DOI: 10.1590/S0100-72032008000900007 - volume 30 - Setembro 2008
Nilka Fernandes Donadio, Nilson Donadio, Priscila Takahashi Martins, Camila De Grande Cambiaghi
Introdução
Gestação heterotópica é uma condição rara na qual se encontra gestação ectópica simultaneamente a uma gestação intra-uterina1.
No passado, a incidência de gestação tópica associada a uma ectópica era 1:30.000. Com o advento das técnicas de reprodução assistida, a freqüência desta complicação aumentou para 1:100-500 gestações2. Entre as gestações heterotópicas, a localização mais freqüente da ectópica é na tuba uterina2. O diagnóstico precoce é de difícil realização, ocorrendo habitualmente somente após a rotura da prenhez ectópica3, como o caso que será apresentado a seguir.
O aumento da incidência desta complicação associado à falta de hábito, principalmente frente a gestações obtidas por fertilização in vitro, incentivou o relato deste caso visando alertar os obstetras e ultra-sonografistas.
Descrição do caso
Paciente de 34 anos, nuligesta, com queixa de infertilidade há quatro anos, foi submetida, em agosto de 2007 a ciclo de fertilização in vitro por fator tubo-peritoneal. Nesta ocasião foram transferidos para a cavidade uterina três embriões, apresentando, após 12 dias, βhCG plasmático positivo.
Realizou-se um primeiro controle ultra-sonográfico, que mostrou presença de saco gestacional intra-útero compatível com gravidez de seis semanas, além dos ovários aumentados de volume pela existência de múltiplos cistos com conteúdo hemorrágico e discreta quantidade de líquido na cavidade pélvica, sendo que a paciente relatou sensação de peso no baixo ventre.
Três semanas depois, procurou atendimento de emergência com queixa de dor abdominal e sangramento. A paciente apresentava dor no hipogástrio e na fossa ilíaca esquerda, associada à tontura e ao sangramento vaginal em diminuta quantidade havia oito horas, com piora na última hora. Apresentava também constipação intestinal, tendo feito uso de laxantes há um dia.
Ao exame, a paciente se apresentava em regular estado geral, descorada (3+/4), consciente, com pressão arterial de 60/40 mmHg e pulso de 120 bpm. O abdome era globoso, tenso, dolorido à palpação superficial e profunda, com piora da dor à descompressão e ruídos hidroaéreos diminuídos. Foi realizado exame ginecológico especular, que mostrou colo uterino gravídico sem lesões, não sendo visualizado sangramento ativo. Ao toque vaginal, o colo se encontrava amolecido, com o orifício externo impérvio, útero aumentado em aproximadamente uma vez seu tamanho habitual, sendo os anexos de difícil avaliação pela intensa dor à palpação bimanual e dor à palpação do fundo de saco posterior.
Imediatamente após o exame físico, a paciente evoluiu com diminuição do nível de consciência e queda mais acentuada da pressão arterial, sendo encaminhada com urgência ao centro cirúrgico para laparotomia exploradora, com hipótese diagnóstica de abdome agudo. Não foi realizada ultra-sonografia antes do procedimento pela piora e gravidade do quadro clínico. No intra-operatório, foram encontrados ao redor de 600 mL de sangue na cavidade abdominal e gestação ectópica rota na tuba uterina esquerda, sendo feita salpingectomia.
No pós-operatório imediato, foi realizado ultra-sonografia transvaginal para avaliar a viabilidade da gestação tópica, que mostrou feto único vivo, compatível com nove semanas, e placenta sem áreas de descolamento. Foi prescrito repouso absoluto, uterolítico (Inibina®, a cada seis horas) e progestágeno (Gestadinona®, uma ampola intramuscular a cada sete dias). A paciente recebeu alta após três dias, para acompanhamento pré-natal.
A gestação tópica evoluiu de forma habitual, culminando com o nascimento por parto normal de feto masculino, apgar de nove e dez, com 38 semanas de gestação, pesando 2.735 g.
A publicação deste relato de caso teve a autorização expressa da paciente.
Discussão
Os fatores associados à gestação ectópica e heterotópica são: doença inflamatória pélvica, malformações uterinas, idade avançada, tabagismo, cirurgia pélvica anterior, história de infertilidade e aplicação das técnicas de reprodução assistida4,5. Em pacientes submetidas à fertilização in vitro, a incidência de gestação heterotópica é maior do que na população geral, sendo respectivamente, 1:100-5003 e 1:30.0002. Quanto maior o número de embriões transferidos maior a chance de ocorrência do quadro, chegando a 1:45 quando mais do que cinco embriões são transferidos para a cavidade uterina6. A transferência de blastocistos no lugar de embriões com três dias de evolução também resulta em aumento das gestações heterotópicas7.
A tuba uterina é o sítio de implantação extra-uterino mais comum, podendo ser esta também cornual8, cervical9, ovariana10, abdominal11 e em cicatriz de cesárea12. Os sintomas são variados, dependendo do estágio de desenvolvimento do embrião ectópico.
