DOI: 10.1590/S0100-72032009000700005 - volume 31 - Julho 2009
Sandra Frankfurt, Ana Luiza Nunes, Audrey dos Reis, Denise Maria Christofolini, Bianca Bianco, Caio Parente Barbosa
Correspondência
RESUMO
OBJETIVO: avaliar a reserva ovariana de pacientes inférteis portadoras de endometriose profunda de ovário, submetidas à cirurgia excisional dos endometriomas, atendidas entre os meses de Fevereiro e Novembro de 2008.
MÉTODOS: estudo prospectivo que incluiu 30 pacientes portadoras de endometriose graus III e IV com comprometimento profundo de ovário submetidas à cirurgia excisional dos endometriomas e 30 pacientes portadoras de endometriose graus I e II que foram alocadas como Grupo Controle. A reserva ovariana foi avaliada indiretamente a partir do valor do hormônio folículo estimulante (FSH) basal (U/L), entre o terceiro e quinto dias do ciclo, após um período de 12 meses da cirurgia. O índice de massa corpórea (IMC) foi calculado conforme a fórmula de Quetelet [peso (kg)/estatura (cm2)]. Para a comparação das variáveis "idade", "IMC" e "valores de FSH basal" entre os grupos, foi utilizado o teste não paramétrico U de Mann-Whitney.
RESULTADOS: não foi encontrada diferença significativa entre os grupos em relação à idade e ao IMC. Em relação ao FSH basal, observou-se que, no grupo das pacientes com endometriose profunda, o valor médio foi de 7,0 U/L, enquanto que, no Grupo Controle, foi de 5,6 U/L (p=0,3), o que demonstra que a diferença no valor médio de FSH encontrado nos dois grupos não foi significativa.
CONCLUSÕES: a cirurgia não influenciou de forma deletéria a reserva ovariana das pacientes com endometriose profunda de ovário.
Palavras-chave: Endometriose/patologia, Endometriose/cirurgia, Infertilidade, Hormônio folículo estimulante, Ovário/fisiologia, Laparoscopia/métodos
ABSTRACT
PURPOSE: to evaluate the ovarian reserve of infertile patients with severe ovarian endrometriosis, submitted to excisional surgery of endometriomas and attended from February to November, 2008.
METHODS: prospective study, including 30 patients with endometriosis grades III and IV, with severe ovarian impairment, submitted to excisional surgery of the endometriomas, and 30 patients with endometriosis grades I and II, allocated as a Control Group. The ovarian reserve was indirectly assessed, through the basal (U/L) follicle stimulating hormone (FSH), between the third and fifth days of the cycle, 12 months after the surgery. The body mass index (BMI) was calculated according to Quetelet's formula [weight (kg)/height(cm2)]. The Mann-Whitney non-parametric U test was used to compare the variables "age", "BMI" and "basal SFH" between the groups.
RESULTS: there was no significant difference between the groups about age and BMI. Concerning basal FSH, in the group of patients with severe endometriosis, the average value was 7.0 U/L, while in the Control Group, it was 5.6 U/L (p=0.3), what demonstrates that the difference between the two groups was not significant.
CONCLUSIONS: the surgery did not affect the ovarian reserve of patients with severe ovarian endometriosis.
Keywords: Endometriosis/pathology, Endometriosis/surgery, Infertility, Follicle stimulating hormone, Ovary/physiology, Laparoscopy/methods
Introdução
A lesão endometrial é uma condição esteroide-dependente na qual tecido histologicamente similar ao endométrio, com glândulas e estroma, cresce fora da cavidade uterina, podendo causar dor pélvica, dismenorreia e infertilidade. A endometriose acomete aproximadamente 10% das mulheres em período reprodutivo e 10 a 25% das mulheres que procuram tratamento por técnicas de reprodução assistida1. O endometrioma é definido como uma formação cística com a presença de tecido endometriótico dentro do ovário. O endometrioma é a terceira manifestação mais comum da endometriose, acometendo cerca de 20 a 40% das mulheres submetidas à fertilização in vitro (FIV), e está associado ao aumento da morbidade1,2.
Em geral, o tratamento de escolha para o endometrioma é a laparoscopia. Entretanto, há dois riscos principais associados ao tratamento cirúrgico desses cistos: cirurgia excessiva com remoção e/ou destruição do córtex ovariano normal juntamente com o endometrioma e a cirurgia incompleta com subsequente recorrência da doença3,4.
