DOI: 10.1590/S0100-72032008000600007 - volume 30 - Junho 2008
Elizabel de Souza Ramalho Viana, Selma Sousa Bruno, Maria Bernardete Cordeiro de Sousa
Introdução
A avaliação da percepção dolorosa em seres humanos é fundamental para os estudos dos mecanismos, métodos de controle e manejo da dor. Estudos prévios têm demonstrado que a dor é percebida de forma diferente por homens e mulheres, tanto clínica quanto experimentalmente1. Na perspectiva de ocorrerem diferenças entre os sexos na experiência da dor, é provável que estas também se verifiquem na forma como os seres humanos respondem ao tratamento da dor, tanto do ponto de vista farmacológico2 como não-farmacológico3. Atualmente, nenhuma conclusão definitiva pode ser retirada a partir de estudos anteriores sobre mecanismos moduladores das diferenças na resposta dolorosa entre os sexos, utilizando as diversas modalidades experimentais de indução de dor.
Estudos prévios com mulheres têm investigado a ação dos hormônios sexuais sobre aspectos, tais como variáveis respiratórias4 e vasculares5. A dor também parece variar em função dos níveis séricos dos hormônios gonadais. Estudos sobre a sensibilidade dolorosa em mulheres têm sugerido a influência dos hormônios sexuais femininos (estrógeno e progesterona) na modificação da percepção da dor, apontando para uma provável relação entre variações das respostas dolorosas e as fases do ciclo menstrual6-8. Estudos prévios sobre a epidemiologia da variação da experiência dolorosa entre os gêneros constataram que as mulheres estão mais expostas do que os homens a uma série de situações que podem desencadear respostas dolorosas, tais como dismenorréia, gravidez e parto, além de apresentarem níveis de dor mais severos, com episódios mais freqüentes e de maior duração que os homens9-11. Estas evidências sugerem que as flutuações hormonais cíclicas podem estar envolvidas nos mecanismos responsáveis pela dor na mulher.
Apesar da vasta literatura no assunto, pouco tem sido descrito, focalizando as diferentes modalidades de dor experimental e sua correlação com os níveis séricos dos hormônios sexuais. Estudos prévios mostram grande divergência entre seus achados. Este fato pode ser atribuído não somente ao emprego de diferentes métodos de indução da dor (isquemia, pressão, térmico e elétrico), mas também à estimativa indireta do ciclo menstrual das participantes. Neste último caso, em alguns estudos, não foram realizadas medidas hormonais de estradiol e progesterona, sendo a definição das fases do ciclo menstrual determinada pela inferência do número de dias atribuídos a cada fase, a partir do início de cada menstruação6.
No Brasil, a literatura acerca da influência dos hormônios sexuais sobre a percepção dolorosa em mulheres é ainda mais escassa. No entanto, o conhecimento destes fatores são muito importantes para desvendar diferenças entre os sexos na percepção da dor, pois as mulheres parecem sentir mais dor do que os homens, além de contribuir de maneira consistente para que os profissionais que lidam com quadros dolorosos possam entender e tratar mais eficazmente ambos os sexos.
Diante deste quadro, o objetivo deste estudo foi investigar a influência dos hormônios sexuais (estradiol e progesterona) sobre a percepção dolorosa aos estímulos experimentais de pressão e isquemia de maneira controlada, delimitando a faixa etária e o estado de saúde, e monitorando a dosagem destes hormônios durante cinco fases do ciclo menstrual das mulheres participantes deste estudo.
Métodos
Foi realizado um ensaio experimental para avaliar a relação entre percepção da dor, ciclo menstrual e hormônios gonadais (estradiol e progesterona), com o limiar e tolerância à dor experimental isquêmica e à pressão em mulheres jovens e saudáveis. Os critérios para inclusão foram: mulheres em idade reprodutiva com ausência de doenças do trato reprodutivo e que apresentavam ciclos menstruais regulares (25-30 dias). A amostra foi constituída por dezoito mulheres, estudantes universitárias voluntárias, com idade variando entre 18 e 35 anos (mediana de 22,7±1,5 anos). As voluntárias foram orientadas a se absterem de uso de medicação analgésica, antiinflamatória e contraceptiva durante o período da coleta. Todas as voluntárias eram não-fumantes, não-usuárias de drogas e se abstiveram do uso de álcool e café por pelo menos seis horas antes de cada coleta. Ciclos menstruais com níveis séricos de progesterona mantidos abaixo de 5 ng/mL foram considerados anovulatórios, não tendo nenhuma das participantes deste estudo apresentado tais níveis.
O termo de consentimento livre e informado foi obtido de todas as mulheres que participaram do estudo, antes do início do experimento. Todas as voluntárias foram esclarecidas que eram livres para encerrar sua participação no momento que desejassem. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal (RN).
