DOI: 10.1590/S0100-72032008000800008 - volume 30 - Agosto 2008
José Alberto Fonseca-Moutinho
Introdução
A denominada neoplasia intraepitelial da vulva, mais conhecida pela sigla VIN, a qual deriva da sua denominação inglesa de vulvar intraepithelial neoplasia, é uma entidade patológica proposta há mais de 20 anos pela International Society for Study of Vulvo-vaginal Diseases (ISSVD) e posteriormente reconhecida pela International Society of Gynaecological Pathology (ISGYP) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O principal objetivo desta classificação foi o de integrar uma variedade de denominações, tais como eritroplasia de Queyrat, distrofia com atipia, carcinoma simplex, papulose bowenóide, doença de Bowen, displasia condilomatosa, entre outras, numa entidade com caracterização histológica e prognóstica mais definida. A doença de Paget da vulva (VIN pagetóide) é considerada um tipo particular de VIN, mas dada a sua raridade e especificidade será excluída desta revisão.
O interesse médico pela VIN se acentuou na última década, dado o reconhecimento do crescente aumento da incidência da doença, especialmente em mulheres jovens, pelo desenvolvimento de novas terapêuticas médicas dirigidas ao tratamento primário, melhor toleradas e menos mutilantes, e mais recentemente, pela comercialização das vacinas dirigidas contra o papilomavírus humano (HPV), as quais se têm mostrado muito eficazes na prevenção primária da doença.
Patologia
A VIN é um diagnóstico histológico, por isso obriga sempre à realização de biópsia. Inicialmente, as lesões de VIN, por analogia à neoplasia intraepitelial do colo do útero, foram divididas em três graus: VIN I, quando as atipias celulares se limitavam ao terço inferior do epitélio; VIN II, quando as atipias celulares estavam confinadas aos dois terços inferiores do epitélio, e VIN III, quando as atipias celulares envolviam todo o epitélio1.
O reconhecimento de que na vulva não existe zona de transformação como no colo do útero, da raridade e fraca reprodutibilidade do VIN II e de que as lesões de VIN I, em geral, correspondiam a reações inflamatórias do epitélio vulvar desencadeadas por estímulos diversos2 levou a que a ISSVD, em seu congresso de 2004, atualizasse a classificação da VIN para3:
VIN de tipo usual, dividido em:
a verrucoso;
b basalióide;
c misto (verrucoso/basalióide).
VIN de tipo diferenciado;
VIN de tipo não classificado (se não classificável nas duas categorias anteriores).
Histologicamente, na VIN de tipo verrucoso, a espessura do epitélio escamoso normal da vulva é total ou quase totalmente substituída por células de maturação e diferenciação irregular, acompanhadas de coilocitose, por vezes com marcado pleomorfismo nuclear. Também são freqüentes as células discarióticas e multinucleadas. Já a papilomatose é característica e está associada à presença de queratina ou paraqueratina de espessura variável à superfície do epitélio.
A VIN de tipo basalióide é caracterizada histologicamente pela substituição total ou quase completa do epitélio escamoso normal da vulva por células epiteliais de tipo basal, com maturação anormal e ausência de queratinização, sendo rara a presença de células multinucleadas e discarióticas. No entanto, as células imaturas apresentam freqüentemente pleomorfismo nuclear, múltiplos nucléolos e hipercromasia. As VIN de tipo verrucoso e basalióide podem coexistir no mesmo epitélio da vulva, por vezes em íntimo contato4.
Em 66 a 100% dos casos de VIN de tipo usual tem sido possível detectar o genoma do HPV de alto risco, especialmente do HPV 165-7. Em cerca de 60% dos casos, a doença é multifocal e/ou multicêntrica8.
A característica histológica mais relevante das lesões de VIN de tipo diferenciado é o agrupamento de células neoplásicas em focos de localização intraepitelial. Em geral, as alterações nucleares são sutis e a discariose e as mitoses estão limitadas às camadas basal e parabasal do epitélio escamoso da vulva. A doença tende a ser unifocal e a se localizar na proximidade de um carcinoma escamoso invasivo bem diferenciado9.
A VIN, de forma independente do seu tipo morfológico, tende a envolver as unidades pilosebáceas do epitélio vulvar em 30 a 50% dos casos10,11, e pode se estender até uma profundidade de 3,5 mm, desde a superfície do epitélio, aspecto que deve ser valorizado no planejamento das terapêuticas a instituir.
