DOI: 10.1590/S0100-72032009000600002 - volume 31 - Junho 2009
Cleisson Fábio Andrioli Peralta, Luciana Emy Ishikawa, Renato Passini Júnior, João Renato Bennini Júnior, Marcelo Luiz Nomura, Izilda Rodrigues Machado Rosa, Ricardo Barini
Correspondência
RESUMO
OBJETIVO: avaliar a evolução de gestações gemelares monocoriônicas diamnióticas com e sem síndrome de transfusão feto-fetal (STFF), acompanhadas de forma expectante.
MÉTODOS: estudo retrospectivo no qual as gestações sem e com STFF e com as formas leve (estágio I de Quintero) e grave (estágios II, III, IV e V de Quintero) da doença foram comparadas quanto a parto pré-termo extremo, comprometimento neurológico e alta dos gêmeos do berçário. Os gêmeos pré-termo extremo que tiveram ou não STFF foram comparados quanto à ocorrência de comprometimento neurológico. Foram utilizados os testes do χ2 ou exato de Fisher.
RESULTADOS: quinze entre 149 gestações gemelares monocoriônicas diamnióticas apresentaram STFF, 11 (11/15-73,3%) na forma grave e 4 (4/15-26,7%) no estágio I. O parto pré-termo extremo foi mais frequente (p<0,001) nos casos com (11/15 - 73,3%) do que sem a doença (25/134 - 18,7%) e mais comum (p=0,033) em casos graves (10/11 - 91,1%) do que leves (1/4 - 25,0%). O comprometimento neurológico de pelo menos um gêmeo foi mais frequente nos casos com (5/8=62,5%) do que sem (9/134=6,7%) a doença (p<0,001). A alta do berçário de pelo menos um gêmeo foi mais comum (p<0,001) nos casos sem a doença (132/134=98,5% versus 8/15=53,0%). O dano neurológico em pelo menos um gêmeo foi mais frequente (p=0,04) na forma grave (5/5=100%) do que leve (1/4=25%) da doença. A alta de ambos os gêmeos do berçário foi mais comum (p=0,004) no estágio I (4/4=100%) do que na doença grave (1/11=9,0%). Entre os 47 gêmeos pré-termo extremo, o dano neurológico foi mais frequente (p=0,001) naqueles que tiveram (6/6-100%) do que entre os que não tiveram STFF (11/41-26,8%).
CONCLUSÕES: casos com transfusão feto-fetal acompanhados de forma expectante têm prognóstico perinatal ruim, com elevada mortalidade neonatal e altos índices de comprometimento neurológico entre as sobreviventes.
Palavras-chave: Transfusão feto-fetal, Gravidez múltipla, Gemelaridade monozigótica, Complicações na gravidez, Manifestações neurológicas, História natural
ABSTRACT
PURPOSE: to evaluate the evolution of monochorionic-diamniotic twin pregnancies with and without the twin-twin transfusion syndrome (TTTS), followed up in an expectant way.
METHODS: retrospective study in which the pregnancies with and without TTTS and with mild (Quintero's stage I) and severe (Quintero's stages II, III, IV and V) disease manifestations were compared according to extreme preterm delivery, neurological impairment and the twins' nursery discharge. The extreme preterm twins who had had TTTS, or not, were compared whether they had or not neurological impairment. The χ2 or Fisher's exact test were used.
RESULTS: among 149 monochorionic-diamniotic twin pregnancies, 15 presented TTTS, 11 (11/15 - 73.3%) in the severe form and 4 (4/15 - 26.7%) at stage I. The extreme preterm delivery was more frequent (p<0.001) in the cases with the disease (11/15 - 73.3%) than in the cases without it (25/134 - 18.7%), and more common (p=0.033) in severe (10/11 - 91.1%) than in mild cases (1/4 - 25.0%). Neurological impairment in at least one twin was more frequent in cases with (5/8 - 62.5%) than in cases without (9/134 - 6.7%) the disease (p<0.001). Nursery discharge of at least one twin was more common (p<0.001) in cases without (132/134 - 98.5%) than in cases with the disease (8/15 - 53.0%). Neurological impairment in at least one of the twins was more frequent (p=0.04) in the severe (5/5 - 100%) than in the mild (1/4 - 25%) form of the disease. Nursery discharge of both twins was more common (p=0.004) at stage I (4/4 - 100%), than in the severe form of the disease (1/11 - 9.0%). Among the 47 extreme preterm twins, the neurological impairment was more frequent (p=0.001) among the ones who had (6/6 - 100%), than among those who did not have TTTS (11/41 - 26.8%).