Procedimento experimental
O monitoramento do ciclo menstrual de cada mulher foi realizado durante seis meses, sendo que, nos três meses que antecederam as coletas dos dados experimentais, apenas os dados referentes aos dias de menstruação e temperatura oral foram registrados, para estimar a duração e a regularidade dos ciclos. Nos três meses subseqüentes, além destes registros, os ciclos foram estimados adicionalmente pelas dosagens hormonais de estradiol e progesterona. Neste estudo o ciclo menstrual foi dividido em cinco fases: menstrual (dias 1-5), folicular (dias 6-11), periovulatória (dias 12-16), luteal inicial (dias 17-23) e luteal tardia (dias 24-30), para os ciclos com 30 dias de duração. Para os ciclos com durações menores foi reduzida a duração da fase folicular, ou seja, a duração da fase luteal foi mantida em 14 dias6. Todas as voluntárias apresentaram ciclos menstruais entre 25 e 30 dias, com diferenças significativas entre as concentrações de estradiol (F=4,3; média=96,4; p<0,001) e progesterona (F=4,3); média=116,3; p<0,001) entre as cinco fases do ciclo menstrual estudadas.
Cada mulher foi submetida à coleta de sangue e teste experimental de dor duas vezes por semana, durante três ciclos menstruais consecutivos. Assim, cada voluntária foi submetida a oito coletas de sangue por mês, sendo que, ao final do experimento (três meses), de cada voluntária, tinham sido coletadas 24 amostras de sangue. Foi realizado igual número de repetições de testes de sensibilidade dolorosa para cada uma das participantes. O experimento foi realizado sempre no horário entre 12:00 e 18:00 horas, com a finalidade de prevenir possíveis influências circadianas.
As coletas foram realizadas nas cinco fases do ciclo menstrual, inclusive com repetições em uma mesma fase no mesmo ciclo e/ou nos ciclos subseqüentes durante o desenvolvimento do estudo. Todas as fases que se efetuou coleta de dados foram registradas e analisadas ao término do experimento. As fases em que os dados referentes às variáveis em estudo foram coletados, considerando todo o grupo de voluntárias, foram os seguintes: fase menstrual (n=61), folicular (n=121), periovulatória (n=50), luteal inicial (n=36) e luteal tardia (n=135). Este número é referente à quantidade de amostras colhidas e registradas em cada fase, considerando a repetição da coleta de dados em cada fase do ciclo menstrual, no grupo amostral total. Os valores diferentes se deram em função da maior ou menor duração de cada fase nos ciclos menstruais da amostra, o que determinou maior número de repetições em determinadas fases.
Antes da aplicação dos testes algésicos e após cinco minutos de descanso, foi coletada uma amostra sanguínea (5 mL) do braço não-dominante de cada participante. Posteriormente, as amostras foram centrifugadas, o plasma separado e estocado em freezer a -20°C no Laboratório de Medidas Hormonais da UFRN, para posterior análise das concentrações de estradiol e progesterona. As concentrações hormonais foram determinadas usando o método de quimioluminescência com kits comercialmente disponíveis Diagnostic Products Corporation (DPC - Immunolite), dos Estados Unidos. O coeficiente de variação intra e interensaios foram 5 e 6,5% para níveis de estradiol e 4,5, 5 e 8% para níveis de progesterona. A sensibilidade foi de 15 pg/mL para o estradiol e 0,2 ng/mL para a progesterona.
Os testes experimentais de dor foram aplicados pelo mesmo avaliador, treinado com antecedência, em seqüência alternada a cada sessão, com cinco minutos de intervalo entre eles. A dor isquêmica foi investigada conforme modelo existente na literatura12, sendo os testes realizados da seguinte forma: as participantes foram instruídas a dizer a palavra "dor" quando o estímulo aplicado começasse a se tornar doloroso (limiar) e a palavra "pare" quando não mais suportasse a dor (tolerância). Com a finalidade de prevenir dano tecidual, este tempo não poderia exceder 15 minutos. Entretanto, nenhum dos testes aplicados excedeu o tempo de segurança estipulado. O limiar e a tolerância de cada indivíduo foram registrados em segundos pelo avaliador, através do uso de um cronômetro digital. Antes do início de cada teste experimental isquêmico, a participante era estimulada a levantar seu braço dominante e mantê-lo na posição vertical durante 30 segundos, para promover a drenagem venosa. Um esfigmomanômetro era, então, posicionado acima do cotovelo e inflado até 230 mmHg. Neste momento, a voluntária baixava seu braço e dava início a uma série de movimentos alternados de contração-relaxamento da mão, com um intervalo de dois segundos entre cada movimento, com um terço da força máxima de cada sujeito, determinado na primeira sessão do experimento. Para este teste foi utilizado um dinamômetro manual (PC5030J1, Medical Ibéria S.A.).