Epidemiologia
A taxa de incidência da VIN tem aumentado de forma gradual e progressiva. Sturgeon et al.12 analisaram a incidência de VIN III e do carcinoma invasivo da vulva nos Estados Unidos, em duas épocas diferentes: 1973-77 e 1985-87. Verificaram que, enquanto a incidência do carcinoma invasivo da vulva se manteve estável em ambas as épocas (1,3 e 1,2 por 100.000 mulheres, respectivamente), a incidência das lesões de VIN III duplicou de uma década para a seguinte (1,1 e 2,1 por 100.000 mulheres, respectivamente). Também observaram que a média de idade das doentes com VIN III, na época de 1973-77, era superior aos 35 anos, enquanto que a mesma média na época de 1985-87 era inferior aos 35 anos. Os autores sugeriram então que a alteração nos hábitos sexuais e o aumento da prevalência da infecção pelo HPV poderia explicar os resultados.
Mais recentemente, Joura et al.13 compararam a incidência das lesões de VIN II e VIN III e do câncer invasivo da vulva, numa população européia nos períodos de 1985-88 e de 1994-97. Eles verificaram que a incidência das lesões de VIN triplicou no espaço de uma década, enquanto a incidência do carcinoma invasivo se manteve estável nos dois períodos. Quando consideraram apenas as mulheres com 50 anos ou menos, observaram que a incidência de VIN aumentou de 392%, enquanto que a do carcinoma invasivo aumentou apenas de 157%, o que interpretaram como conseqüência da previsível cancerização das lesões de VIN.
Sykes et al.14, na Nova Zelândia, avaliaram os fatores epidemiológicos de 65 doentes consecutivos com o diagnóstico de VIN III, entre os anos de 1989 e 1999. Constataram que a média da idade à data do diagnóstico foi de 38 anos; as mulheres fumantes eram mais jovens que as não fumantes; em 2/3 dos casos, as lesões de VIN III estavam associadas à neoplasia intraepitelial do colo do útero e/ou da vagina, das quais 43% de alto grau, e que 79% das doentes eram sintomáticas, com uma duração média dos sintomas de 9,5 meses.
O antecedente de condilomas vulvares foi relacionado com um risco relativo (RR) de 15,8 a 18,5 de se contrair uma lesão de VIN III15,16, enquanto que a seropositividade para o HPV 16 foi associada a um RR de 3,6 a 13,417,18. É possível que a condilomatose vulvar seja um marcador indireto da suscetibilidade imunológica do epitélio escamoso da vulva à infecção pelo HPV de alto risco. Foi determinado que as mulheres infectadas pelo HIV têm uma incidência de quatro a seis vezes mais elevada de sofrerem de VIN, em geral associada à neoplasia intraepitelial cervical, vaginal e anal19,20, e que essa incidência diminui com a medicação antiretroviral, o que sugere a importância da imunidade sistêmica.
Parece existir consenso sobre a influência do tabagismo na incidência da VIN. Hilddesheim et al.18 verificaram um RR de 1,7, mesmo após ajuste com a idade, escolaridade, presença de anticorpos séricos para o HPV 16 e para Chlamydia trachomatis, número de parceiros sexuais e uso de contraceptivos orais. Madeleine et al.17 encontraram um RR de 6,4 após ajuste para a idade, escolaridade e presença de anticorpos para o HPV 16. A intensidade e a duração do tabagismo também têm sido apontadas como fatores que agravam ainda mais a incidência da VIN. Tem-se especulado que o efeito imunosupressor local do fumo do tabaco pode facilitar a persistência do HPV nas células epiteliais, o que constitui um importante contributo para o processo da carcinogênese21.
Fatores epidemiológicos pouco consistentes, tais como a dieta, obesidade, hábitos de higiene pessoais, atividade profissional, diabetes mellitus, hipertensão arterial e outras doenças também têm sido relacionados com o aumento da incidência das VIN22.
História natural
Existe evidência morfológica e clínica de que as lesões de VIN têm potencial de progressão para carcinoma invasivo e, mais raramente, para a regressão.
Os estudos mais recentes continuam a confirmar que as lesões de VIN têm elevado potencial de progressão para câncer invasivo. Chiesa-Vottero, Dvoretsky e Hart23 avaliaram as lesões vulvares associadas a 48 carcinomas epidermóides da vulva com profundidade de invasão inferior ou igual a 5 mm. As lesões de VIN foram observadas em 37 (77%) casos: 19 (51%) casos de VIN de tipo usual e 18 (49%) de tipo diferenciado. Todos os carcinomas classificados como verrucosos e não queratinizantes estavam associados a lesões de VIN de tipo usual. A análise de peças operatórias de ressecção alargada de VIN III, previamente diagnosticada por biópsia, de 78 pacientes mostrou que havia lesões de carcinoma invasor em 16 casos (20,5%)24.
