DOI: 10.1590/S0100-72032008000200001 - volume 30 - Fevereiro 2008
José Mendes Aldrighi, Alessandra Lorenti Ribeiro, Tsutomo Aoki
Correspondência
A ooforectomia profilática durante uma histerectomia por agravo benigno do útero é praticada de forma excessiva em expressivo número de países. Estatísticas norteamericanas desvelam que, anualmente, são realizadas 600.000 histerectomias, sendo que, entre essas, estão incluídas concomitantemente mais de 300.000 ooforectomias1. No Brasil, o número de histerectomias anuais alcança 107.000 e não se dispõe de dados pertinentes às ooforectomias praticadas em associação2.
A ooforectomia efetuada tanto no estágio da transição menopausal como no da pósmenopausa acarreta expressivo comprometimento endócrino. Fisiologicamente, durante o processo do envelhecimento ovariano, observase queda progressiva na população de folículos, redundando em 20.000 folículos em torno dos 37 aos 38 anos. A partir daí, apesar do comprometimento funcional da gônada, a esteroidogênese ainda se mantém preservada por um período, até a população alcançar 1.000 folículos, quando o ovário cessa a produção estrogênica, instalandose, então, a menopausa.
Após a menopausa, o ovário ainda persiste como um órgão endócrino ativo, pois mesmo sem a síntese folicular do estradiol, o estroma ovariano continua a produzir testosterona e androstenediona, que, nos tecidos periféricos (gordura e músculos), sob ação da aromatase, são convertidos em estrogênios (estrona). Dessa forma, no estágio da pósmenopausa, apesar da redução dos níveis do estradiol sérico, os androgênios e, especialmente, a testosterona mostramse dentro da faixa da normalidade3,4. Interessante estudo confirmou a fisiologia acima descrita, mostrando que mulheres ooforectomizadas após a menopausa exibem redução de 40 a 50% na estrona sérica, decorrente da ausência de androgênios ovarianos e, portanto, diferente dos valores normais da estrona nas mulheres com ovários preservados nesse período5.
Com esses dados da fisiologia ovariana após a menopausa, tornase claro compreender as repercussões endócrinas da ooforectomia bilateral: a retirada cirúrgica dos ovários propicia redução abrupta dos níveis de estradiol e testosterona séricos, tanto na transição como na pósmenopausa. As repercussões imediatas e mais intensas são as ondas de calor, que acometem 90% das mulheres ooforectomizadas, diferentemente dos 50% observados naquelas com menopausa natural6. Ademais, pela maior intensidade dos sintomas, essas pacientes, além de necessitarem de maior dose da terapia hormonal (TH), apresentam maior dificuldade na descontinuação do tratamento7,8. A atrofia cutâneomucosa (pele e urogenital) se instala em médio prazo, bem como outras manifestações decorrentes da queda da testosterona, como distúrbios do humor, queda da libido e redução da energia, que comprometem ainda mais a saúde da mulher.
A tríade distúrbios do humor, redução da libido e redução da energia é conhecida como síndrome da deficiência androgênica e seu tratamento ainda não está bem estabelecido, uma vez que a reposição androgênica por longo tempo, ainda não foi aprovada por agências regulatórias, como o Food and Drug Administration (FDA)9,10. Decorrido longo período após a ooforectomia, frequentemente se instalam agravos estrógenorelacionados, como a doença cardiovascular, osteoporose e o acúmulo de gordura abdominal.
Muitas são as controvérsias no tocante ao impacto da ooforectomia sobre o declínio da função cognitiva e sobre a maior prevalência de doenças psiquiátricas, mas estudo recente constatou maior risco de distúrbios cognitivos, demência e doença de Parkinson11,12. Além do mais, como a testosterona está implicada na sensação de bem estar, melhora do humor e da libido e, como a ooforectomia reduz esse androgênio em 40%, é plausível entender as desconfortáveis e críticas manifestações psíquicas e sexuais da retirada profilática dos ovários.
Outra significativa repercussão da ooforectomia referese ao risco cardiovascular. De fato, a retirada dos ovários duplica o risco de infarto agudo do miocárdio entre 40 e 44 anos e promove incremento no risco de 40% nas mulheres entre 50 e 59 anos1. Em metanálise recente, confirmouse o aumento do risco para doença cardivascular em mulheres ooforectomizadas antes dos 50 anos13. Parker et al.1, por sua vez, relataram que, se a ooforectomia fosse adiada até aos 65 anos, a redução do risco da doença coronariana seria da ordem de 6% para cada ano após a menopausa, não se observando qualquer diferença significativa a partir de 65 anos1. Várias são as ações benéficas dos estrogênios que justificam a redução do risco cardiovascular, destacandose especialmente a melhora do perfil lipídico e a vasodilatação endotelial.
A ooforectomia também compromete seriamente o sistema ósseo, pois, sabidamente estrogênios e androgênios exercem importante inibição da reabsorção óssea, enquanto os androgênios promovem ainda a formação óssea14. Nesse sentido, Kuchuk et al.15 confirmaram a existência de uma associação inversa entre estradiol e testosterona séricos com fraturas após a menopausa15. Destarte, Melton et al.16, ao acompanharem mulheres, submetidas à ooforectomia após a menopausa, durante 16 anos, notaram que 54% delas apresentaram maior prevalência de fraturas por osteoporose, quando comparadas com aquelas com os ovários intactos16. Confirmando a importância da preservação dos ovários sobre o sistema ósseo, cuidadoso estudo prospectivo mostrou que, nas mulheres ooforectomizadas, que sofriam fraturas de quadril após os 60 anos, a mortalidade duplicava após pequenos traumas17.