CONCLUSIONS: cases with twin-twin transfusion syndrome, followed up in an expectant way have bad perinatal prognosis, with high neonatal mortality and high rates of neurological arrest among the survivors.
Keywords: Fetofetal transfusion, Pregnancy, multiple, Twinning, monozygotic, Pregnancy complications, Neurologic manifestations, Natural history
Introdução
A gemelaridade monocoriônica tem incidência aproximada de 1/500 gestações, merecendo seguimento especial por poder apresentar complicações graves como a síndrome de transfusão feto-fetal (STFF). Esta condição clínica, que ocorre em 10 a 30% das gestações gemelares monocoriônicas, tem como causa a passagem desbalanceada de sangue de um dos fetos (doador) para o outro (receptor), por meio de anastomoses vasculares placentárias artério-venosas1-4. Quando acompanhados de forma expectante, os casos com STFF apresentam taxas de mortalidade perinatal acima de 60%5-7.
Quintero et al.8,9 classificaram os casos de STFF em cinco estágios, correlacionando-os com prognósticos perinatais. No estágio I, há uma discrepância entre os tamahos das bexigas fetais e entre a quantidade de líquido amniótico nas duas câmaras âmnicas (doador com maior bolsão de líquido amniótico menor do que 2 cm; receptor com maior bolsão de líquido amniótico maior do que 8 cm). No estágio II, o feto doador fica com a bexiga permanentemente vazia e em anâmnio (stuck twin), enquanto o receptor apresenta bexiga distendida e polidrâmnio. No estágio III, começam as alterações doplervelocimétricas em um ou ambos os fetos (aumento de resistência da artéria umbilical do doador; aumento no índice de pulsatilidade/ausência ou inversão de fluxo durante a contração atrial no ducto venoso do receptor). No estágio IV, o receptor desenvolve hidropisia. No estágio V, há óbito de um ou ambos os fetos. São considerados casos graves de STFF aqueles em estágios II, III, IV e V. Sem tratamento, as taxas de óbito de pelo menos um dos gêmeos nos estágios II, III e IV variam de 70 a 100%5,6. Os danos neurológicos nos sobreviventes, resultantes de distúrbios hemodinâmicos e hematológicos pré-natais e/ou associados à prematuridade e ao baixo peso, ocorrem em 25 a 35% dos casos10-12.
Até o momento, não há dados nacionais sobre a evolução natural das gestações gemelares monocoriônicas diamnióticas com ou sem STFF, nem tampouco sobre a correlação da gravidade desta doença com os resultados perinatais. Esta informação poderia servir de base para a avaliação futura dos resultados de medidas terapêuticas, como a ablação dos vasos placentários com laser.
O objetivo deste estudo foi avaliar a história natural das gestações gemelares monocoriônicas diamnióticas com ou sem STFF atendidas em um único centro universitário.
Métodos
Este foi um estudo observacional, retrospectivo e descritivo ralizado no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). O estudo foi desenvolvido após aprovação de projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da mesma instituição. Tendo sido um estudo retrospectivo, com base na análise de prontuários médicos, foi solicitada ao referido comitê a dispensa de consentimento livre e esclarecido, de acordo com a resolução nº 196 do Código de Ética Médica, a qual foi aprovada antes do início da coleta de dados.
A inclusão dos casos obedeceu aos seguintes critérios: pacientes com gestações gemelares monocoriônicas diamnióticas atendidas no CAISM-UNICAMP de Janeiro de 1996 a Dezembro de 2007; ausência de doenças maternas associadas ou não à gravidez; gestantes com diagnóstico de gemelaridade monocoriônica diamniótica, confirmada por meio de ultrassonografia realizada na área técnica de ecografia do CAISM e após o nascimento por avaliação anatômica da placenta; gestantes que foram acompanhadas de forma expectante e tiveram parto no CAISM; pacientes que, embora acompanhadas de forma expectante em outros serviços, tiveram seus partos no CAISM e gestantes com fetos sem anormalidades estruturais ou cromossômicas detectadas antes ou após o nascimento.