Os dados recentes da literatura indicam que a cirurgia excisional dos endometriomas pode ser deletéria para a função ovariana, devido a estresse mecânico, prejuízo da vascularização, processo inflamatório, distorção do parênquima e aderências periovarianas5, causando traumatismo e remoção dos folículos ovarianos6. Estudos mostram ainda a diminuição da resposta ao estímulo com gonadotrofinas5,7,8 e outros destacam a redução do número de oócitos recuperados5,9,10. No entanto, apesar do grande número de estudos, não há dados suficientes para provar se o dano gonadal é, em parte, causado pela presença do próprio endometrioma, ou se é posterior à cirurgia9,10.
O impacto do endometrioma ovariano sobre a fertilidade é controverso11. Dessa forma, o objetivo do presente estudo foi a avaliação da reserva ovariana em pacientes portadoras de endometriose profunda de ovário, submetidas à cirurgia excisional dos endometriomas, que foram atendidas em um Serviço de Reprodução.
Métodos
Pacientes
Estudo prospectivo que incluiu 30 pacientes portadoras de endometriose graus III e IV com comprometimento profundo de ovário em tratamento de infertilidade no Serviço de Reprodução Humana da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC). Durante os meses de Fevereiro a Novembro de 2008, foram submetidas à cirurgia excisional dos endometriomas. Trinta pacientes portadoras de endometriose graus I e II foram alocadas como grupo controle, uma vez que a endometriose mínima e leve não compromete a reserva ovariana.
Os critérios de inclusão foram: mulheres com idade inferior a 42 anos e ciclos ovulatórios, submetidas à exérese de endometrioma uni ou bilateral, com preservação dos ovários, independente do tamanho do cisto, e anátomo-patológico com confirmação de endometriose e classificação de acordo com a Americam Society for Reproductive Medicine (ASRM)12. Os critérios de exclusão foram presença de ciclos anovulatórios e cirurgia ovariana sem anátomo-patológico para comprovação da doença.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FMABC, e todas as participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Métodos
Todas as pacientes foram submetidas à laparoscopia para o tratamento da endometriose. No grupo de estudo, o tratamento cirúrgico realizado consistiu em ressecar a parede do cisto e/ou coagulação quando não se observava uma linha de separação entre o ovário e a parede do cisto, situação comum nos casos de endometriomas menores e aderidos à região da fosseta ovárica.
A reserva ovariana foi avaliada indiretamente, a partir do valor do hormônio folículo estimulante (FSH) basal (U/L), entre o terceiro e quinto dias do ciclo, após um período de 12 meses da cirurgia - tempo este importante para permitir gravidez espontânea com técnicas de baixa complexidade. As dosagens foram realizadas em duplicata pelo método de imunoensaio (ELFA, Enzyme Linked Fluorescent Assay, Mini-Vidas-BioMerieux®, Hazelwood, Missouri, USA).
O índice de massa corpórea (IMC) foi calculado conforme a fórmula de Quetelet [peso (kg)/estatura (cm2)]13.
Para a comparação das variáveis "idade", "IMC" e "valores de FSH basal" entre os grupos, foi utilizado o teste não paramétrico U de Mann-Whitney, com os resultados expressos em média, desvio padrão, mínimo e máximo. O intervalo de confiança foi estabelecido em 95%.
Resultados
A média de idade das pacientes foi de 33,9 anos, enquanto que, no Grupo Controle, foi de 33,7 anos, com valor de p=0,8. Com relação ao IMC, a média das pacientes foi de 22,6 e 22,0 no Grupo Controle, com valor de p=0,3. Não houve diferença significativa entre os dois grupos no que diz respeito à idade e ao IMC. Em relação ao FSH basal, observou-se que, no grupo das pacientes com endometriose profunda, o valor médio foi de 7 U/L, enquanto que, no Grupo Controle, foi de 5,6 U/L (p=0,3), o que demonstra não ter havido impacto da ressecção das lesões, visto que a diferença no valor médio de FSH encontrado nos dois grupos não foi significativa (Tabela 1).
Discussão
Este estudo demonstrou que os níveis de FSH sérico, utilizado para mensurar indiretamente a reserva ovariana, não diferiram entre as pacientes com endometriose graus III e IV submetidas à cirurgia, quando comparadas as mulheres com endometriose graus I e II. Os dados encontrados na literatura quanto a esse achado são controversos e variam de acordo com a metodologia utilizada para sua avaliação5,7-10,14.
