DOI: 10.1590/S0100-72032010000200004 - volume 32 - Fevereiro 2010
Ana Lúcia Ribeiro Valadares, Aarão Mendes Pinto-Neto, Maria Helena de Sousa, Maria José Duarte Osis
Introdução
A sexualidade é uma complexa interação por necessidades de intimidade, afeição, conexão, autoprazer, autoimagem, assim como o contexto relacionado ao gênero, à etnia e à comunidade1. A disfunção sexual pode afetar significativamente a autoestima e a qualidade de vida das mulheres. Mesmo quando de duração curta, ela pode criar frustrações e angústia e, quando crônica, pode conduzir à ansiedade e à depressão, prejudicar relacionamentos e causar problemas em outros aspectos da vida1-5. A importância da saúde sexual para a qualidade de vida tem sido cada vez mais reconhecida nos últimos anos6.
A disfunção sexual é comum entre as mulheres3,5,7-10, variando a prevalência de 20 a 88%2,4. No Brasil, 49% das mulheres relataram pelo menos uma disfunção sexual em um estudo publicado em 200411. Em outro estudo, de base populacional, realizado em Belo Horizonte com 315 mulheres entre 40 e 65 anos e com 11 anos ou mais de escolaridade, verificou-se que 35,9% das mulheres apresentavam disfunção sexual, e que a disfunção sexual aumentava da pré à pós-menopausa8.
Entre os fatores que aumentam a prevalência da disfunção sexual estão as mudanças hormonais que ocorrem na transição menopausal e na menopausa. A diminuição dos níveis de estrogênio nesta fase leva à presença de sintomas vasomotores, insônia e nervosismo, que podem contribuir para a diminuição da autoestima, do desejo e de respostas sexuais.
Outros fatores não-hormonais que pioram a função sexual são: a presença de comorbidades como a hipertensão e o diabetes, vida sedentária e tabagismo, idade (maior do que 50 anos), ausência de parceiro sexual, idade e problemas de saúde do parceiro, maior tempo de relacionamento e sentimentos ruins em relação ao parceiro2,3,5,7-10.
A maior longevidade das mulheres na atualidade coloca vários desafios para aqueles que pretendem prover-lhes atenção integral à saúde. Isto inclui a necessidade de melhor conhecer e oferecer suporte para questões relativas à função sexual de mulheres climatéricas e/ou já menopausadas. A compreensão de que a sexualidade é componente indissociável do ser humano, implica o entendimento de que, ainda que as mulheres envelheçam sozinhas, não deixarão de ter necessidades relativas ao exercício das atividades sexuais1.
Nesse contexto, as ciências da saúde precisam dispor de instrumentos que permitam avaliar os diferentes aspectos da função sexual. Nos países desenvolvidos, a busca por tais instrumentos tem sido intensa, resultando na disponibilidade de vários tipos de questionários e escalas amplamente utilizados12,13. Nos países em desenvolvimento, porém, como é o caso do Brasil, isto não é uma realidade.
Entre os instrumentos mais conhecidos, encontram-se o McCoy Female Sexuality Questionnaire (MFSQ)13. O MFSQ, com 19 questões, além de avaliar os cinco domínios da função sexual, também avalia aspectos em relação ao parceiro sexual e o índice da função sexual feminina (FSFI)14.O FSFI é um questionário construído na língua inglesa14 e validado também na língua portuguesa no Brasil15. É composto por 19 questões, as quais informam sobre cinco domínios da resposta sexual: desejo e estímulo subjetivo, lubrificação, orgasmo, satisfação e dor ou desconforto13,15.
O Short Personal Experiences Questionnaire (SPEQ)16,17,18, baseado no MFSQ, tem a vantagem de ser conciso (nove itens), ter um escore com ponto de corte de 7 ou inferior e distingue com 79% de especificidade e sensibilidade as mulheres com disfunção sexual18. É composto por nove questões que abordam libido (uma pergunta), responsividade sexual (três perguntas), frequência de atividades sexuais (uma pergunta), sentimentos pelo parceiro (duas perguntas), dificuldades sexuais do parceiro (uma pergunta) e dor durante a penetração (uma pergunta)17,18.
O SPEQ tem sido usado principalmente em estudos com mulheres climatéricas na Europa e na Austrália. Quando traduzido em outras línguas, tem mantido a validade psicométrica16. Em estudos longitudinais pode ser utilizado para avaliar a disfunção sexual num mesmo grupo de mulheres, relacionadas à idade, à mudança hormonal menopausal e a outros fatores3. Em estudos transversais, pode ser utilizado para avaliar a disfunção sexual e os fatores associados em grupos com diferentes idades e estados menopausal8. Este questionário permite a avaliação da disfunção sexual em mulheres com e sem parceiros sexuais, heterossexuais e homossexuais15,18. Recentemente, realizou-se, em uma cidade brasileira, um estudo com mulheres climatéricas de meia idade5,8,9,10 para o qual houve a necessidade de utilizar um instrumento capaz de avaliar a função sexual destas mulheres. Isto demandou a necessidade de realizar a tradução e a adaptação sociocultural do SPEQ17,18 em português no Brasil. Os resultados são apresentados no presente artigo.
Métodos
A versão original do SPEQ, em inglês, inicialmente foi traduzida para a língua portuguesa independentemente por dois tradutores fluentes na língua inglesa. Um dos tradutores tinha informação relevante em relação aos objetivos do questionário, seus conceitos e os domínios abordados pelo instrumento. As traduções foram então comparadas e chegou-se a uma versão preliminar. Procedeu-se, então, à adaptação sociocultural do vocabulário e da construção linguística para melhor compreensão das questões contempladas19. Esta versão foi então retraduzida ao inglês para verificar-se a equivalência com a versão inicial. Comprovada a equivalência cultural entre as versões inglês e português, o questionário foi aplicado para pré-teste em 50 mulheres, em etapas sucessivas, até que não houvesse mais dúvidas quanto à compreensão das perguntas.
A versão final do instrumento adaptado (Anexo 1) foi utilizada em estudo de base populacional, autorrespondido anonimamente por 378 mulheres entre 40 e 65 anos e com 11 anos ou mais de escolaridade, nascidas no Brasil5,8,9,10. As variáveis 'prazer nas atividades sexuais', 'excitação' e 'orgasmo' foram graduadas de 1 a 6, em que 1 refletia a ausência e 6, o máximo. A frequência de atividades sexuais e a libido foram graduadas de 1 a 5, em que 1 = nunca, 2 = menos do que 1 vez por semana, 3 = 1 a duas vezes por semana, 4 = várias vezes por semana e, 5 = 1 vez por dia ou mais. A dispareunia foi definida como presença de dor na relação sexual e graduada de 1 a 6, em que 1 significava ausência de dor e 6, dor máxima. Avaliou-se a satisfação pelo parceiro como amante e paixão pelo parceiro (graduadas de 1 a 6, quanto maior o número, maior o sentimento), presença de problemas sexuais do parceiro (graduado de 1 a 6, quanto maior o número maior o problema).
Para o processo de adaptação foram utilizados testes para avaliação de confiabilidade e de validade de construto e de critério. Considerou-se item 1, satisfação nas atividades sexuais; item 2, frequência de excitação; item 3, orgasmo; item 4, paixão pelo parceiro; item 5, satisfação com o parceiro como amante; item 6, dor durante as atividades sexuais; item 7, problemas sexuais do parceiro; item 8, frequência de fantasias, pensamentos e desejos sexuais; item 9, frequência de atividades sexuais. A análise do conteúdo verificou a confiabilidade da tradução e foi avaliada por meio da consistência interna (relação dos itens dentro de um domínio), pelo coeficiente alfa de Cronbach20 dos itens do SPEQ17,18. A avaliação da validade de construto (convergente)21 foi realizada pelo coeficiente de correlação entre pares de itens do SPEQ; pelo coeficiente de correlação dos quatro primeiros fatores obtidos por análise fatorial de componentes principais com os itens do SPEQ; e coeficiente de correlação do escore total (escore médio dos três primeiros itens + escore médio do quarto e quinto itens + sexto item+ sétimo + oitavo + nono) com os itens do SPEQ. Na validação de critério21 utilizamos como referência a classificação geral da vida sexual. A autoclassificação da vida sexual foi graduada em 1 = péssima, 2 = ruim, 3 = regular, 4 = boa e 5 = ótima. Na análise estatística foram considerados significativos valores de p<0,05.
O protocolo de pesquisa deste estudo foi aprovado pela Comissão de Pesquisa do Departamento de Tocoginecologia e Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Resultados
Para a presente análise foram considerados somente os questionários completos, constando de resposta para os nove itens do SPEQ. A amostra foi reduzida para 180 mulheres, pois alguns dos itens se aplicam apenas para mulheres com parceiro sexual.
As nove perguntas do SPEQ foram traduzidas e adaptadas. A análise de confiabilidade mostrou que os valores alfa de Cronbach dos componentes do SPEQ variaram de 0,552 a 0,774, sendo o alfa de Cronbach geral de 0,681 (Tabela 1).