As pacientes que foram acompanhadas no CAISM ou em outros serviços, que desenvolveram STFF e foram submetidas a procedimentos invasivos como amniodrenagem seriada ou septostomia, não foram incluídas no estudo. Os casos de STFF grave que não receberam tratamento pré-natal e participaram desta análise se resumiram a pacientes de outros centros e que foram atendidas no CAISM já em trabalho de parto ou encaminhadas no estágio V da doença.
As seguintes variáveis foram estudadas: idade materna; idade gestacional (IG) por ocasião da última ultrassonografia; presença de STFF; presença de STFF grave; IG por ocasião do parto; ocorrência de parto pré-termo; ocorrência de parto pré-termo extremo; óbito ao nascimento de pelo menos um dos gêmeos; óbito ao nascimento de ambos os gêmeos; presença de comprometimento neurológico em pelo menos um dos neonatos/lactentes que tiveram alta do berçário; presença de comprometimento neurológico em ambos os neonatos/lactentes que tiveram alta do berçário; alta do berçário de pelo menos um dos neonatos/lactentes e alta do berçário de ambos os neonatos/lactentes.
Por se tratar de um estudo retrospectivo com inclusão de casos ocorridos antes da classificação sugerida por Quintero et al.8,9, foram utilizados os seguintes critérios para definição da presença da doença: em relatório ultrassonográfico, descrição da sequência oligoâmnio/polidrâmnio, sequência anâmnio (stuck twin)/polidrâmnio com ou sem alterações doplervelocimétricas, sequência anâmnio/polidrâmnio com receptor hidrópico, e óbito de um ou ambos os fetos com sinais sugestivos de STFF (oligoâmnio ou anâmnio/polidrâmnio).
Foram considerados casos graves de STFF aqueles com sequência anâmnio/polidrâmnio com ou sem alterações no Doppler, sequência anâmnio/polidrâmnio com receptor hidrópico, óbito de um ou ambos os fetos com sinais sugestivos de STFF.
O último exame ecográfico antes da resolução da gravidez foi utilizado para análise final dos dados.
Foram considerados partos pré-termo e pré-termo extremo aqueles ocorridos antes da 37ª e antes da 32ª semanas completas de gravidez, respectivamente13,14.
O comprometimento neurológico no neonato ou lactente foi definido quando da presença de alterações neurológicas no exame clínico e/ou no exame de imagem (ultrassonografia transfontanelar/tomografia computadorizada de crânio).
A análise estatística descritiva foi realizada com cálculo de médias, desvios padrão, valores mínimo e máximo para variáveis contínuas e frequências absolutas e relativas para variáveis categóricas.
Em análise inferencial, as gestações sem e com STFF, bem como as gestações com STFF leve e grave, foram comparadas em relação à IG por ocasião do parto, ocorrência de parto pré-termo, ocorrência de parto pré-termo extremo, óbito ao nascimento de pelo menos um dos gêmeos, óbito ao nascimento de ambos os gêmeos, presença de comprometimento neurológico em pelo menos um dos neonatos/lactentes que tiveram alta do berçário, presença de comprometimento neurológico em ambos os neonatos/lactentes que tiveram alta do berçário, alta do berçário de pelo menos um dos neonatos/lactentes, e alta do berçário de ambos os neonatos/lactentes.
Considerando somente os gêmeos que tiveram alta do berçário e que nasceram antes da 37ª semana completa de gravidez, a ocorrência de comprometimento neurológico foi comparada entre aqueles que apresentaram e aqueles que não apresentaram STFF durante a gestação. Da mesma forma, em meio aos gêmeos que tiveram alta do berçário e que nasceram antes da 32ª semana completa de gravidez, a ocorrência de dano neurológico foi confrontada entre aqueles que apresentaram e aqueles que não apresentaram STFF durante a gestação. Para comparação entre variáveis contínuas foi usado o teste de Mann-Whitney. Para variáveis categóricas foram usados o teste do χ2 ou o exato de Fisher. O nível de significância considerado foi 0,05. Os programas utilizados para análise estatística foram SPSS 16.0 (Chicago, II, USA) e Excel para Windows 2007 (Microsoft Corp., Redmond, WA, USA).
