DOI: 10.1590/S0100-72032008000700005 - volume 30 - Julho 2008
Mara Rejane Barroso Barcelos, Paulo Roberto Merçon de Vargas, Carla Baroni, Angélica Espinosa Miranda
Introdução
As infecções do trato reprodutivo (ITR), incluindo infecções sexualmente transmissíveis (IST), merecem atenção especial da saúde pública. As IST estão entre as primeiras cinco categorias de doenças para as quais adultos em países em desenvolvimento buscam ajuda médica1; geralmente, elas causam desconforto e perda de produtividade econômica2. As seqüelas mais sérias e de maior duração surgem nas mulheres: doença inflamatória pélvica, câncer cervical, infertilidade, aborto espontâneo e gravidez ectópica, que pode levar ao óbito materno1,3. A presença de uma IST aumenta de três a cinco vezes os riscos de se adquirir e transmitir a infecção por HIV4,5, e a vaginose bacteriana pode ser um co-fator de transmissão do HIV, principalmente entre mulheres jovens6.
O manuseio efetivo das infecções genitais é importante para o controle de IST e ITR, uma vez que ele previne o desenvolvimento de complicações e seqüelas, diminui o avanço dessas infecções na comunidade e oferece uma oportunidade única para uma educação direcionada sobre a prevenção do HIV4. O tratamento adequado dessas infecções num primeiro contato entre pacientes e profissionais de saúde é, portanto, uma importante medida de saúde pública. No caso das mulheres, há o potencial de se influenciar o futuro comportamento sexual e o hábito de buscar tratamento em um estágio inicial da história natural da doença1. Dados epidemiológicos confiáveis de mulheres brasileiras com IST e outras ITR, assim como vaginose bacteriana e candidíase, são escassos7.
O Ministério da Saúde iniciou a implantação do Programa de Saúde da Família (PSF) na década de 1990. O principal propósito do PSF é reorganizar a prática da atenção à saúde em novas bases e substituir o modelo tradicional, levando a assistência à saúde para mais perto da família, e melhorando a qualidade de vida das pessoas8. A ausência de dados precisos sobre o número de casos de DST e sobre os padrões de comportamento das mulheres que buscam atendimento no PSF em Vitória motivou a realização desse estudo para o conhecimento da realidade local e o planejamento de estratégias de intervenção e prevenção para esta população. O principal objetivo deste estudo foi descrever as taxas de prevalência e o perfil clínico e comportamental para infecções genitais em mulheres atendidas em uma unidade primária do PSF.
Métodos
Foi realizado um estudo em corte transversal numa unidade do PSF em Vitória, Espírito Santo, Brasil, no período de agosto de 2003 a março de 2004.
A população de referência foi de mulheres cadastradas para atendimento na Unidade Básica de Saúde do bairro Consolação em Vitória. Foram incluídas no estudo, mulheres na faixa etária de 15 a 49 anos, que já tinham iniciado a atividade sexual, buscado atendimento na unidade de saúde e concordado em participar do estudo. Os critérios de exclusão foram os seguintes, ter sido submetida a exame ginecológico há menos de um ano e ter histórico de tratamento recente (nos últimos três meses) para infecções genitais.
O cálculo do tamanho da amostra foi feito considerando a prevalência de infecção pela Chlamydia trachomatis de aproximadamente 5%. Com base neste cálculo, o estudo buscou incluir 292 mulheres; considerando uma perda de 10% e o número final necessário seria de 321 participantes.
O Conselho de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória (ES), aprovou o protocolo de pesquisa. Foi obtido consentimento informado, por escrito, de todos os participantes, de acordo com as determinações legais no Brasil. Foi oferecido tratamento de acordo com o manual de controle das DST do Ministério da Saúde9 a todas as mulheres com infecções genitais.