Da mesma forma, seguiu-se procedimento existente na literatura13 para investigação da resposta dolorosa ao estímulo de pressão. Para provocação do estímulo doloroso, utilizou-se um algômetro de pressão (Pain Diagnostics and Thermography, Great Neck®, New York, NY, USA), na parte anteromedial da tíbia direita, 5-8 cm abaixo do tubérculo tibial, com a voluntária deitada em decúbito dorsal. Solicitou-se que as voluntárias dissessem a palavra "dor" quando o estímulo aplicado começasse a se tornar doloroso (limiar) e a palavra "pare" quando não mais suportasse a dor (tolerância), sendo registrados os valores para cada momento. Os valores para limiar e tolerância foram registrados em kg/cm2.
Todas as voluntárias apresentaram um padrão menstrual regular, segundo a análise dos níveis plasmáticos dos hormônios sexuais.
Análise estatística
A análise dos dados foi feita usando o Statistical Package for Social Science (SPSS) for Windows, versão 10. Inicialmente, foram realizadas análises de caráter descritivo, através de medidas de tendência central e de dispersão, e seus respectivos intervalos de confiança. A análise estatística dos dados considerou as cinco fases do ciclo menstrual, conforme anteriormente descrito no procedimento experimental e as variáveis foram analisadas pela ANOVA com pós-teste de Tukey-Kramer. Para a verificação da correlação entre as variáveis dolorosas e hormonais, usou-se a verificação de coeficientes de Pearson. Em todos os testes, o nível de significância foi estabelecido em p<0,05.
Resultados
As voluntárias apresentaram ciclo menstrual regular. As concentrações hormonais médias em cada fase do ciclo menstrual são mostradas na Tabela 1.
Não foram encontradas diferenças significativas entre as cinco fases do ciclo menstrual para as respostas aos testes dolorosos de isquemia e pressão.
Com relação aos níveis séricos de estradiol e variáveis de dor (limiar e tolerância) isquêmica e à pressão, não foram encontradas correlações significativas entre as duas variáveis durante as fases do ciclo menstrual. Por outro lado, foram encontradas correlações negativas significativas entre a progesterona e os valores de tolerância à pressão (r=-0,23; p=0,01) e limiar isquêmico (r=-0,23; p=0,01), ambos na fase luteal inicial. Estas correlações encontram-se demonstradas nas Figuras 1 e 2.
Discussão
A natureza exata das diferenças nas respostas à dor entre os sexos, em situações nas quais ocorre variação hormonal natural (ciclo menstrual) ou artificial (uso de anticoncepcionais) em mulheres, permanece desconhecida. A dor é um tipo de sensibilidade complexa e sua percepção envolve, além de fatores biológicos, a modulação por variáveis de natureza social, psicológica e cultural. Entre os fatores biológicos, as variações hormonais que ocorrem durante o ciclo menstrual têm sido um importante foco de estudo14,15.
Diversos estudos vêm sendo realizados visando investigar uma provável relação entre percepção dolorosa e ciclo menstrual6,7,9,10,12. Embora alguns estudos tenham sugerido que o perfil endocrinológico nas mulheres pode afetar suas respostas a estímulos de dor6-8, no presente estudo não foi encontrada diferenças significativas entre as variáveis dolorosas estudadas e as fases do ciclo menstrual. Estes resultados são consistentes com outros achados da literatura, no qual não se observou influência do ciclo menstrual sobre a resposta à dor9,15,16. Dois estudos anteriores, examinando efeitos do ciclo menstrual sobre a percepção da dor, não mostraram relação entre estas duas variáveis. Um estudo16 avaliou a resposta dolorosa à pressão em mulheres com desordem temporomandibular e livres de dor, enquanto outro15 avaliou mulheres livres de dor e em uso de contraceptivo oral. Ambos os estudos concluíram que não houveram diferenças relacionadas às fases do ciclo menstrual para a resposta dolorosa nos grupos amostrais pesquisados. Contrariamente, outros estudos têm sugerido que existem diferenças entre as fases do ciclo menstrual17-19. Diferenças na metodologia utilizada em muitos estudos experimentais têm dificultado uma conclusão definitiva acerca do tema. Os métodos usados para determinar as fases do ciclo menstrual pode ser o principal problema na comparação dos resultados entre os estudos. No presente estudo, medidas dos níveis séricos de estradiol e progesterona, além do mapeamento criterioso de cada ciclo menstrual das voluntárias, foram realizados. Adicionalmente, existe uma variação considerável entre os estudos no que se refere à nomenclatura utilizada para as fases do ciclo menstrual e no critério de divisão deste. Pesquisadores têm usado diferentes termos para definir as fases estudadas, além do que cada estudo define a fase com duração temporal diferente.