Resultados
Como resultado da busca nos arquivos da divisão de neonatologia, da área técnica de ecografia e do programa de medicina fetal do CAISM, foram identificados 768 casos de gestações gemelares. Os prontuários médicos das gestantes e dos recém-nascidos foram solicitados no Serviço de Arquivo Médico e, posteriormente, analizados.
Em meio aos 768 casos, 153 (153/768-19,9%) eram de gestações monocoriônicas diamnióticas. Dezenove dessas pacientes (19/153-12,4%) apresentaram STFF. Dentre elas, quatro (4/19-21,0%) haviam sido submetidas a procedimentos invasivos durante a gestação (amniodrenagem seriada - dois casos; septostomia + amniodrenagem - dois casos), tendo sido, portanto, excluídas da análise estatística final. Foram acompanhadas 149 pacientes (149/153-97,4%) de forma expectante até o parto. Quinze destas (15/149-10,1%) apresentaram STFF, tendo sido quatro casos (4/15-26,7%) classificados como leves (correspondentes ao estágio I de Quintero et al.8,9) e 11 categorizados como graves (correspondentes aos estágios II, III, IV e V de Quintero et al.8,9). Em meio aos 11 casos graves, sete (7/11-63,6%) eram correspondentes ao estágio II, três (3/11-27,2%) ao estágio III e um (1/11-9,0%) ao estágio V.
A idade materna e a IG por ocasião da última ultrassonografia e a IG no momento do parto para a amostra em geral foram 26 anos (DP=8,2; 13,0-44,0), 28,6 semanas (DP=6,2; 15,0-38,4) e 33,9 semanas (DP=4,7; 17,0-42,0), respectivamente.
A IG média por ocasião do parto foi significativamente mais alta (Mann-Whitney: p<0,001) no grupo de gestantes que não desenvolveu STFF (IG=34,6 semanas; DP=3,9; 21,0-42,0) do que no grupo que apresentou a doença (IG=27,7 semanas; DP=6,3; 17,0-37,1). De forma semelhante, a IG no parto foi significativamente mais alta (Mann-Whitney: p=0,02) entre as gestantes com STFF leve (IG=33,3 semanas; DP=4,1; 28,0-37,0) do que naquelas que apesentaram STFF grave (IG=25,4 semanas; DP=5,4; 17,0-36,0).
Não houve diferença significativa na ocorrência de parto pré-termo entre os grupos com e sem STFF (teste exato de Fisher: p=0,117) e entre as pacientes com STFF leve e grave (teste exato de Fisher: p=0,267). Em contrapartida, foi observada maior ocorrência de parto pré-termo extremo em meio aos casos com STFF (11/15-73,3%) do que entre aqueles sem a doença (25/134-18,7%) (teste exato de Fisher: p<0,001) e em meio aos casos graves de STFF (10/11-91,1%) do que entre os casos leves (1/4-25,0%), teste exato de Fisher: p=0,033.
O óbito ao nascimento de pelo menos um dos gêmeos, o óbito ao nascimento de ambos os gêmeos, a presença de comprometimento neurológico em pelo menos um dos neonatos/lactentes que tiveram alta do berçário e o comprometimento neurológico em ambos os neonatos/lactentes que tiveram alta do berçário foram significativamente mais frequentes nas mulheres que tiveram STFF do que naquelas que não apresentaram o distúrbio (Tabela 1). A alta do berçário de pelo menos um dos neonatos/lactentes e a alta do berçário de ambos os neonatos/lactentes foi significativamente mais comum no grupo de gestantes que não apresentou STFF (Tabela 1).