Em estudo realizado com o objetivo de avaliar a função ovariana após excisão laparoscópica de endometriomas em 32 pacientes (32,2±3,7 anos), comparando o ovário operado ao ovário contralateral intacto, os resultados revelaram diminuição significativa da reserva ovariana após o procedimento cirúrgico, com redução de 53 vezes no número de folículos obtidos após indução, quando comparados ao ovário intacto14. Ao contrário, em estudo que comparou a resposta folicular à hiperestimulação ovariana controlada entre ovários normais e ovários previamente tratados por laparoscopia por endometrioma em 65 pacientes com acometimento unilateral, os resultados indicaram que a resposta dos ovários à hiperestimulação ovariana controlada após a cistectomia ou laparoscopia para fenestração e coagulação ovariana era a mesma e que não havia nenhuma diferença entre ovários normais e os previamente operados15.
A reserva ovariana foi comparada entre 133 mulheres com endometrioma não operadas (34,7±0,3 anos) e 56 mulheres operadas previamente (33,9±0,5 anos). Baixos picos de estradiol e altos níveis de gonodotrofinas foram documentados nas pacientes previamente operadas. No entanto, o número de oócitos recuperados, o número de embriões obtidos e a taxa de gravidez eram similares nos dois grupos16. Em um estudo recente, foiinvestigada a frequência da ovulação de ovários afetados por endometrioma antes e após a cirurgia em ciclos naturais. Os autores observaram uma mudança contínua na taxa da ovulação de cada paciente, que diminuiu após a cirurgia - particularmente, em pacientes com endometriomas menores que 4 cm9.
Como a função ovariana não poder ser medida diretamente, o uso de marcadores séricos (FSH, inibina B, 17-β-estradiol, hormônio antimülleriano (AMH), relação FSH/LH,) e/ou de variáveis ultrassonográficas (volume ovariano, medida do folículo antral, circulação sanguínea estromal ovariana) são úteis, mas limitados17,18.Esses marcadores não refletem a complexa dinâmica folicular e nenhum deles mostra forte correlação com a população de folículos primordiais que permanecem na gônada. Em outras palavras, esses testes não revelam a coorte de folículos inativos responsáveis pela continuidade de ciclos ovulatórios nem o potencial reprodutivo19. Vale lembrar que a capacidade do teste em prever a resposta gonadal (desenvolvimento folicular) geralmente excede a capacidade em prever gravidez, uma vez que a gravidez não depende somente da reserva ovariana, mas de fatores como características da cavidade endometrial e microambiente pélvico-peritoneal20.
O Grupo Controle do presente estudo foi composto de mulheres portadoras de endometriose mínima e leve. No entanto, em estudo recente, a avaliação da reserva ovariana e da coorte folicular em mulheres inférteis com endometriose mínima e leve (média de 29,5 anos) em relação às mulheres com obstrução tubária (média de 30,5 anos) por meio da dosagem sérica de FSH, AMH e avaliação ultrassonográfica transvaginal demonstrou que o valor médio de FSH não variou entre os grupos; no entanto, as mulheres inférteis com endometriose tinham valores séricos de AMH (1,26±0,7 ng/mL) significativamente menores que o Grupo Controle (2,02±0,72 ng/mL) (p=0,04). A análise da coorte folicular mostrou que o número de folículos era semelhante entre os grupos, mas o diâmetro era menor nas pacientes inférteis com endometriose mínima e leve21. Essa foi a primeira evidência da diminuição da reserva ovariana em pacientes com endometriose mínima e leve; todavia, o número de pacientes estudadas (n=17) foi pequeno, e o AMH foi o único parâmetro da reserva ovariana discordante no estudo. Além disso, optamos pela dosagem do FSH pela sua facilidade e por ser um dos marcadores séricos mais utilizados18, a despeito conhecermos o significado limitado dessa dosagem.
As causas da redução da reserva ovariana em ovários operados por endometrioma ainda foram pouco exploradas. Vale ressaltar que não há consenso sobre o fato de o dano estar relacionado ao procedimento cirúrgico e/ou à presença precedente do cisto ovariano. Além disso, outra questão a ser esclarecida é quando o dano é permanente ou transitório. No presente estudo, a cirurgia não influenciou de forma deletéria a reserva ovariana, no entanto, é necessário conscientizar os cirurgiões ginecológicos da importância de uma indicação precisa do procedimento cirúrgico e dos cuidados com a técnica a ser utilizada, na tentativa de preservação máxima de parênquima ovariano e, por consequência, da reserva ovariana desta mulher.
Recebido 24/4/09
Aceito com modificações 13/7/09