Em relação às taxas globais de mortalidade por todas as doenças, a preservação dos ovários mostra redução pela metade de todos os agravos, sendo mais evidente para a doença coronariana18.
Os adeptos da ooforectomia embasam seus argumentos na prevenção do câncer de ovário e de futuras ooforectomias, bem como na proteção contra o câncer de mama. Em relação à prevenção do câncer de ovário, alguns aspectos devem ser pontuados. Primeiramente, tratase de agravo oncológico relativamente incomum na população geral até 55 anos, acometendo uma em cada 1.500 mulheres. Nos Estados Unidos, a incidência é de 12,5 casos por 100.000 mulheres19, enquanto que em São Paulo, Brasil, é de 4,9 casos.
Ademais, o câncer de ovário é de rastreamento difícil e se apóia basicamente na determinação sérica de marcadores tumorais e na ecografia pélvica, sendo que nenhuma das duas técnicas se mostrou suficientemente sensível e específica. Daí, entender o porquê de mais de 70% dos casos de câncer de ovário ser detectado em estádios avançados da doença, quando a mortalidade é alta.
Evidências epidemiológicas e ilações matemáticas sugerem que as 300.000 ooforectomias anuais realizadas nos Estados Unidos, no momento de uma histerectomia eletiva por condição benigna, podem evitar o câncer de ovário em 1.000 mulheres acima de 40 anos. A ooforectomia, no entanto, não elimina completamente o risco de câncer de ovário, visto que o câncer peritoneal pode ainda se desenvolver20. Nesse contexto, é importante considerar que a histerectomia, por si só, diminui a incidência do câncer de ovário em 40%21.
Ressalva deve ser feita para as populações de risco (mulheres com mutações BRCA1/2 e/ou com antecedentes familiares), nas quais a freqüência do câncer de ovário alcança 1/70. Nestas, a ooforectomia bilateral tem indicação precisa, pois reduz o risco de câncer de ovário em 90%. Desafortunadamente, é pequeno o número de ooforectomias indicadas de forma planejada para mulheres de alto risco para câncer de ovário.
Como a maioria dos tumores mamários são hormôniodependentes e como as portadoras de mutação gênica BRCA1/2 exibem 80% de risco de câncer de mama, a ooforectomia bilateral indicada antes dos 50 anos propicia redução do risco para esta neoplasia pela metade, enquanto a mastectomia profilática reduz o risco do agravo mamário em 90%22.
Os defensores da ooforectomia profilática admitem que a alta freqüência de cistos benignos após a menopausa acarreta maior número de futuras cirurgias de ovários. Entretanto, investigações recentes contestam esta possibilidade e contraindicam a ooforectomia, pois constataram que a maioria desses cistos exibe características de benignidade, tanto pela ultrasonografia, como pela avaliação dos marcadores tumorais23. De fato, Bailey et al.24, ao avaliarem 7.705 mulheres após a menopausa evidenciaram somente 3,3% de cistos uniloculares, sendo que nenhum deles desvelou padrão histológico de câncer24. Dekel et al.25, por sua vez, monitorando por mais de 20 anos 2.561 mulheres submetidas à histerectomia com conservação de ovários, notaram que apenas 2,8% das participantes necessitaram de ooforectomia subseqüente25.
Considerações finais
O presente tema assume especial importância, pois, além de ser um dos mais controversos em Ginecologia, descortina preocupante dado epidemiológico: as ooforectomias profiláticas estão sendo realizadas em mais de 50% das mulheres entre 40 a 64 anos, momento em que os ovários mostram ativa esteroidogênese, tão necessária para a saúde da mulher.
Ademais, estudos de probabilidade sinalizam que, para prevenir um caso de câncer de ovário, o ginecologista deveria realizar 5.000 ooforectomias, que redundariam não só numa pior qualidade de vida, mas também num maior risco de mortalidade por qualquer outra causa. Agregase a isto o fato de que a histerectomia pode por si só reduzir em 40% o risco do câncer de ovário.
Cumpre assinalar que, em nenhuma idade, as mulheres que tiveram seus ovários conservados exibiram maior risco de morte por câncer de ovário (14.000 mulheres/ano), possivelmente em decorrência do maior risco de morte por infarto (490.000 mulheres/ano) e de fraturas de quadril (48.000mulheres/ano).
Como o câncer de ovário representa uma neoplasia relativamente incomum na população geral até os 55 anos, a ooforectomia profilática na vigência de uma histerectomia por doença uterina benigna só estaria bem indicada nas portadoras de mutações BRCA1/2, nas pacientes com antecedentes familiares de câncer de ovário e naquelas com mais de 65 anos de idade.
Entretanto, pela controvérsia do tema, respostas mais adequadas somente poderão ser dadas por estudo randomizado, que será de difícil execução, tanto no tocante a obtenção de um preciso tamanho amostral, que deverá incluir pelo menos 8.000 mulheres divididas em dois grupos (ooforectomizadas e não ooforectomizadas), como na duração do estudo, que necessitará uma duração de pelo menos 30 anos para avaliar mortalidade.
De qualquer modo, a decisão final da indicação de uma ooforectomia cabe à mulher, que se baseará nas informações atualizadas dos médicos; para tanto, essas informações nunca deverão conter induções ou insinuações e sempre deverão estar apoiadas no consentimento livre da mulher sobre a retirada de um órgão normal.
Recebido:13/02/2008
Aceito com modificações: 10/03/2008