ou um supositório de diclofenaco sódico 50 mg duas horas antes do procedimento. Todos os exames foram realizados por somente dois examinadores de grande experiência (RBL e DBR). As pacientes também foram informadas sobre o desconforto do procedimento e da possibilidade de ser interrompido imediatamente quando houvesse solicitação.
Foram utilizadas porcentagens para determinação da frequência dos desfechos e o teste de χ2 para correlações. O programa estatístico EpiInfo 2000 (CDC) foi utilizado para análise dos dados.
Resultados
A idade das pacientes variou entre 18 e 52 anos, com média de idade de 32,2 anos. Das 953 pacientes, 408 (42,8%) nunca haviam engravidado, 228 (23,9%) engravidaram uma única vez, 153 (16,1%) por duas vezes e 164 (17,2%) tiveram três ou mais gestações (Tabela 1). No momento da histeroscopia, 157 (16,5%) pacientes já tinham um ou mais filhos. No grupo estudado, 482 (50,6%) pacientes relataram abortamento prévio.
Das 953 pacientes submetidas à histeroscopia, em 365 (38,3%) a cavidade uterina e a biópsia de endométrio foram normais, sendo este o achado mais frequente (Tabela 2). Em 185 casos (19,4%) foram diagnosticadas sinéquias intrauterinas, em 115 (12,1%) foram encontrados pólipos endometriais, em 47 (4,9%) miomas submucosos, em 39 (4,1%) hiperplasias endometriais após estudo histopatológico, em 32 (3,4%) foram identificadas malformações uterinas não previamente diagnosticadas por outros métodos, em 21 (2,2%) observou-se incompetência ístmo-cervical, em 4 (0,4%) foi diagnosticada endometrite após confirmação histopatológica, em 1 (0,1%) caso houve o diagnóstico de câncer de endométrio, e em 144 casos houve outros achados, tais como: pólipos endocervicais, endocervicite, neoplasia intraepitelial cervical entre outros. Quando as pacientes foram estratificadas para infertilidade primária ou secundária, notamos que o achado de cavidade normal pela HSC foi o mais frequente para infertilidade primária (p<0,05). Ao mesmo tempo, não foram encontradas diferenças para casos de infertilidade secundária.
Dos 185 casos com sinéquias uterinas encontradas na histeroscopia, em 158 (85,4%) havia história de aborto prévio. Somente em 27 (14,6%) casos não houve referência a aborto prévio. Neste estudo, em 32,8% das pacientes com história de abortos prévios foram encontradas sinéquias intrauterinas, enquanto a incidência foi de 5,7% entre aquelas que não haviam tido aborto. A porcentagem de sinéquias intrauterinas em pacientes com história de abortos prévios por número de abortos realizados foi 59 (28,6%) casos entre 206 mulheres com um abortamento, 46 (31,1%) casos em 148 com 2 abortamentos e 53 (41,4%) casos entre 128 com 3 ou mais abortamentos (Figura 1). Quando as pacientes foram estratificadas para número de abortos prévios, notamos que o fato de ter no máximo um aborto estava relacionado com achado de cavidade predominantemente normal (p<0,05). Por outro lado, não foram encontradas diferenças para casos de dois ou mais abortos prévios.
Na Tabela 1 estão os diagnósticos histeroscópicos das 953 pacientes com infertilidade, demonstrando que os achados mais frequentes foram a cavidade uterina e o endométrio normais, representando pouco mais de um terço dos exames histeroscópicos. Porém, em 41% dos casos foram encontradas doenças na cavidade uterina que poderiam estar relacionadas com a dificuldade de engravidar, tais como pólipos endometriais, miomas, hiperplasias endometriais, endometrite e câncer de endométrio. As alterações uterinas morfológicas e funcionais representaram 5,6% dos casos.