Em 83% dos casos de gravidez heterotópica tubária, a dor abdominal está presente e 13% das pacientes se apresentam com dor abdominal e choque hipovolêmico13. Reece et al.12 definiram quatro sinais e sintomas para o diagnóstico de gestação heterotópica tubária: dor abdominal, massa anexial, irritação peritoneal e útero aumentado. Em 70% dos casos de gestação heterotópica o diagnóstico é feito entre a quinta e a oitava semana, e os demais entre a 11ª e a 12ª semana. Seu diagnóstico precoce é difícil, sendo muitas vezes feito somente depois de ocorrida a ruptura da tuba uterina. Tal dificuldade se dá pela perda de alguns parâmetros diagnósticos utilizados para gravidezes ectópicas simples. Os marcadores bioquímicos, βhCG e progesterona, utilizados no diagnóstico de gestação ectópica não fazem diagnóstico da heterotópica, já que o tecido trofoblástico intra-uterino produz quantidades normais dos hormônios5.
O que acaba por dificultar ainda mais o diagnóstico é o fato destas mulheres, na sua grande maioria, terem sido submetidas à estimulação ovariana controlada previamente à fertilização in vitro5. Nestes casos, é comum a presença de líquido livre nos fundos de saco e os ovários são muito aumentados de volume, justificando eventuais dores nas fossas ilíacas, sendo a diferenciação de um corpo lúteo hemorrágico e de uma gestação ectópica mais difícil14. Somente 26% das gestações heterotópicas são diagnosticadas pela ultra-sonografia14. Além do que, a própria presença da gestação tópica acaba por desviar a atenção do ultra-sonografista para esta possibilidade. Na verdade, a gestação tópica mascara o diagnóstico de uma heterotópica, já que, sendo uma entidade rara, tal hipótese nem sempre é lembrada.
Atualmente, não há consenso sobre o melhor manejo da gestação heterotópica, pois depende do local de implantação do saco gestacional ectópico e da época do diagnóstico15.
Nos casos de gestação heterotópica com ectópica cervical, o tratamento é mais complicado, pois parte da conduta habitual, como aspiração guiada por pela ultra-sonografia16, infusão de cloreto de potássio17,18 ou methotrexate19, ressecção cirúrgica via histeroscópica20, realização de cerclagem tipo Shirodkar21 ou embolização da artéria uterina22,acabando por inviabilizar a evolução da gestação tópica.
A abordagem cirúrgica via laparotômica ou laparoscópica é o tratamento de escolha nos casos em que a gestação ectópica é tubária. Em trabalho em que se avaliou o tratamento de 80 mulheres com gestação heterotópica, 63 delas (78,7%) foram submetidas à cirurgia, sendo que entre elas, 25 (39,6%) foram operadas pela via laparotômica e 38 (60,3%) via laparoscópica14. Na grande maioria dos casos foi realizada a salpingectomia.
Porém, deve-se tomar cuidado, pois o desconhecimento da gravidez heterotópica pode levar a uma curetagem inadvertida como complementação da cirurgia, o que habitualmente é realizado após gestações ectópicas simples, terminando assim com a gravidez tópica em evolução.
Alguns aspectos são apontados como fatores que influenciam a boa evolução da gestação tópica, entre eles alguns autores apontam a ausência de queda acentuada da pressão arterial durante o diagnóstico/tratamento23.
Segundo revisão da literatura que levantou a evolução de 207 gestações heterotópicas que ocorreram entre as 132.867 gestações obtidas por fertilização in vitro nos Estados Unidos entre 1999 e 2002, essas apresentaram duas vezes mais chance de gestação intra-uterina associada à ectópica evoluir para aborto espontâneo e dez vezes mais chance de evoluir para aborto com curetagem, quando comparadas com as gestações intra-uterinas isoladas5. Logo, as gestações heterotópicas resultaram em 30% a menos de nascidos vivos, quando comparadas com as gestações normais5.
O diagnóstico da gestação heterotópica continua sendo um dos maiores desafios da reprodução humana14. Os sinais e sintomas não são específicos para esta enfermidade e muitas vezes se confundem com outras causas de dor pélvica, em gestação do primeiro trimestre. Este dado, junto à dificuldade diagnóstica ultra-sonográfica citada acima, acaba por retardar seu diagnóstico24.
Na presença de mulher submetida à fertilização in vitro seguida de transferência de embriões, deve-se pensar sempre em gestação heterotópica. Quando já se estiver pensando nesta possibilidade, deve-se considerar que ainda não se pensou o suficiente. Só assim será possível o diagnóstico precoce.
A gestação heterotópica está se tornando cada vez mais freqüente devido ao aumento da aplicação das técnicas de fertilização assistida. Diante deste novo contexto, é fundamental pensar nessa hipótese diagnóstica frente a um quadro de dor abdominal em gestação de primeiro trimestre. A precocidade do tratamento acaba por influenciar diretamente a evolução da gestação tópica.
Recebido: 23/4/08
Aceito com modificações: 28/7/08