Embora seja ainda desconhecida a razão pela qual a resposta dolorosa se encontra mais elevada em determinadas fases do ciclo menstrual, como demonstrado em alguns estudos, existem indicações de que ela pode estar associada à ação dos hormônios gonadais sobre estruturas localizadas em nível periférico e/ou no sistema nervoso central14. Dados da literatura sugerem relação dos níveis plasmáticos de estrógeno com a dor, permanecendo incerta, entretanto, a forma de interação entre estes14,20. Neste estudo, nenhuma correlação significativa foi obtida entre as respostas algésicas e os níveis séricos de estradiol. Porém, com relação à resposta à dor e níveis plasmáticos de progesterona, evidenciou-se uma correlação negativa significativa entre a progesterona e o limiar isquêmico e a tolerância à pressão na fase luteal inicial do ciclo menstrual, no qual os níveis séricos deste hormônio alcançaram seus valores mais elevados durante o ciclo menstrual. Achados da literatura demonstram ainda que, durante a fase luteal, algumas mulheres apresentaram maiores índices de quadros dolorosos (enxaqueca, desordem temporomandibular e dor lombar), sugerindo que o perfil hormonal dentro do ciclo menstrual pode afetar a sensibilidade dolorosa nas mulheres21,22. Estudos experimentais prévios observaram relação entre progesterona e resposta dolorosa, demonstrando aumento da percepção da dor na fase luteal final do ciclo menstrual em mulheres e evidenciando que altas concentrações de progesterona podem estar relacionadas com baixos limiares de dor nesta fase18-20. Os resultados do presente estudo confirmam a importância da medida dos níveis séricos de hormônios sexuais através do ciclo menstrual em pesquisas envolvendo dor em mulheres. Novos estudos se fazem necessários para investigar o papel da progesterona na percepção da dor.
Embora o tamanho da amostra deva ser considerado uma limitação para explicar os resultados discrepantes entre este e outros estudos citados, outros fatores, aparentemente mais críticos, devem ser citados. Primeiramente, podem ser mencionados os diferentes procedimentos encontrados na literatura para dividir as fases do ciclo menstrual, o que pode resultar em diferentes perfis de concentrações hormonais em relação ao presente estudo, que dividiu o ciclo menstrual em cinco fases. Em segundo lugar, a divisão do ciclo menstrual sem medidas séricas de estradiol e progesterona realizadas em alguns estudos, diferentemente deste estudo, pode gerar resultados falsos-positivos ou falsos-negativos em reproduzir o ambiente de cada fase do ciclo menstrual, devido à grande variabilidade inter e intra-indivíduos na duração de cada ciclo menstrual. Terceiro, os resultados divergentes sugerem diferentes vias de processamento central para os vários estímulos dolorosos, dependendo da sua natureza (térmico, mecânico, elétrico), podendo diferir adicionalmente quando se consideram as regiões do corpo testadas. Finalmente, a grande variabilidade em relação ao controle de variáveis críticas para interpretação dos resultados, como o uso de contraceptivos e intercorrência de quadros patológicos (desordem temporomandibular, fibromialgia, dismenorréia), também parece contribuir para a incongruência entre os achados literários.
Em conclusão, este estudo investigou se a sensibilidade dolorosa é influenciada pelos hormônios sexuais femininos, usando: um desenho metodológico em que os ciclos menstruais foram divididos em cinco fases; os níveis plasmáticos dos hormônios sexuais foram quantificados; apenas ciclos regulares ovulatórios foram considerados e apenas mulheres saudáveis e jovens foram incluídas. Os dados obtidos neste estudo sugerem que a progesterona pode modular a sensibilidade à dor aos estímulos isquêmicos e de pressão, e que os hormônios sexuais devem desempenhar um papel coadjuvante com outros fatores na gênese das diferenças encontradas. Portanto, tanto estudos meta-analíticos como estudos com desenhos experimentais mais controlados e usando diferentes tipos de estímulos dolorosos são necessários para aprofundar o conhecimento de quanto os hormônios sexuais femininos influenciam na modulação da dor na mulher.
Agradecimentos
Às voluntárias desta pesquisa pela sua participação e ao suporte técnico dos Doutores Sylvia Maria Dantas Fonseca e Alfredo de Araújo Silva, do Centro de Patologia Clínica (Laboratório de Dosagens Hormonais), pela análise hormonal.
Recebido: 8/5/2007
Aceito com modificações: 2/7/2008
Este estudo foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processos números 470601/2003-5 e 305216/2003-1.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN - Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde.