DOI: 10.1590/S0100-72032010000700005 - volume 32 - Julho 2010
Karina Schiavoni Scandelai Cardoso dos Reis, Rodrigo Oliveira Moreira, Walmir Ferreira Coutinho, Fernanda Vaisman, Carolina Gaya
Introdução
A síndrome do ovário policístico (SOP), também referida como síndrome Stein-Leventhal, é uma das endocrinopatias mais comuns, afetando aproximadamente de 5 a 10% das mulheres na fase reprodutiva1-4. Em sua forma clássica, a SOP caracteriza-se por irregularidade menstrual, anovulação e ovários policísticos2. Além disso, são também comumente encontrados nessas pacientes: obesidade central, resistência à insulina (RI), hiperandrogenismo e níveis elevados de hormônio luteinizante (LH). Nos últimos anos, tem sido destacada sua associação com aumento do risco de dislipidemia, hipertensão arterial sistêmica (HAS), intolerância à glicose ou diabetes mellitus tipo 2, síndrome metabólica e doenças cardiovasculares5-7.
É interessante observar que algumas das alterações tipicamente observadas nas pacientes com SOP podem ser encontradas em indivíduos do sexo masculino. Mais especificamente, anormalidades na ação e secreção da insulina, intolerância à glicose e dislipidemia já foram demonstradas também como agregação na família de mulheres com SOP8. Esses dados sugerem que esta síndrome pode apresentar uma base genética9,10.
Alguns autores têm sugerido que as alterações metabólicas da SOP não ocorrem exclusivamente em pacientes do sexo feminino. Essas alterações podem acometer também homens, especialmente os que têm história familiar de SOP11,12. Alguns achados suportam a hipótese de presença de uma síndrome semelhante à SOP em homens: algumas características da SOP (excetuando-se as alterações ovarianas) são frequentemente encontradas em homens e a anormalidade endócrino-metabólica principal da SOP não estaria nos ovários. Ainda hoje não é bem conhecida a fisiopatologia completa da SOP. Por outro lado, sabe-se que o defeito primário está relacionado também ao comprometimento da secreção das gonadotrofinas, defeitos no metabolismo ou síntese de esteroides sexuais e alterações na sensibilidade à insulina, resultando em hiperinsulinismo13,14. Um dos aspectos que podem dificultar a identificação de homens com hiperandrogenismo relacionado à SOP é que alguns sinais clínicos podem não ser notados simplesmente porque essas características são consideradas típicas de pacientes do sexo masculino, como pele oleosa, calvície precoce, acne e hirsutismo. Esses sinais também são relatados em homens com parentesco de primeiro grau com mulheres com SOP.
O objetivo deste estudo foi avaliar as características clínicas e laboratoriais de parentes do sexo masculino de primeiro grau de pacientes com diagnóstico confirmado de SOP e comparar os achados com um grupo controle sem história familiar de SOP.
Métodos
■ População estudada
Inicialmente, foram identificadas pacientes do sexo feminino acompanhadas no Ambulatório de Endocrinologia Feminina do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia. Todas as pacientes tinham diagnóstico de SOP conforme os critérios de Consenso Internacional de Rotterdam (2003). Os critérios baseiam-se na presença de, no mínimo dois de três dos achados: ovário policístico pela ultrassonografia (presença de dois ou mais folículos em cada ovário medindo de 2 a 9 mm e/ou ovário aumentado >10 mL); presença de anovulação crônica ou deficiência de ovulação (usualmente manifestada com oligomenorreia ou amenorreia) e sinais clínicos ou laboratoriais de hiperandrogenismo3; excluindo-se mulheres com deficiência não-clássica de 21 hidroxilase, síndrome de Cushing ou com secreção excessiva de andrógenos por tumores. Do grupo inicial, foram selecionadas 28 pacientes com familiares de primeiro grau do sexo masculino. Os indivíduos do sexo masculino foram então convidados a participar do estudo.
Além disso, foram selecionados aleatoriamente 28 homens para Grupo Controle. Os critérios de seleção para os controles foram: faixa etária de 18 a 65 anos, não estar em uso de hormônios (testosterona e derivados) e não apresentarem parente de primeiro grau com síndrome SOP. Os indivíduos dos dois grupos foram pareados por idade, índice de massa corpórea (IMC), circunferência abdominal e relação cintura/quadril.
O protocolo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia do Rio de Janeiro Luis Capriglione. Nenhum procedimento do estudo foi realizado antes da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.
■ Exame clínico
Os dados clínicos avaliados foram: idade, pressão arterial sistólica e diastólica (mmHg), peso (kg) medido em balança Filizola, altura (m) verificada em estadiômetro, IMC (kg/m2). A circunferência abdominal (cm) foi aferida na metade entre a porção inferior da última costela e a borda superior da crista ilíaca, com fita métrica inelástica.
Resultados
Foram avaliados 28 parentes de primeiro grau do sexo masculino de pacientes com SOP e 28 homens controles cujas características estão presentes na Tabela 1. Todos participantes eram brasileiros. Idade, IMC, circunferência abdominal e relação cintura/quadril foram pareados entre os grupos.
Em relação a sinais de hiperandrogenismo, as características listadas a seguir foram avaliadas. No Grupo de Parentes, foram observadas : alopecia em 20 dos 28 participantes (71,4%) e hipertricose em 12 dos 28 participantes (42,8%); no Grupo Controle foram observadas alopecia em 4 dos 28 participantes (14,2%; p<0,001) e nenhum caso de hipertricose (p<0,001). Quanto à presença de acne e pele oleosa, foi verificada positividade em 18 dos 28 parentes (64,2%) versus 7 dos 28 controles (25%; p=0,006) e 19 dos 28 parentes (67,8%) versus 10 dos 28 controles (35,7%; p=0,03), respectivamente. Em relação à presença de Acantosis nigricans, foi observada em 4 dos 28 parentes (14,2%), enquanto nos controles esteve presente em 1 dos 28 (3,5%, p=0,3).
No Grupo de Parentes, havia quatro pacientes com diagnóstico prévio de diabetes mellitus, enquanto no Grupo Controle havia apenas um. Os níveis de pressão arterial sistólica mostraram-se maiores ou iguais a 140 mmHg em 11 dos 28 parentes e, entre controles, em 3 dos 28 participantes (p=0,02), enquanto para pressão arterial diastólica observaram-se níveis maiores ou iguais a 90 mmHg em 8 dos 28 parentes e em 3 dos 28 controles (p=0,1).
Foi realizada a análise de correlação para investigar a relação entre os níveis de SHBG e os parâmetros antropométricos. Foi encontrada uma relação significativa com IMC (r=-0,30, p=0,02), HOMA-IR (r=-0,44, p=0,0009) e triglicérides (-0,56, p<0,0001), sendo que a tendência à significância foi observada com a cintura (r=-0,24, p=0,06). A regressão multivariada foi utilizada para determinar se os níveis de SHBG se correlacionavam independentemente com algumas das variáveis: IMC, HOMA-IR e triglicerídeos. Foi constatado que apenas a variável "triglicerídeos" permaneceu com relacionada aos níveis de SHBG (p=0,005).
Foram avaliados sinais clínicos de hiperandrogenismo, como calvície, alopecia e acne e a presença de Acantosis nigricans.
■ Avaliação laboratorial
A venopunção foi realizada após jejum prévio de 12 horas para a coleta dos seguintes exames: glicose, colesterol total (CT), triglicerídeos (TG) e lipoproteína de alta densidade aferidos pelo método colorimétrico enzimático (kit para aparelho modular Hitache - Roche). A lipoproteína de baixa densidade (LDL) foi calculada utilizando-se a fórmula de Friedewald: LDL = CT-HDL - TG/5. Foram dosados também SHBG (globulina ligadora de hormônios sexuais) por radioimunoensaio; LH (hormônio luteinizante), FSH (hormônio folículo-estimulante), testosterona total e insulina aferidos por quimioluminescência (kit DPC Immulite-Medlab). Foi realizado o cálculo HOMA-IR com a fórmula: glicose (mg/dL) x 0,0555 x insulina jejum x 1/ 22,05.
■ Análise estatística
Os dados foram avaliados utilizando o programa GraphPad InStat 3.00 para Windows 95 (GraphPad Software, San Diego, Califórnia, USA). A comparação das médias entre os diferentes grupos foi realizada por meio do teste t de Student para variáveis paramétricas e Mann-Whitney para variáveis não-paramétricas. As análises de correlação foram realizadas com teste de Pearson para as variáveis paramétricas e de Spearman para as não-paramétricas. A regressão linear multivariada foi utilizada para avaliar o impacto independentemente das variáveis investigadas com os testes de correlação. Foram utilizados testes bicaudados em todas as análises. O limite de significância foi de 5%.
Discussão
A SOP é uma das doenças endócrinas mais frequentes e parece se associar diretamente com a RI. Além disso, existem evidências de que a SOP também pode ter origem genética. O objetivo deste estudo foi avaliar se parentes do sexo masculino de primeiro grau de mulheres com SOP apresentariam alterações em parâmetros clínicos e metabólicos independentemente do IMC como já descrito na SOP14,15. Os principais achados deste estudo demonstraram que parentes de pacientes com SOP apresentaram níveis mais elevados de glicemia de jejum, HOMA-IR e triglicerídeos e valores menores de SHBG quando comparados com indivíduos do Grupo Controle, pareados por idade, IMC e circunferência de cintura.
Dentre as anormalidades da SOP, a RI tem se mostrado uma das mais prováveis causas do hiperandrogenismo. A resistência à ação da insulina pode ser definida como incapacidade de ação desse hormônio no transporte da glicose ou ação lipolítica, na presença normal de ligante da insulina. A hiperinsulinemia secundária à RI pode causar uma maior secreção de androgênios pelas células da teca ovariana, Acantosis nigricans, aumento da reatividade vascular e endotelial e metabolismo lipídico hepático e periférico anormais, com elevação dos ácidos graxos livres16-19. De forma geral, a RI se correlaciona diretamente com marcadores antropométricos, principalmente a medida da cintura20,21. Um dos resultados mais interessantes deste estudo foi demonstrar que parentes de primeiro grau de pacientes com SOP apresentam níveis mais elevados de glicemia de jejum e HOMA-IR, mesmo pareado com um grupo de mesmo IMC, cintura e relação C/Q. Esses dados sugerem que a RI pode ter uma origem genética independente de marcadores antropométricos. Este componente hereditário já havia sido constatado por Colilla et al22. em familiares de pacientes com SOP. Outra explicação para a hiperglicemia é que ela pode indicar uma relativa disfunção da célula beta. Essa manifestação já foi demonstrada em irmãs, irmãos e filhos de mulheres com SOP sem relação com o grau de obesidade23,24.
Já existem evidências de que não apenas a RI pode ter origem genética. Legro et al.25 demonstraram que aproximadamente metade das irmãs de mulheres com SOP são afetadas por hiperandrogenismo e/ou ovários policísticos, o que sugere que a tendência para esse distúrbio possa ser geneticamente transmitida26,27. Em nosso estudo, não foi possível demonstrar hiperandrogenismo laboratorial. Talvez uma possível limitação para tal achado seja o fato de se ter apenas realizado a dosagem de testosterona total. A inclusão de outros marcadores laboratoriais de hiperandrogenismo poderia trazer novos achados. Em outro estudo, foram relatados níveis de SDHEA significativamente mais elevados em irmãos de pacientes com SOP28. Embora não tenham sido avaliados outros marcadores laboratoriais, foi possível observar hiperandrogenismo clínico significativo em parentes de pacientes com SOP, principalmente pela presença de alopecia e hipertricose.
No presente estudo, não foram observadas diferenças significativas em relação aos níveis de colesterol HDL e LDL, similares aos de outro estudo29. Uma possível explicação pode ser que, em ambos os estudos, foram utilizadas amostras relativamente pequenas de pacientes e controles. Por outro lado, os níveis de triglicérides foram significativamente mais elevados no grupo de pacientes com parentesco com as pacientes com SOP. É interessante observar que a hipertrigliceridemia, assim como a HAS, é um marcador conhecido da RI e ambas correlacionam-se diretamente com marcadores antropométricos21,30. A presença dessas alterações também reforça o componente genético da RI nestes pacientes. É importante observar que, em estudo prévio, também se demonstrou alteração significativa nos níveis de pressão arterial em parentes de primeiro grau de mulheres com SOP31.
Um dado que também merece atenção é que a relação hormônio luteinizante/hormônio folículo-estimulante não foi diferente entre os grupos. Uma possível explicação para esse achado é a de que as alterações metabólicas precederiam a alteração do perfil hormonal. São necessários estudos maiores e prospectivos para a confirmação dessa hipótese.
Os níveis de SHBG apresentaram-se mais baixos nos parentes de primeiro grau de pacientes com SOP do que nos controles. Tal resultado talvez esteja refletindo uma predisposição genética, já que cerca de metade das mulheres com SOP apresentam níveis de SHBG reduzidos, o que leva ao aumento dos níveis de esteroides livres (testosterona e estradiol) biologicamente ativos2. A testosterona livre elevada passaria a inibir a produção de SHBG, fechando um ciclo vicioso que contribui para o hiperandrogenismo. Recentemente, foi demonstrado que níveis de SHBG são preditores do risco de diabetes mellitus tipo 232. Esses achados sugerem que o SHBG talvez seja um marcador precoce de RI. Ainda em relação ao SHBG, embora não haja relato na literatura, sua alteração foi correlacionada com aumentos dos níveis de triglicerídeos, reforçando sua importância como um marcador indireto de RI.
Nosso estudo apresenta algumas limitações. Primeiro, não foi feito um estudo genético e não foi possível avaliar cada família em sua totalidade para identificar os parentes afetados. Segundo, o tamanho da amostra foi limitado, já que precisávamos identificar pacientes com SOP que tivessem parentes de primeiro grau do sexo masculino que estivessem dispostos a participar do estudo. Finalmente, é difícil o estabelecimento de um grupo controle adequado. Nossa tentativa de obter um grupo controle pareado por idade e marcadores antropométricos visou minimizar ao máximo o impacto da obesidade, principalmente da visceral, em nossos achados.
Em conclusão, o presente estudo sugere que parentes de primeiro grau do sexo masculino de pacientes com SOP apresentam indícios laboratoriais de RI, mesmo quando pareados por idade e parâmetros antropométricos. Embora nenhuma alteração laboratorial sugestiva de hiperandrogenismo tenha sido encontrada, foram identificadas algumas diferenças clínicas significativas, sugerindo que esses pacientes podem apresentar algum tipo de predisposição genética para RI e SOP. Finalmente, a identificação de níveis baixos de SHBG e de sua relação com triglicérides sugere que ela pode ser um marcador indireto de RI.
Recebido 12/4/10
Aceito com modificações 26/7/10
Grupo de Obesidade e Transtornos Alimentares do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione - IEDE - Rio de Janeiro (RJ), Brasil.