O questionário empregado foi constituído pelo registro de dados pessoais (nome, data de nascimento, naturalidade, profissão, cor e estado civil), dados clínicos (inventário de sintomas e de uso de medicamentos, histórico de doenças crônicas, cirurgias, infecções sexualmente transmissíveis, transfusão sanguínea, uso de drogas, alergias e internações prévias), história ginecológica (menarca, coitarca, data do último coito, data da última menstruação, padrão do ciclo menstrual, paridade, número de parceiros, freqüência da atividade sexual, uso de métodos anticoncepcionais), descrição do exame clínico e dos resultados dos exames laboratoriais. A entrevista foi seguida de exames físico e pélvico, durante os quais, amostras cérvico-vaginais foram coletadas com swabs de forma rotineira.
Os seguintes testes foram realizados: preparação citológica de fluxo vaginal para tricomoníase; bacterioscopia pelo Gram de espécimes da vagina e colo do útero para amostras celulares de vaginose bacteriana e gonorréia, respectivamente; citologia endo e ectocervical classificada de acordo com o protocolo de Bethesda 200110. A citologia foi usada também para avaliação de características de infecção pelo vírus do papiloma humano (HPV) as mudanças citológicas do HPV foram presumidas pela presença de atipias coilocitóticas e epitélio escamoso do colo do útero. Foi feita cultura para Neisseria gonorrhoeae e o material foi coletado com swab de algodão da endocérvice e incubado em Ágar Thayer-Martin modificado por 24 horas a 37ºC numa atmosfera de 5% de dióxido de carbono. Foi também efetuada a reação em cadeia da polimerase (PCR laboratórios Roche) para infecção por Chlamydia trachomatis nas amostras de urina.
A vaginose bacteriana foi diagnosticada baseada na presença de pelo menos três dos quatro sinais dos Critérios de Amsel et al.11: a) fluxo vaginal viscoso branco e homogêneo característico; b) fluido vaginal com pH>4,5; c) liberação de odor de peixe vindo do fluído vaginal quando misturado com KOH 10%; e d) clue cells compondo pelo menos 20% das células epiteliais vaginais, confirmado pelo Gram.
Análise dos dados
Foi realizada análise estatística descritiva, incluindo distribuições de freqüência de dados categóricos e cálculo de médias e desvios padrão para variáveis contínuas. A prevalência foi calculada para refletir a freqüência relativa de infecções genitais, com intervalos de confiança (IC) de 95%. Odd ratios e IC95% foram calculados em análise bivariada para estimar o poder de associação entre a presença de infecção genital e cada comportamento de risco em potencial. As variáveis que foram significativas em p<0,15 na análise bivariada e variáveis adicionais baseadas em associações conhecidas a priori (por exemplo, idade e número de parceiros sexuais) foram consideradas na análise multivariada. Os principais fatores de risco foram avaliados gradualmente por meio de um modelo de regressão logística, com 15% como o valor de p crítico para a entrada de variáveis e 10% como critério para a eliminação de variáveis.
Resultados
Um total de 299 mulheres (93,1% das convidadas) aceitou participar do estudo. A média de idade foi de 30,0 (intervalo interquartil: 24;38) anos de idade. Cerca de 70% delas tinham mais de oito anos de escolaridade. Em relação às atividades profissionais, 35,7% eram donas de casa e 31,7%, empregadas domésticas. Mais de 60% eram casadas ou tinham um parceiro estável.
As infecções genitais foram usadas como marcadores para a presença de associação entre comportamentos de risco e IST, que foram consideradas como presente, quando os testes de Chlamydia trachomatis e/ou Neisseria gonorrhoeae e/ou Trichomonas vaginalis foram positivos. Pelo menos uma dessas três infecções estava presente em 29 mulheres [9,7% (IC95%=6,3-13,1%)]. As taxas de prevalência das infecções e os respectivos intervalos de confiança estão descritos na Tabela 1.
A média de idade da primeira relação sexual foi de 17,3 (dp=3,6) anos, e 37 (12,3%) mulheres tiveram sua primeira relação antes dos 15 anos. A média de idade da primeira gravidez foi de 19,2 (dp=3,9) anos. Nenhuma das participantes estava grávida durante a entrevista. A violência sexual e doméstica foi reportada pelas participantes do estudo em 13,7 e 4,7%, respectivamente. O uso abusivo de álcool, ou seja, consumo de três ou mais doses por dia, OR=2,9 (IC95%=1,31-6,37), uso inconsistente de preservativo (raramente ou nunca), OR=2,5 (IC95%=1,15-5,61), e o fato de já terem realizado o teste HIV, OR=2,8 (IC95%=1,25-6,46) foram associados à presença de infecções genitais. Ter somente um parceiro na vida, OR=0,2 (IC95%=0,06-0,64), e ter um único parceiro no último ano, OR=0,3 (IC95%=0,11-0,75) foram considerados fatores de proteção na análise bivariada. Os resultados estão apresentados na Tabela 2.
Considerando a presença de sinais e sintomas, um risco aumentado de infecções genitais em mulheres com teste de KOH positivo, OR=3,5 (IC95%=1,57-7,64), muco cervical turvo ao exame, OR=5,4 (IC95%=1,81-15,79), e pH vaginal anormal, OR=5,6 (IC95%=2,08-15,03), foi observado (Tabela 3).
No modelo final de regressão logística, os fatores independentemente associados a infecções genitais foram: muco cervical anormal, OR=9,7 (IC95%=5,6-13,7), realização de teste de HIV prévio, OR=6,5 (IC95%=4,0-8,9), ter mais de um parceiro no último ano, OR=3,9 (IC95%=2,7-5,0), e ter mais de um parceiro na vida, OR=4,7 (IC95%=2,4-6,8).
Discussão
Este estudo sobre IST em mulheres atendidas em uma Unidade Básica de Saúde em Vitória, procurou investigar a infecção por clamídia, gonorréia e tricomoníase e os riscos relacionados a essas infecções. Foi demonstrada uma alta prevalência de pelo menos uma dessas infecções nessa população (9,7%). As IST estavam significativamente associadas ao número de parceiros sexuais, ao muco cervical anormal e a ter realizado teste prévio de HIV.
A prevalência de infecção por clamídia relatada neste estudo mostra uma taxa em concordância com outros estudos realizados no Brasil, mostrando números que vão de 4,7 a 12,2%12-16.A taxa predominante de gonorréia foi menor (2%) que a de clamídia, mas está de acordo com outros estudos brasileiros15,17. Nas últimas décadas, observa-se uma diminuição no número de casos de tricomoníase. Isso pode ser explicado pelo tratamento com metronidazol e melhores condições de saúde da população18,19. Outros estudos no Brasil mostraram taxas de cerca de 4% de tricomoníase em mulheres15,20.
Apesar de a vaginose bacteriana e a candidíase não serem consideradas IST, elas foram incluídas no estudo porque são motivos freqüentes de procura por cuidados ginecológicos6. Considerando que foi coletada a citologia cérvico-vaginal de todas as mulheres, 3,3% de alterações citológicas que sugerem infecção HPV foram observadas. Esses dados estão de acordo com outros estudos feitos no Brasil usando o método de Papanicolaou como métodos de detecção de HPV: 1,121 e 2,2%22. Em estudos usando PCR, os autores encontraram 1623 e 18,3%24 entre as mulheres atendidas em clínicas ginecológicas públicas. Em estudo, no qual se utilizou a captura híbrida II, para HPV de alto risco, observou-se prevalência de 17,8%, sendo que nesse método houve positividade para HPV em 14,9% das citologias normais25.
No presente estudo, as infecções genitais foram associadas ao número de parceiros sexuais, muco cervical anormal e haver realizado teste prévio para infecção por HIV. A associação entre infecção genital e realização de teste prévio de HIV pode ser explicada pelo fato de que pessoas que acham estar em maior risco podem procurar voluntariamente programas de aconselhamento e rastreamento da infecção pelo HIV26,27. Em relação ao número de parceiros sexuais, 84,7% das mulheres informaram ter parceiros estáveis e 46,3% disseram nunca ter usado preservativo com seus parceiros. O número de parceiros sexuais foi inversamente proporcional ao uso regular de preservativo, pois as mulheres tendem a se sentirem seguras quando estão em um relacionamento estável e deixam de usar preservativo28,29. Em um universo de 71% das mulheres com parceiros fixos, 55,4% relataram nunca ter usado preservativo15.