Comparando-se os grupos de gestantes com as formas leve e grave da STFF, foi observada diferença significativa em relação ao dano neurológico em pelo menos um neonato/lactente, o qual foi mais frequente na forma grave (teste exato de Fisher: p=0,048) e em relação à alta de ambos os gêmeos do berçário, a qual foi mais comum na STFF leve (teste exato de Fisher: p=0,004). Estes e os demais resultados da comparação entre as formas leve e grave da doença estão expostos na Tabela 2.
Em meio aos 298 gêmeos de nossa amostra (149 gestações), 262 (262/298-87,9%) tiveram alta do berçário. Dentre estes, 187 (187/262-71,4%) nasceram antes da 37ª semana completa de gravidez e 47 (47/262-17,9%) antes da 32ª semana. Em meio aos 187 gêmeos pré-termo, o comprometimento neurológico foi significativamente mais frequente (teste exato de Fisher: p<0,001) entre aqueles que apresentaram STFF durante a gestação (7/11-63,3%) do que entre aqueles que não tiveram a doença (11/176-6,3%). Entre os 47 gêmeos pré-termo extremo, o dano neurológico foi mais frequente (teste exato de Fisher: p=0,001) em meio àqueles que sofreram transfusão feto-fetal (6/6-100%) do que entre aqueles que não tiveram a doença (11/41-26,8%).
Discussão
Este estudo demonstrou que, quando acompanhadas de forma expectante, as gestações gemelares com STFF apresentaram mais complicações perinatais do que as gestações monocoriônicas sem esta doença. Mais especificamente, as pacientes com STFF tiveram, com maior frequência, parto pré-termo extremo, óbito de um ou ambos os gêmeos por ocasião do parto e danos neurológicos em um ou ambos os neonatos/lactentes. Por conseguinte, apresentaram menos alta do berçário de um ou ambos os gêmeos. Semelhantemente, nas gestações com estágios graves de STFF houve mais partos antes da 32ª semana completa, mais danos neurológicos em pelo menos um dos gêmeos e menos alta do berçário de ambos os neonatos/lactentes, quando comparadas às gestações com a forma leve da doença.
A literatura médica é escassa em relação à história natural das gestações gemelares com STFF. Dois foram os estudos encontrados, os quais se dedicaram especificamente a este assunto. Berghella e Kaufmann5 revisaram os casos descritos na literatura até 1991 e apresentaram sua própria casuística desde 1966. Os autores referem que, em meio aos 136 casos encontrados na literatura, a sobrevida foi de 27% com danos neurológicos em 25% dos sobreviventes. Também foi relatado que, em suas cinco pacientes, a sobrevida foi de 80% (4/5) sem achados de danos neurológicos nas crianças acompanhadas após a alta do berçário.
Até o momento, a casuística mais expressiva proveniente de um único centro foi apresentada por Gul et al.6. Os autores deste estudo referem que, dentre 11 casos com STFF acompanhados de forma conservadora, a sobrevida de pelo menos um dos gêmeos foi de 36,3% (4/11). Nosso estudo resultou em 15 pacientes com STFF conduzidas de forma expectante, provavelmente a maior casuística proveniente de um único centro. Nossos resultados mostram algumas diferenças em relação aos dados disponíveis na literatura. Observamos sobrevida de pelo menos um dos gêmeos em 53% dos casos com STFF e de 36,4% em meio aos casos considerados graves. Em todos os casos com STFF leve, houve alta do berçário de ambos os gêmeos. Além disso, demonstramos maior incidência de comprometimento neurológico em pelo menos um gêmeo que teve alta do berçário, de 62,5% em meio aos casos com STFF e 100% em meio aos casos graves.