Na análise de validade de construto, por meio dos coeficientes obtidos entre pares de itens do SPEQ (n = 180), 32 dos 36 coeficientes se mostraram significativos (valores de p<0,05). A exceção ocorreu para as seguintes correlações: orgasmo com parceiro com problemas sexuais; paixão pelo parceiro com dor durante as atividades sexuais e parceiro com problemas sexuais; e, por último, parceiro com problemas sexuais com frequência de fantasias, pensamentos e desejos sexuais (Dados não-apresentados nas Tabelas). Os coeficientes de correlação do escore total com os nove itens do SPEQ são apresentados na Tabela 2; com exceção de dor durante as atividades sexuais, os demais itens se mostraram todos altamente significativos (p<0,001).
A análise de validade de critério (Tabela 3) mostrou coeficientes de correlação significativos entre o escore da classificação geral da vida sexual, com dois dos quatro fatores, e também com o escore total. Estes quatro fatores juntos explicam 83,5% da variabilidade total (o primeiro explica 48,6% sozinho).
Discussão
O objetivo do presente artigo foi a tradução e a adaptação sociocultural do SPEQ. Esse questionário engloba pontos importantes que devem ser considerados na escolha de um questionário para avaliação da função sexual. É um questionário sucinto, já que questionários muito extensos podem diminuir a colaboração da paciente e torná-lo inviável para aplicação na rotina diária dos serviços de saúde. Esse abrange os domínios do desejo, da excitação e do prazer, a dispareunia e os fatores inerentes ao parceiro sexual. Além disso, pode ser aplicado para avaliar a disfunção sexual em mulheres com e sem parceiros sexuais, e em homo e heterossexuais. Outro ponto fundamental é a mensuração dos dados, tornando possível a quantificação dos resultados e a possível comparação entre mulheres em diferentes períodos da vida, entre grupos diversos e após procedimentos terapêuticos2,16. Quando se leva em conta o uso futuro em mulheres de baixa escolaridade, acreditamos ser o questionário simples o suficiente para ser entendido pela paciente. Estudos anteriores mostraram boa aplicabilidade do SPEQ tanto na Europa, como na Australásia e recentemente no Brasil5.
Na adaptação linguística do SPEQ considerou-se tanto o ponto de vista cultural quanto o conceitual, de modo a torná-lo de fácil entendimento e aproximá-lo ao máximo da realidade da população de interesse. Na pesquisa brasileira realizada, o índice de resposta dos questionários foi de 90%5.
Os valores encontrados para o alfa de Cronbach mostram níveis moderados a satisfatórios de confiabilidade, uma vez que todos os valores foram maiores que 0,5022. Os dados suportam também a evidência de correlações encontradas na análise de validade do construto e de critério, estando estes achados de acordo com a literatura atual2,5,8-10,16. Como limitação do estudo, o teste-reteste não foi efetuado. Não foi possível reaplicar o instrumento por ocasião de seu pré-teste, pois se tratou de uma análise secundária de dados de um estudo populacional. Em relação à validação de critério, pelo mesmo motivo, na ausência de um padrão-ouro, foi utilizado como referência a autoclassificação geral da vida sexual.
O presente estudo foi limitado a mulheres com 11 anos ou mais de escolaridade, por ter o SPEQ sido elaborado para ser autorrespondido. Nada impede, no entanto, que o mesmo seja utilizado em estudos posteriores pela sua aplicação por entrevistadores(as). Assim talvez ele possa ser amplamente utilizado, como já foi feito com outros questionários originalmente elaborados para serem autorrespondidos e posteriormente aplicados em entrevistas23. Esta expansão poderá ampliar a gama de informações sobre a função sexual e poderá contribuir para a ratificação da adaptação transcultural, assim como da validação do SPEQ em nosso meio.
Os bons resultados do presente estudo tanto da adaptação transcultural da versão em português do SPEQ no Brasil5,8-10, quanto dos achados de confiabilidade e de validade sugerem a adequação do processo proposto. O instrumento poderá, portanto, ser utilizado e facilitará a comparação de estudos realizados em diversos locais, em populações semelhantes ou em populações com menor escolaridade, por entrevistas. Em última instância, porém não menos relevante, a utilização da versão adaptada e validada do SPEQ no Brasil poderá ajudar os profissionais que atendem mulheres climatéricas a obterem informações úteis no manejo das questões sexuais nesse período da vida.
Agradecimentos
Às doutoras Lúcia Helena Costa-Paiva e Adriana Orcesi Pedro, ao doutor Délio Marques Conde pelo apoio científico.
Ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP - processo número 04/10524-8
Recebido 10/8/09
Aceito com modificações 14/1/10
Trabalho realizado como parte do Curso de Pós-doutorado do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - Campinas (SP), Brasil.