Para além da evidência morfológica, também existe evidência clínica da progressão das lesões de VIN para carcinoma invasivo, que assenta em pequenas séries de casos com a doença diagnosticada por biópsia, mas que por razões diversas não foram tratadas. A série mais numerosa foi descrita por Jones e Rowan25, que consistiu de oito doentes não tratadas de VIN III. Em sete casos, a doença progrediu para carcinoma invasivo e em uma houve regressão das lesões.
Tem havido a preocupação de compreender o comportamento biológico das lesões de VIN. A presença de infiltrado inflamatório perilesional com linfócitos T CD4+ e CD8+ parece estar associada à capacidade de regressão da doença26. O aumento da expressão da COX-227, da proteína p1628 e a detecção de mutações na proteína p5329 têm sido apontados como fatores associados ao risco de progressão das lesões de VIN. Talvez, no futuro, possa-se individualizar o tratamento da VIN em função de marcadores moleculares de prognóstico.
Aspectos clínicos
Não existem sintomas ou sinais clínicos específicos das lesões de VIN, por isso o diagnóstico é sempre histológico. O epitélio espinocelular que recobre a vulva apresenta particularidades que o distinguem do epitélio de outras localizações. Ele é constituído pelo epitélio queratinizado e/ou epitélio não queratinizado, e tem abundantes folículos pilosos, glândulas sebáceas, sudoríparas e apócrinas, sendo rico em vascularização e inervação. Sofre ainda a influência das secreções vaginais, da urina e fezes, e não menos importante, é freqüentemente traumatizado por produtos químicos de higiene e por peças de vestuário. É, por isso, compreensível que no epitélio vulvar, as lesões dermatológicas elementares sofram alterações que as tornam muitas vezes de difícil interpretação. O interesse pela patologia vulvar e o persistente e continuado treino em semiologia da vulva são uma ajuda preciosa.
O sintoma mais comum da VIN é o prurido vulvar, presente em cerca de 60% dos casos8,14,30, muitas vezes de duração superior a dois anos31,32. Outros sintomas freqüentes são o ardor vulvar, dor na vulva e dispareunia superficial. Cerca de 10% das doentes são assintomáticas8,14,30-32, o que implica que, por rotina, a vulva de todas as doentes deve ser inspeccionada e, com especial atenção, naquelas que são portadoras de neoplasia intraepitelial do colo do útero, da vagina e/ou região anal.
As lesões de VIN são sempre identificáveis ao exame clínico atento da vulva, e, na maioria dos casos, em múltiplos locais8,30. O aspecto macroscópico das lesões pode ser muito variado, mas são sempre lesões elevadas ou papulares. Também podem ser hiperqueratósicas, ulceradas ou pigmentadas14,33 e se localizam, preferencialmente, no epitélio desprovido de pêlos, incluindo o clitóris e o períneo, mas podem afetar qualquer parte da vulva8,14,30-32. As lesões podem ser muito discretas (Figuras 1 e 2) ou exuberantes (Figura 3).
O esfregaço das lesões para estudo citológico não deve ser utlilizado porque é inespecífico e não se relaciona com o diagnóstico histológico da doença34,35.
Não existem sinais vulvoscópicos específicos da VIN. No entanto, a utilização da vulvoscopia permite a melhor demarcação das lesões e facilita a identificação da multifocalidade da doença36, devendo ser valorizadas as áreas hiperqueratósicas, ulceradas, pigmentadas e com padrões vasculares.
Não é recomendado o uso do teste descrito por Collin (aplicação de azul de toluidina), dada a elevada taxa de falsos-positivos (fissuras, infecção) e de falsos-negativos (hiperqueratose)37.
As biópsias, que irão confirmar o diagnóstico e excluir a presença de malignidade, devem ser efetuadas, liberalmente, em todas as lesões suspeitas, após infiltração anestésica local e preferencialmente com punch dermatológico de Keyes (4-6 mm). O colo uterino, vagina e região anal devem ser estudadas sistematicamente, dada a elevada multicentridade da neoplasia intraepitelial8,14,38.
A pesquisa da infecção pelo HIV deve ser efetuada em todas as doentes com VIN, dadas a suas implicações clínicas19,20.
Terapêutica e prognóstico
Existem dois motivos para o tratamento das lesões de VIN: o alívio sintomático da doente e a evitável progressão da doença para carcinoma invasivo. Na década de 1950, a vulvectomia radical era considerada o tratamento preferencial das VIN39. O reconhecimento de que as lesões e VIN tinham um comportamento biológico diferente do carcinoma invasivo levou a que Boutselis40 introduzisse a vulvectomia simples, como tratamento standard da doença. Em 1980, Buscema et al.41, apresentaram um estudo de 106 doentes tratadas com vulvectomia simples e com excisão local alargada, no qual a taxa de recorrência foi semelhante em ambos os grupos. Dessa forma, a excisão local alargada das lesões se tornou então o tratamento preferencial das VIN.