Um estudo realizado em Salvador,BA, identificou a associação entre abuso de álcool e maconha com a última relação sexual sem preservativo e IST14. A alta taxa de não uso de preservativo mostra a necessidade de campanhas educacionais sobre comportamento sexual e uso do preservativo, direcionada a mulheres com parceiros estáveis.
Neste estudo, as infecções genitais não foram associadas a sintomas ginecológicos, e fluxo vaginal foi um sintoma freqüente. A precisão do diagnóstico clínico de infecções genitais é baixa, enquanto que os métodos de diagnóstico laboratorial são complexos e caros, o que pode atrasar o início do tratamento30. Nos casos em que os testes que identificam clamídia e gonorréia não estão disponíveis, a utilização da abordagem sindrômica pode ser uma ferramenta usada para diagnosticar pacientes sintomáticos31, já que há tratamento para a maioria dos organismos responsáveis pela síndrome32. Com o intuito de diminuir o número de mulheres que seriam tratadas por infecções no colo do útero desnecessariamente, uma avaliação de risco foi incorporada à abordagem sindrômica do corrimento vaginal. Como resultado, mulheres com queixa de corrimento vaginal são tratadas sistematicamente para infecções vaginais, mas somente se a sua avaliação de risco for positiva, ela também receberá tratamento para infecção por gonococos e clamídia33. O estabelecimento e o uso de protocolos nacionais para o tratamento de IST podem ajudar a assegurar que pacientes assintomáticos e sintomáticos recebam assistência e tratamento adequados em todos os níveis dos serviços de saúde. Tais protocolos podem também facilitar o treinamento e a supervisão de profissionais de saúde e podem ajudar a reduzir o risco de desenvolvimento de resistência a antimicrobianos31.
A violência doméstica e sexual foi um aspecto importante observado neste estudo. Apesar de não estar associado às infecções genitais, foi uma questão freqüentemente mencionada pelas participantes. Também foram relatados históricos de violência sexual em estudo realizado por Martins et al.15 em Aracati (7,9%) e em Fortaleza (4,9%), cidades do Ceará. Mesmo que não seja o objetivo principal deste estudo, é importante apontar o problema e investigar a sua associação com infecção genital e outros problemas de saúde em mulheres que buscam serviços de atenção ginecológica.
As limitações deste trabalho incluem o tamanho modesto e a natureza única da amostra (uma unidade do PSF), o que poderia limitar as inferências a respeito de outras mulheres em condições similares. No entanto, o alto índice de resposta tem uma força que poderia, de certa forma, diminuir essa potencial limitação. A possibilidade de respostas direcionadas, pela tendência à produção de respostas socialmente aceitáveis, não deve ser ignorada. Podem ter ocorrido imprecisões ao lembrar do uso do preservativo, idade na primeira relação sexual e número de parceiros sexuais. No entanto, o índice de participação demonstra que os programas de prevenção a IST/HIV podem implementar, com sucesso, serviços confidenciais para as mulheres atendidas pelo PSF.
Este estudo chama atenção para a importância da vigilância da saúde da mulher e aponta algumas maneiras pelas quais a saúde reprodutiva pode ser documentada, com o objetivo de melhorar as intervenções na atenção às infecções ginecológicas. O PSF é uma estratégia importante para o alcance de melhores métodos de prevenção e assistência, porque ele possibilita acesso mais precoce dessa população à saúde. Os índices preponderantes de infecções genitais neste estudo mostram que há um problema que deve ser controlado e uma necessidade de ação direcionada à avaliação de comportamentos de risco, visando, dessa forma, a prevenção de infecção genital.
Agradecimentos
Os autores gostariam de agradecer a Roche Diagnóstica Brasil pela doação dos testes para diagnóstico da infecção pela Chlamydia trachomatis (Amplicor Roche).
Recebido: 12/5/08
Aceito com modificações: 30/7/08