É possível que a alta taxa de comprometimento neurológico nos casos que desenvolveram a doença tenha sido decorrente, pelo menos em parte, da prematuridade extrema. Observamos na presente análise que o parto pré-termo extremo foi significativamente mais comum nas pacientes que desenvolveram STFF do que naquelas que não tiveram a doença, e mais comum em meio aos casos graves do que entre os leves. Estudos considerando indistintamente gestações únicas e múltiplas mostram que o comprometimento neurológico no recém-nascido tem incidências que variam com a IG por ocasião do parto, de aproximadamente 1% quando este ocorre na 31ª semana até 25% quando ocorre na 25ª semana15-17. Em nossa amostra, foi observado comprometimento neurológico em uma porcentagem maior dos neonatos/lactentes que tiveram alta do berçário. Em meio aos 187 gêmeos que nasceram antes da 37ª semana completa de gravidez, o comprometimento neurológico ocorreu em 63,3% daqueles que tiveram STFF e 6,3% daqueles que não tiveram a doença. De forma semelhante, o dano neurológico foi mais frequente em meio aos gêmeos que tiveram STFF e parto pré-termo extremo (100%) do que entre aqueles que não sofreram transfusão feto-fetal e nasceram antes da 32ª semana completa (26,8%). Esses dados sugerem que, além da prematuridade, fatores associados à STFF, provavelmente decorrentes da instabilidade hemodinâmica entre as circulações de ambos os fetos, contribuem para o comprometimento neurológico dos sobreviventes.
Atualmente, no Brasil, estão disponíveis em alguns centros diferentes técnicas para o tratamento intraútero da STFF. Uma revisão dos estudos mais recentes sobre essas técnicas demonstrou os resultados mostrados a seguir. A amniodrenagem seriada permite sobrevida de pelo menos um dos gêmeos em 47 a 91% dos casos, com danos neurológicos nos sobreviventes variando de 22 a 55%10,12,18-20. A ablação com laser de vasos placentários permite sobrevida de pelo menos um dos gêmeos de 61 a 83%, com comprometimento neurológico no sobrevivente variando de 1,2 a 7,6%9,21-25. O único estudo randomizado encontrado em que se compara a amniodrenagem seriada com a septostomia demonstrou não haver diferença significativa entre os dois métodos em relação à sobrevida de pelo menos um dos gêmeos. No entanto, houve menos necessidade de procedimentos adicionais (amniodrenagem seriada) nos casos tratados pela septostomia26.
O estudo randomizado mais importante sobre a comparação entre laser e amniodrenagem seriada para o tratamento da STFF foi publicado em 2004 por Senat et al.25. Neste estudo, foi observada significativa vantagem do laser sobre a amniodrenagem, com maior IG por ocasião do parto (laser - 33 semanas versus amniodrenagem seriada -29 semanas); maior taxa de sobrevida de pelo menos um dos gêmeos (laser - 76 versus amniodrenagem seriada - 56%), menor incidência de hemorragia intraventricular e leucomalácia periventricular no sobrevivente (laser - 7 versus amniodrenagem seriada -35%). A maior casuística nacional publicada sobre os resultados da ablação com laser de vasos placentários em casos de STFF grave é de Ruano et al.27. Estes autores demonstraram, em 19 casos, sobrevida de pelo menos um dos gêmeos de 78,9%.
O desfecho dramático das gestações gemelares com STFF grave observado em nossa análise provavelmente reflete inadequado conhecimento da doença, bem como de seu seguimento e das possibilidades terapêuticas. Salientamos que os casos graves apresentados neste estudo foram de pacientes que chegaram ao serviço com encaminhamentos tardios e em trabalho de parto.
Acreditamos que nossos resultados, reforçados pelos dados da literatura e comparados àqueles decorrentes de procedimentos terapêuticos intraútero, possam estimular os obstetras para o diagnóstico precoce da monocorionicidade e para seu seguimento mais rigoroso. Sabemos que a corionicidade na gestação gemelar deve ser definida no primeiro trimestre da gravidez, preferencialmente no momento propício para a medida da translucência nucal. Quando a discrepância entre as medidas das translucências nucais dos gêmeos monocoriônicos é maior do que 20% há maior risco de desenvolvimento de STFF grave e óbito de um ou ambos os conceptos28. O seguimento dessas gestantes, portanto, deve ser individualizado e apoiado em exames ultrassonográficos seriados, em intervalos que permitam o diagnóstico mais precoce da STFF, possibilitando assim seu tratamento oportuno.
Temos consciência dos possíveis vieses inerentes aos estudos retrospectivos. No entanto, acreditamos que os dados obtidos na presente avaliação reforçam a importância do conhecimento da evolução natural de uma doença que hoje pode ser tratada em nosso meio.
Recebido 8/6/09
Aceito com modificações 29/6/09