As técnicas de vulvectomia e excisão local alargada comportam mutilação com mobilidade significativa, tal como estenose do intróito vaginal, dispareunia, sensação de secura vaginal, falta de elasticidade, alterações urinárias, mas, sobretudo, alteração da auto-imagem corporal.
No sentido de reduzir a mutilação cirúrgica associada à cirurgia das VIN, Rutledge e Sinclair42 propuseram a excisão alargada da pele da vulva afetada pelas lesões de VIN, seguida de enxerto cutâneo (skinning vulvectomy). A técnica foi aperfeiçoada por Retteinmaier, Berman e DiSaia43, e é ainda hoje utilizada para o tratamento de lesões de VIN multifocais e extensas. Tem como desvantagens a necessidade de internamento prolongado, cicatrizes cutâneas adicionais e risco acrescido de tromboembolismo, por vezes fatal.
A deformação da anatomia da vulva e as altas taxas de recidiva (30-60%) associadas aos tratamentos excisionais44,45 levaram ao desenvolvimento de terapêuticas destrutivas das lesões de VIN. A destruição das lesões do epitélio vulvar tem como principal desvantagem a inexistência de material para estudo histológico, o que obriga a um exame vulvoscópico exaustivo, com múltiplas biópsias, a fim de excluir qualquer foco de carcinoma invasivo, mas tem a vantagem de reduzir em muito a morbidade.
Dos métodos VIN III destrutivos da VIN, a vaporização com laser de CO2 foi aquele que adquiriu maior popularidade. Conectado ao colposcópio, permite o controle da profundidade da destruição e identificação dos planos cirúrgicos, sendo que as taxas de recidivas são semelhantes às dos tratamentos excisionais.
As recidivas, nos tratamentos excisionais, podem ser explicadas pela dificuldade em obter uma margem de segurança de 5 a 10 mm em volta de toda a lesão, especialmente no limite interno, enquanto que nos tratamentos destrutivos, as recidivas podem ser atribuídas à persistência da doença, especialmente nos planos mais profundos.
Estudos de análise estatística univariada e multivariada têm demonstrado que os principais fatores de risco para a recidiva, independentemente do método de tratamento utilizado, são a multicentricidade, multifocalidade, presença de HPV de alto risco, infecção por HIV e margem de ressecção inferior a 5 mm8,14,46-48.
A destruição química das lesões de VIN, com aplicações locais de 5-fluoracilo ou de 2,4-dinitroclorobenzeno, mostraram ser muito mal toleradas e pouco eficazes, por isso, estão, hoje, praticamente abandonadas.
Terapêuticas médicas como a administração tópica de interferon ou a aplicação local de isotretionina ou corticosteróides não se mostraram úteis no tratamento das lesões de VIN.
Recentemente, foi publicado um estudo comparativo entre a aplicação local de imiquimod e de placebo em 52 doentes com VIN II e VIN III, multifocal sem evidência de microinvasão49. Ao fim de 20 semanas, observou-se uma resposta objetiva global de 81% (e resposta completa em 35%) no Grupo de Doentes Tratadas com imiquimod contra nenhuma no Grupo Placebo. O imiquimod parece abrir uma porta de esperança para o tratamento médico das lesões multifocais de VIN ou para a sua redução dimensional, com vista a uma terapêutica excisional ou destrutiva definitiva.
A vigilância das doentes, após a terapêutica, deve ser rigorosa nos primeiros seis meses, tempo em que surgem mais da metade das recidivas. O tratamento precoce das recidivas é mais fácil, menos mutilante e comporta menos risco de progressão para carcinoma invasivo8,14,46-48. Atualmente, tem-se efetuado a vigilância ao fim de primeiro mês, após a terapêutica, depois a cada dois meses até aos seis meses. Em seguida, a cada três meses até completar dois anos, e posteriormente cada seis meses por tempo indefinido, pois 3-5% das recidivas ocorrem após os cinco anos.
Prevenção
A vacina quadrivalente profilática contra os tipos de HPV 6, 11, 16 e 18, e em relação ao placebo demonstrou uma eficácia de 100% na prevenção da VIN, quando ensaiada com intuito profilático, e uma eficácia de 71% quando administrada em uma população de mulheres jovens, com as características da população em geral50. Ainda não existem resultados publicados da vacina profilática bivalente contra os tipos de HPV 16 e 18 sobre a prevenção das VIN, mas é previsível que sejam sobreponíveis aos da vacina quadrivalente. Existe a perspectiva de que a vacinação universal de todas as mulheres jovens contra o HPV de alto risco constitua a intervenção médica mais promissora na redução da incidência das VIN, da vagina e do colo do útero.
Recebido 6/8/08