Discussão
Neste trabalho, assim como em outros literatura, o achado isolado mais frequente na HSC das pacientes com infertilidade foi a cavidade uterina normal com biópsia de endométrio normal, representando 38,3% dos casos4,8. Entretanto, demonstrou-se que a maior parte dos exames (54,2%) apresentou doenças ou alterações anatomofuncionais que poderiam estar associadas à dificuldade de engravidar, e tais dados são mais elevados que estudos prévios que demonstram resultados de anormalidades em torno de 40%2,3. A HSC tem a vantagem de permitir a visualização e tratamento da maioria destas lesões15. Nesse grupo de achados anormais, a sinéquia intrauterina foi o diagnóstico mais frequente, correspondendo a quase um quinto das histeroscopias realizadas. Esta frequência de sinéquias é maior do que a encontrada em estudos estrangeiros, sendo reportadas taxas de 1,5% em pacientes com história de infertilidade16,17. Sinéquias intrauterinas são relativamente raras, com uma prevalência difícil de se estimar. Sua prevalência depende muito da população sob estudo. É mais frequente em países com maior prevalência de tuberculose genital, assim como naqueles com maior frequência de abortos e curetagens18, como o nosso país. Essa associação poderia explicar os achados com frequência mais alta que o da literatura. Até o que se sabe, após exaustiva busca, este é o estudo com a maior casuística para a investigação de pacientes com infertilidade no nosso país. Um estudo brasileiro prévio demonstrou um achado de sinéquias significativamente menor11. Isso pode ter ocorrido em razão de a investigação ter sido efetuada em pacientes que já seriam submetidas à reprodução assistida, o que pode ser resultado de investigação, diagnóstico e tratamento prévios destas sinéquias.
Na investigação desse grupo de pacientes com sinéquias intrauterinas, percebemos que estas aderências foram seis vezes mais frequentes nas mulheres que se submeteram a abortamento do que entre aquelas que negaram este procedimento previamente à histeroscopia. Houve também correlação direta entre a presença de sinéquias uterinas e o número de abortos, isto é, a incidência de sinéquias cresceu proporcionalmente ao número de abortamentos, chegando a um pouco mais de 40% nas mulheres com 3 ou mais perdas embrionárias, o que já foi demonstrado anteriormente14.
Trabalhos demonstraram que o risco de aderências intrauterinas no abortamento estaria relacionado com o grau de manipulação da cavidade uterina8,16. No nosso trabalho, não foi possível determinar esse risco, pois todos os casos de aborto foram colocados no mesmo grupo, não sendo classificados com ou sem manipulação uterina.
Não há consenso sobre a avaliação da cavidade endometrial em pacientes com infertilidade apresentando exames sonográficos normais ou na avaliação prévia à reprodução assistida3. Acreditamos que, com base nos resultados do nosso estudo, as pacientes com história de aborto associada à infertilidade devem ser avaliadas por HSC no complemento da investigação, independentemente de outros exames de imagem mesmo normais. A importância do exame histeroscópico cresce, já que a cirurgia histeroscópica é bastante efetiva na resolução das sinéquias com taxas de gravidez próximas a 50% e de retorno das menstruações em mais de 90% em pacientes amenorreicas14,19-21.
Mesmo com a realização da investigação de infertilidade, na maioria dos casos, no menacme, casos de câncer e hiperplasia de endométrio foram diagnosticados, e isso aumenta a importância da indicação da histeroscopia na pesquisa da paciente com dificuldade de engravidar.Concluindo, quase metade das histeroscopias em pacientes com infertilidade apresentou alterações relacionadas com a dificuldade de engravidar, e a sinéquia intrauterina foi o diagnóstico mais frequente neste grupo, seguida do pólipo endometrial. Cerca de um quinto das pacientes apresentaram sinéquias intrauterinas, mostrando sua possível influência nos casos de infertilidade. Pacientes com história de aborto e infertilidade devem, portanto, ser avaliadas com HSC para descartar sinéquias intrauterinas como possível causa.
Recebido 22/6/10
Aceito com modificações 29/7/10
Serviço de Ginecologia, Obstetrícia, Ginecologia e Mastologia da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" UNESP Botucatu (SP), São Paulo; e GINENDO Ginecologia Endoscópica Rio de Janeiro (RJ), Brasil.